ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

LUIGI RUSSOLO E A ARTE DOS RUÍDOS:
UMA INTRODUÇÃO À MÚSICA FUTURISTA

 

Sérgio Medeiros

 

Luigi Russolo, nascido em Veneza em 1885, era pintor e não músico, e foi por causa das artes plásticas, justamente, que se tornou membro do movimento futurista, em 1910. No entanto, instigado pela leitura de Música Futurista, manifesto do compositor Balilla Pratella, de quem era amigo, decidiu redigir, como uma resposta, o manifesto A Arte dos Ruídos, em 1913, considerado hoje um dos mais importantes do século XX, segundo os estudiosos.  Para os compositores modernos da Europa, esse manifesto transformou Russolo quase imediatamente numa referência obrigatória. Basta citar, para avaliar a repercussão internacional das concepções musicais do artista italiano, que Russolo, em 1914, já reconhecido como músico de vanguarda, deu seus primeiros concertos futuristas, em Londres e Paris, seguindo à risca o conteúdo estético do manifesto e utilizando os novos instrumentos que havia inventado, os “intonarumori” (entoadores de ruídos, ou máquinas de fazer ruídos).  Estavam na platéia  nomes de prestígio na área da música erudita, como Stravinsky, Ravel e Honegger, e também da literatura e das artes plásticas, como Claudel e Mondrian. Este último, aliás, ficou tão impressionado que chegou a escrever um artigo sobre Russolo e sua música, publicando-o em seguida na Holanda (Russolo, 2009, p. 34).

 

Posteriormente, Russolo foi elevado a precursor da música eletrônica contemporânea (criada com sons sintéticos), por artistas experimentais como John Cage, Pierre Schaeffer e Pierre Henry, os dois últimos criadores da “música concreta” (baseada inicialmente na manipulação de sons naturais), a qual , a meu ver, poria em prática, graças aos avanços tecnológicos  e à invenção do gravador de fita em particular, durante a Segunda Guerra Mundial, alguns ideais estéticos do artista italiano. Cage recriou Russolo, continuamente, tanto nos seus escritos quanto na sua música. Os ecos de Russolo são evidentes, por exemplo, no seu mais conhecido manifesto, The Future of Music: Credo, publicado no livro Silence (1973).

 

Voltando ao  manifesto A Arte dos Ruídos, de 11 de março de 1913, é preciso esclarecer que ele se tornaria, em 1916, o primeiro capítulo do livro L’Arte dei Rumori, uma coletânea de textos de Luigi Russolo que John Cage declarou certa vez  ser seu livro de cabeceira, o que prova, mais uma vez, a importância dos escritos de Russolo para esse e outros grandes s artistas do século XX. Nessa coletânea, textos como Ruídos da Guerra e Grafia Enarmônica, entre outros, precisavam e desenvolviam as idéias expostas no primeiro manifesto musical de Russolo, que deu título à obra, conforme vimos.

 

Gostaria de deter-me, a seguir, no conteúdo do manifesto de 1913, escrito, aparentemente, em resposta ao manifesto de Pratella. Uma tradução brasileira desse manifesto foi publicada no livro Música Eletroacústica: história e estéticas (1996), uma abrangente coletânea de textos teóricos e históricos, assinados por diferentes compositores, como, entre outros, Edgar Varèse, Karlheinz Stockhausen. Henri Pousseur e Peirre Boulez, que Flo Menezes, jovem compositor brasileiro, organizou e apresentou. Tomarei como fonte essa tradução, daqui para a frente.

 

A primeira constatação futurista de Russolo é esta:

 

A vida antiga foi toda silêncio. No século dezenove, com a invenção das máquinas, nasce o Ruído. Hoje, o Ruído triunfa e domina soberano sobre a sensibilidade dos homens. Por muitos séculos a vida se desenvolveu em silêncio, ou, no melhor dos casos, em sordina. Os ruídos mais fortes que interrompiam este silêncio não eram nem intensos, nem prolongados, nem variados. Pois que, se negligenciarmos os excepcionais movimentos telúricos, os furacões, as tempestades, as avalanches e as cascatas, a natureza é silenciosa (Russolo, 1996, pp. 51-52).

