PERCURSO VISUAL DA POESIA OU
A DICRONIA DO MODERNO POÉTICO
Sheila Maués
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Luís de Camões. Os Lusíadas, Canto I, versos 15 e 16)
O uso plástico da palavra é um velho desejo estético dos poetas.
Dos vestígios distantes às manifestações contemporâneas, o percurso visual da poesia denuncia agudas investidas nas possibilidades expressivas das combinações intersígnicas.
Na ambígua floresta de signos da linguagem, resvaladiça a poesia fixa o olho no poema e no poeta. A Musa não dá pra qualquer um. Sempre foi assim, os bardos sabem disso, os críticos não. Difícil para putos preguiçosos entenderem que nem sempre a poesia será cativa da semiótica verbal. A poesia não se vende, antes, se dá, se abre lasciva e falsa àquele que oferecer, outra moeda, a invenção, a inteligência de uma arquitetura poética fora do convencional. A poesia é curtida, meu bem.
A plástica do poema é preocupação antiga, fundamental. O artista sempre esteve subalterno ao, mas nem sempre escravo do formato do texto poético. Todos os seus modos concentraram-se na organização visual de seus textos em um inquietante jogo criativo entre tradição e ruptura.
A visualidade da poesia é uma questão diacrônica. Forma clássica, parnasiana, vanguardeira, concretista, digital, nada disso adianta, quem decide é Ela. Ela e os tempos, os gostos, os temperamentos e as tecnologias.
Talvez seja por isso, que poucos se arriscam a criar uma definição para o termo poesia visual. Mas os De Campos mandaram avisar que poesia é risco... Se aceita a provocação especulando que poesia visual, assim entendida, é a mensagem passada pelo arranjo intersignico organizado pelo artista. É um conceito “valise” que comporta possibilidades visuais sem fim. Não há limites para a arquitetura poética, nem mesmo os terapêuticos, recomendados pela crítica (carcinomatosa) do momento.
O termo poesia visual é ele mesmo um embuste, uma vez que todas as mentes criativas tentaram atingir formas inventivas em função de poéticas diversas. Hoje se fala em poesia visual como resultante da interseção entre poesia e a experimentação visual pela utilização de signagens simultâneas. Essa dicção contemporânea atribui ao conceito de poesia visual falso ar atual.
A idéia de “novidade”, em visualidade poética, parece sedutoramente ligada ao século XX, no entanto, sabemos que em arte o conceito de “novo” é relativo, no caso específico da plasticidade visual do verbo poético, é ainda mais importante rever conceitos endurecidos e refletir a propósito do que chamamos aqui de diacronia do moderno em poesia visual.
O presente é uma utopia que confere ao conceito de moderno uma noção de momento de distinção substancial com relação aos períodos anteriores. De acordo com Philadelpho Menezes (2001), essa ideia de distinção tanto pode ser de notável desenvolvimento como de ruptura radical com o passado.
Embora não seja objetivo nosso conceituar o moderno, uma vez que grandes personalidades do pensamento humano já o fizeram, é nosso interesse estender o termo - surgido ainda no século XVIII, conformado no século XIX e definindo como o entendemos hoje no século XX - a momentos de criação poética cujos elementos característicos importantes revelam uma natureza em comum tanto com a noção de tradição quanto com a de progresso e ruptura num jogo entre continuidade e descontinuidade. Aqui consideramos o moderno um conceito plástico, ideia ligada ao mesmo tempo à estabilidade e à relatividade. Sob esse ponto de vista, a poesia visual, alimenta-se ao mesmo tempo de repetições e diferenças na busca sempre renovada da expressividade poética. O moderno não é época, é modo próprio da imaginação, “do pensamento, da enunciação, da sensibilidade”, como define Lyotard (1987).
O primeiro poema visual de que se tem notícia, no mundo ocidental data de 300 a. C., no reinado de Ptolomeu I. Em uma pequena ilha chamada Simi, a nordeste de Rodes, o poeta Simmias de Rodes construiu um poema em forma de ovo cuja leitura imprime simultaneidade à mensagem poética (O 1º verso é a primeira linha, mas o 2º é a última linha e o 4º, a antepenúltima, sendo que o último verso ocupa o eixo central do poema). O poema foi chamado de O Ovo, o texto fala do nascimento de Eros a partir de um ovo primordial, o Caos. O Ovo é o primeiro poema cuja forma atinge o significado, causando uma curiosa sensação de simultaneidade. O que chama atenção é a concepção visual e experimental da palavra poética, o desafio do jogo, do movimento e do conceito. Do mesmo poeta há uma sequência de poemas em forma de “coisa”, como o poema Asas de Eros e O Machado. Nesses poemas se conjugam forma, palavra, ritmo e poesia.