 

Antes de prosseguir na exposição dessas idéias musicais, talvez não seja demais lembrar que, segundo os estudiosos do futurismo, Luigi Russolo abraçou desde o início o anarquismo, enquanto outros parceiros, como Balla, que era um socialista humanitário, e o jovem Boccioni, um marxista convicto, tomavam outros rumos políticos. Ou seja, se considerarmos ainda o caso de Filippo Tommaso Marinetti, podemos dizer que os futuristas se posicionaram tanto à esquerda quanto à direita, para simplificar a questão. Realmente não existiu, no movimento estético italiano, uma única e exclusiva tendência política. Por isso, certamente, em O Momento Futurista(1993), a ensaísta Marjorie Perloff afirmou que “A equação do  futurismo italiano e seus cognatos com o fascismo posterior é então uma simplificação. Giovanni Lista e outros esboçaram recentemente as origens anarco-socialistas esquerdistas  do movimento italiano, seu anticlericalismo, antimonarquismo e sua oposição à burguesia liberal” ” (1993, pp. 80-81). Em razão de suas convicções antifascistas, aliás, Luigi Russolo iria se exilar em Paris, em 1927, onde deu prosseguimento a suas pesquisas estéticas e concretizou, tanto quanto possível, a arte do futuro, ou da fase utópica do movimento modernista, quando os artistas, para repetir o que disse Perloff, “se sentiram às vésperas de uma nova era, que seria mais excitante, mais promissora e mais inspiradora do que qualquer outra precedente” (1993, p.80). Por mais que suas raízes estivessem em países economicamente na retaguarda, como a  Itália e a Rússia, por exemplo, ainda assim era inegável para esses jovens artistas que a “retaguarda” estava experimentando uma rápida industrialização e que as decisões políticas e estéticas, nesse momento histórico crucial,  estariam finalmente em sincronia..  

 

Meu objetivo, porém, não é estudar o alcance político das “ruídos” futuristas de Russolo, mas expor apenas alguns fatos estéticos, descritos e analisados pelo autor italiano no seu manifesto. Espero também, mais à frente, rebater a crítica que o compositor francês Edgar Varèse fez a esse músico-pintor visionário que certamente o influenciou, embora ele não o tenha admitido claramente.

 

O fato é que, visionário e anarquista, Luigi Russolo delineou “os novos sons da ‘orquestra futurista’ antes de as máquinas feitas para produzirem tais sons serem inventadas” (Perloff, 1993, p. 168). A metalinguagem, neste caso, precederia a criação, pois,  claro está, falar sobre arte equivalia a fazê-la, como observou, entre outros, Marjorie Perloff. A arte dos ruídos, portanto, não poderá jamais ser reduzida a mera obsessão pela nova tecnologia. A melhor comprovação disso ainda é o manifesto de 1913.

 

Após declarar que a natureza é silenciosa, Russolo passa, previsivelmente, como bom futurista que é, a atacar a tradição, ou seja, a música sancionada e a matéria de que ela está feita. “O som foi atribuído aos deuses pelos povos primitivos, foi considerado como sagrado e reservado aos sacerdotes, que dele se serviram para enriquecer os seus ritos”, sentencia Russolo, que continua: “Nasceu assim a concepção do som como coisa em si, distinta e independente da vida, e disto resultou a música, mundo fantástico sobreposto ao real, mundo inviolável e sagrado” (Russolo, 1996, p. 52).    

 

Então conclui: “A arte musical buscou e obteve primeiramente a pureza, a limpidez e a doçura do som, em seguida combinou sons diversos, preocupando-se no entanto com acariciar os ouvidos com suaves harmonias.” A seguir faz um diagnóstico preciso, de conhecedor da arte musical do seu tempo:  “Hoje a arte musical, complicando-se cada vez mais, busca as combinações de som mais dissonantes, mais estranhos e mais ásperos para os ouvidos. Aproximamo-nos assim sempre mais do som-ruído” (Russolo, 1996, p. 52 ).