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O Ovo, de Simmias de Rodes |
Asas de Eros, de Simmias de Rodes |
O Machado, de Símias de Rodes |
Ainda na antiguidade grega há dois poetas que experimentaram com a visualidade da palavra, Julius Vestinus, Dosíadas, Teócrito.
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O Altar, de Julius Vestinus |
Poema de Dosíadas |
Poema de Teócrito |
No século IV, Porfyrius Optatianus cria um órgão de palavras, um poema que mimeticamente recria um órgão hidráulico. Em relação à estrutura, bem ao gosto dos futuros concretistas o texto é projetado minuciosamente tendo 26 linhas verticais, sendo que cada verso é acrescido de uma letra no topo, atingindo, desse modo, o último verso o dobro do tamanho do primeiro. Simulando o teclado, um verso horizontal transpassa o poema, logo abaixo, 26 versos menores simulam a base do instrumento. Essa disposição dita um ritmo poético diferente interferindo no tempo de leitura e no espaço do poema no papel.
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Carmina Figurata
(Órgão Hidráulico) |
Carmina Figurata
(A garrafa) |
Os poemas, dos primeiros séculos cristãos, exploram as formas (asas, corações, altares, instrumentos, cruses, anjos, garrafas, etc.). Eles estabelecem o modelo básico para a maior parte da poesia figurada que se produziu ao longo da Idade Média e Renascimento, quando a cultura ocidental revive o pensamento da antiguidade grega. Esses poemas miméticos de origem grega ficaram conhecidos como carmen figuratum ou carmina figurata. A ousadia visual desses textos esteve desde sua origem ligada a temas sublimes religiosos e de caráter místico.
No começo da Idade Média, Venâncio Fortunato, do século VI d.C. introduz em seus textos, conceitos de simetria e geometria, ao dar ao poema a forma de cruz, símbolo de cristandade e reconciliação com Deus:
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Poema de Venâncio Fortunato |
Sob influência de Venâncio Fortunato, a produção do monge beneditino germânico Hrabanus Maurus se notabiliza por tratar a temática da criação divina de forma muito particular. Seu conjunto de 28 poemas, intitulados de De Laudibus Sanctae Crucis é enigmaticamente cifrado como em disposição geométrica mesclando imagem e texto verbal. Suas possibilidades de leitura são múltiplas porque os versos são inseridos de modo independente, se pode ler o texto como um todo ou em quadros separados que, por sua vez, encerram poemas a parte. Ele construiu um sistema de código de 36 versos que continham 36 letras espacializadas uniformemente em quadrantes. Sua linguagem era simples e logo se tornou popular. Alguns estudos sobre as HQs apontam o poeta como iniciador da técnica de comunicar em quadros.
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Poema de Rábano Mauro |
Poema de Rábano Mauro |
O modelo de Hrabanus é diferente do carmina figurata porque amplia a utilização da palavra figurada para a palavra que se quer icônica cujos signos de diferentes signagens se possam fundir. A poética do monge germânico aproxima-se das transgressões renascentistas, em especial do ludismo e do labirinto verbal barroco além do geometrismo dos concretos. Contemporâneos de Hrabanus ainda praticam a carmina figurata como o visigótico Teodolfo e o provavelmente africano Publins O. Phorphyrius.