 

Essa leitura pessoal da evolução da música, que culmina, segundo Russolo, no advento do “som-ruído”, ou, talvez, na hesitação entre som e ruído, não é de modo algum uma trivial boutade vanguardista, mas uma percepção acurada da arte musical do seu tempo e, também, do futuro. De fato, a música dita experimental, desde esse momento crucial, iria romper, como antecipou Russolo no seu manifesto, com o círculo restrito de sons puros a fim de conquistar a variedade infinita dos “sons-ruídos”. Bastaria citar, entre outros casos exemplares, a música de Ravel, que, a certa altura de sua bem-sucedida  carreira artística, entusiasmou-se com um dos concertos dados por Russolo em Paris e, a partir daí, teria se inspirado na música futurista e colocado, ao final de L’Enfant et les Sortilèges, uma de suas obras-primas, o famoso coro ruidoso das rãs. Outras obras “futuristas” que também poderiam ser citadas são: Parade, de Erik Satie, Ballet Mécanique, de George Antheil, e Pacific 231, de Honegger. Paul Griffiths cita ainda Stravinsky, em cujas Noces ele detecta alguma influência futurista no acompanhamento de percussão (Griffiths, 1994, p. 99).

 

Depois das tentativas precoces de Russolo, o anseio pela construção de novos instrumentos musicais que tornassem finalmente possível a música eletrônica tornou-se um sentimento generalizado. Respondia ao desejo, expresso nomeadamente por Varèse, outro pioneiro, de “abrir totalmente à música o universo dos sons”, fundamento da estética desse compositor francês, cujas idéias exigiam a invenção de novos meios de produzir sons. Varèse, no entanto,  manteve-se estreitamente ligado a Busoni e não se incluía a si mesmo no pequeno grupo de compositores “bruitistes” (“barulhentos”), como Satie e Antheil, os “primeiros seguidores” da estética de Luigi Russolo. Como lembrou o crítico Paul Griffiths, na sua A Música Moderna (1994), ele criticava no italiano a “imitação grosseira” dos ruídos cotidianos. Mesmo assim, Russolo inspirou, como reconhecem os estudiosos, a complexa escrita para percussão da primeira obra americana de Varèse, Amériques (“Américas”), no plural, que ele mesmo considerou como o verdadeiro início da sua obra (de um radicalismo vanguardista inegável), tendo, por essa razão, destruído, em 1960 ou 1961, a única partitura, Bourgogne, que lhe restara de seus anos de formação na Europa. Porém, o ruído futurista (a música da “era mecânica”) continuaria ecoando na sua escrita musical.

 

Russolo e os futuristas, ao contrário do que sugeriu Varèse em sua crítica ao movimento, não estavam, porém, interessados apenas em reproduzir os ruídos urbanos. Russolo, por exemplo, imaginara a “associação” de vários timbres, o que não poderia ter redundado em mera imitação de ruídos cotidianos, além do que, como lembra Otto Karolyi, os futuristas também pesquisaram a manipulação eletrônica ou mecânica de sons (Karolyi, 1995, p 287.)

 

No famoso estudo, Performance Futurist, de Michael Kirby e Victoria Nes Kirby, lemos que “A Arte dos Ruídos”, uma teoria simples e profunda, teve amplas repercussões no século XX (1986, p. 33). Ouso acrescentar que é um manifesto ainda atual, pois continua a despertar interesse e a fomentar discussões estéticas. Russolo queria que todos os sons, e não apenas alguns, fossem incorporados à arte musical do Ocidente. Isso vem sendo feito, conforme sabemos, desde a divulgação do seu manifesto, em 1913.

 