Do início do século XVI até meados do século XVIII, momento que corresponde esteticamente ao Maneirismo e ao Barroco, depois de um período de certa desvalorização do visual na poesia consequência da repetição exaustiva e banal de recursos figurativos dá-se a redescoberta daquela poesia, revestida de exuberante inventividade pictural exercendo efeito mágico e encantatório pela instabilidade tipicamente maneirista/barroca. A contextura paradoxal da poesia visual barroca funde numa mesma peça poética, ludismo e rigor matemático-combinatório, num arranjo visual que aceita todas as colaborações possíveis do acaso, antes mesmo de Mallarmé e John Cage. Desse modo, a poesia maneirista/barroca estabelece diálogo prodigioso com Oswald de Andrade, os Concretos e com a Poesia Experimental contemporânea uma vez que usa a visualidade, que herda de sua tradição cultural, como artifício do ofício poético, como forma de recusa de descontinuidade e não de repetição, a prova disso é que recursos já desgastados como anagramas, acrósticos, textos-amuleto são oxigenados criativamente dando lugar a verdadeiros labirintos poéticos que se multiabrem em possibilidades significativas. Uma vasta antologia, em língua portuguesa, dessa visualidade pode ser verificada em A Experiência do Prodígio de Ana Hartherly onde figuram o corpus visual do seiscentismo português. Como no barroco português, no barroco baiano percebe-se a tentativa de acordar o leitor para uma forma de leitura mais livre, uma reformulação do olhar para a apreciação do objeto literário.
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Labirinto de Letras, de Luis Tinoco |
Anagrama arithmético de Luis Tinoco |
Labirinto Cúbico |
No Labirinto Cúbicode Anastácio Ayres de Penhafiel (Barroco Baiano) isso acontece:
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Labirinto Cúbico de Anastácio
Ayres de Penhafiel. Século XVIII. |
No poema de Anastácio, a clássica dicotomia barroca de claro/escuro, humano/divino é ampliada no corpo da própria obra. Esta consiste de um perpétuo jogo de contrastes entre a forma e o conteúdo, ao que ambos se interpenetram para na tensão criar o poema – uma síntese poética. “Aqui a frase latina que significaria algo como “nos dois sentidos de César” é a chave para entender a multiplicidade de caminhos possíveis de se caminhar através do labirinto. O leitor pode ler a mesma frase de varias maneiras. A cada letra ele pode optar por caminhar entre dois caminhos, continuar reto ou virar. Há sempre dois caminhos a seguir da letra em que ele se encontra para a próxima; formando uma diversidade de caminhos a serem trilhados.” (Otávio Guimarães, 2007). De acordo com a matemática do poema, a letra i é a hipotenusa que divide as bases angulares do poema, enquanto a frase in utroque César (em um outro César) repete-se linha a linha, como se estivesse girando. Há conformação evidente entre a disposição do signo verbal e geométrico, por intermédio de certa gestalt matemática que se dá pela exploração de ângulos e obtusas. Há, assim, estrutura de aparência especular que inverte a significação das partes destacada pela direção de leitura dos ângulos retos:
Canto superior direito – A leitura no sentido horário sugere o César grego, modelar, “original”, paradigmático.
S A R
E S A
C E S
Canto inferior esquerdo – A leitura no sentido anti-horário já espelha o “outro” César, o baiano, a cópia, o reflexo.
S E C
A S E
R A S
No poema, o plano gráfico é marcante, sua tessitura é criada pela forma física das letras compondo uma imagem que também dá significação ao poema. A palavra ganha movimento através dos versos. A partir dessas premissas, podemos considerar que a visualidade faz do “Barroco uma estética intersemiótica que conjulga-se a outros códigos” (GOMES, 1993), um jogo de (des/re)montagem de peças e formas verbais canônicas como o soneto e as formas picturais elementares (círculo, retângulo, quadrado) dando origem a uma terceira linguagem subversiva dos códigos primeiros.
O jogo tenso entre tradição e inovação se prolonga à passagem da Idade Média ao Renascimento. Além dos poetas barrocos, Petrarca, considerado historicamente como restaurador das formas poéticas antigas gregas, o poeta das formas perfeitas rigidamente clássicas, mesmo nele se encontra experimentalismos com os corpos tipográficos das letras que se alternam entre caixas alta e baixa numa metalinguagem marca de uma consciência de linguagem muito além de qualquer conceito de moderno.
Soneto V
Quando eu movo os suspiros a chamar-te
E o nome que o Amor ao peito impôs,
LAUreando me vem aquela voz,
Em puros doces sons, de qualquer parte.
Teu estado REal que assim vislumbroRedobra a alta empresa o meu valor:
Mas, cala, griTA o fim, fazer-lhe honor
É soma que não pode sobre os olhos
(...)
Destaca-se visualmente nas entrelinhas um chamado a amada LAURA pelo destaque, em caixa alta, do diminutivo LAURETA. A experiência visual faz emergir do poema outra voz, uma leitura paralela, um significado outro que poderia não ter sido revelado.