Russolo, e isso é importante destacar, quis demonstrar na prática suas idéias, sua “nova arte”. Imaginou uma nova orquestra e criou para ela novos instrumentos, nesse sentido pode-se acrescentar que foi bastante pragmático e realista. Queria ver suas idéias concretizadas nas salas de concerto e não esperou que outros visionários a pusessem em prática, num futuro longínquo. Ao clamar por uma arte dos ruídos, Russolo também concebeu minuciosamente os intonarumori, novos instrumentos “destinados a produzir uma variedade de estampidos, estalos, roncos, rangidos e zumbidos” (Griffiths, 1994, p. 97) e que tornaram possível a sua música futurista, dinâmica e estridente. Ele mesmo os fabricaria, pois deles precisava para expressar suas ousadas concepções musicais, nos concertos que daí por diante daria, em Paris e Londres, centros culturais onde sua música provocou, como sabemos, tanto tumulto, mas onde também despertou muita admiração. Os instrumentos originais foram destruídos durante a Segunda Guerra Musical, porém “restaria de seus esforços um único e barulhento disco de 78 rotações” (Griffths, 1994, p. 99). Em 1977, para a Bienal de Veneza, foi feita uma bem-vinda gravação dos “sons-ruídos” de Russolo, hoje disponível em CD, por Mario Abate e Pietro Verado, que usaram instrumentos “reconstruídos”.

 

Em seus últimos anos de vida, Luigi Russolo voltou a fazer pintura e aderiu ao misticismo. Mas os dados, ou as sementes, estavam lançados. Creio que não errarei se, encerrando esta apresentação da música futurista, afirmar que, depois da Segunda Guerra Mundial, a “música concreta”, criada “em disco (originalmente) ou fita magnética por técnicas simples de edição, inversão e mudança de velocidade feitas sobre gravações de sons naturais, instrumentais, vocais ou outras” (Griffiths, 1995, p. 146), em suma, graças à nova tecnologia que logo faria possível o advento da música eletrônica de hoje, é a prova cabal de que os “sons-ruídos” de Luigi Russolo finalmente se tornaram possíveis e desejados por todos, tanto na cena experimental erudita quanto na cena pop internacional. 

 

“Toda manifestação da nossa vida é acompanhada de ruído”, afirmou Russolo no seu manifesto. E acrescentou:

 

O ruído é, portanto, familiar a nosso ouvido, e tem o poder de nos remeter imediatamente à vida mesma. Enquanto que o som, estranho à vida, sempre musical, coisa em si, elemento ocasional não necessário, tornou-se já para o nosso ouvido aquilo que aos nossos olhos apresenta-se como um rosto muito conhecido, o ruído, ao contrário, derivando-se confusa e irregularmente da confusão irregular da vida, jamais se revela inteiramente a nós, reservando-nos inúmeras surpresas. (...). Ainda que a característica do ruído seja a de nos remeter brutalmente à vida, a arte dos ruídos não deve se limitar a uma reprodução imitativa. Ela atingirá sua maior faculdade de emoção no degustamento acústico em si mesmo, que a inspiração do artista saberá extrair dos ruídos combinados (Russolo, 1996, p. 45 ).

 

Ou seja, o ruído salva a arte musical da alienação estética, ao fazê-la dialogar estreitamente com a vida. Não destrói de modo algum a inspiração artística, à qual caberá gerar obras que emocionarão o público, segundo afirma com todas as letras o manifesto de 1913, que comentei aqui.

 

  

BIBLIOGRAFIA

CAGE, John. Silence. Hanover: Wesleyan University Press, 1973

GRIFFITHS, Paul. Enciclopédia da Música do Século XX. Trad. Marcos Santarrita e Alda Porto. São Paulo: Martins Fontes, 1995

----------------------. A Música Moderna. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994

KAROLYI, Otto. Introducing Modern Music. Londres: Penguin Books, 1995

KIRBY, Michael e Victoria Nes Kirby. Performance Futurist. Nova York: Paj Publications, 1986

RUSSOLO, Luigi. L’Art des Bruits: Manifeste Futuriste 1913. Paris:  Éditions Allia, 2009

----------------------. “A Arte dos Ruídos: Manifesto Futurista (1913)”. Tradução: Flo Menezes.  In Flo Menezes (org.). Música Eletroacústica: História e Estéticas. São Paulo: Edusp, 1996

PERLOFF, Marjorie. O Momento Futurista. Trad. Sebastião Uchoa leite. São Paulo: Edusp, 1993

 

 

 

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Sérgio Medeiros é autor de vários livros de poesia, entre eles Mais ou menos do que dois (2001), Alongamento (2004) e Sexo Vegetal (2009). Ensina literatura na UFSC.

 

 

Leia também poemas (I) e (II) e um ensaio do autor sobre Samuel Beckett.

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