O experimentalismo do carmina figurata atravessa todo o Renascimento sobrevivendo como influência em poetas da modernidade como Apollinaire. Como já vimos, as técnicas de acróstico e anagrama não podem ser consideradas novidade no contexto renascentista, já que quase todos os jovens poetas escreviam poemas com os nomes de suas amadas. Em Petrarca, contudo, o acréscimo sensível e pessoal a esses aportes retira-os da obviedade. No Soneto V, acima traduzido por Philladelpho Menezes, o acróstico dilui-se por todo o poema deixando de ser simples maneira, adereço formal ou mero requinte técnico para tornar-se dado significativo vinculado à temática passando a noticiar certa dificuldade de expressão do nome da amada fazendo da voz do poeta um elemento digno de enaltecer a mulher fugidia como seu nome espalhado pelo texto: LAU – RE – TA...
Em relação à tradição do carmina figurata, Petrarca não representa tema religioso, Cristo ou outro deus mítico, mas uma mulher representada pela escrita visual ferindo de um golpe só duas tradições: de reservar à poesia linguagem séria e procedimentos canônicos e, de outra parte, utilizar poemas figurativos com temáticas mundanas, a mulher. Há em Petarca o que Philadelpho Menezes chama de “casamento entre forma e conteúdo”, “tradicional e novidade” que reforça a idéia de modernidade.
Do século XVI ao XVIII poetas como o inglês George Herbert (1593 – 1633) e Francis Quarles (1592 – 1644) transitam pelas formas geométricas construindo poemas miméticos. A tradição da escrita figurada se manteria firme até o século XVIII, na Alemanha há o registro desse costume no livro Arte de escrever, de Baurefeld, 1736.
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Eafter-Wings, George Herbert |
A Arte de Escrever, Baurefeld, 1736. |
A visualidade, ainda no século XVIII, vai encantar a William Blake (1757 – 1827) que revive a iluminura manuscrita, medieval mesclando-a com textos caligráficos, ilustrações e tipografias de formas e cores diversas. Tais elementos na poética de Blake assumiam presença ativa e revolucionária, o poeta encarava a visualidade como veículo para a verdadeira revolução imaginativa verbal. As imagens que Blake compunha não eram repetições do conteúdo dos textos, para ele representavam parte do corpo poético. A leitura de seus textos deveria seguir o percurso dado pela viagem verbo-visual de sua poesia.
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Poema de Blake |
Poema de Blake |
No Brasil o romântico Fagundes Varela (1841 – 1875) também explora a relação entre forma e conteúdo:
Estrellas
Singelas,
Luzeiros
Fagueiros,
Esplendidos orbes, que o mundo aclarais!
Desertos e mares, — florestas vivazes.
Montanhas audazes que o céo topetais!
Abysmos
Profundos!
Cavernas
Eternas!
Extensos,
Immensos!
Espaços
Azues!
Altares e thronos
Humildes e sábios, soberbos e grandes!
Dobrai-vos ao vulto sublime da cruz!
Só ella nos mostra da gloria o caminho,
Só ella nos falla das leis — Jesus! |
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Poema
A
Cruz,
de
Fagundes
Varela
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Cartão postal antigo. Editor/publisher M. OROZCO, Rio de Janeiro circa, 1904 |
Mas o grande marco divisor de águas da poesia visual é Un Coup De Dês (Um Lance de Dados) de Mallarmé (1897), poema de estrutura fragmentária que o poeta chamou de subdivisões prismáticas da idéia, subtamente influenciado pela tipografia do jornal e pelas partituras musicais. Mallarmé confere maturidade ao dado visual aprimorando a visualidade da letra e fazendo do branco do papel elemento significante. O livro é aproveitado por inteiro, na dupla página, o poema se movimenta regido pela disposição das palavras, pelos tipos gráficos e suas diferentes dimensões e pelos brancos da página. O leitor é convidado navegar de forma simultânea pelos caminhos de fluxo e refluxo do pensamento criativo. Mallarmé é o regente dessa viagem de letras, tons, pausas, silêncios e intervalos. Ele instala a ruptura pela forma, depois de Um Lance de dados, jamais haverá retorno.
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Un Coup De Dês (Um Lance de Dados) de Mallarmé (1897), |
Augusto de Campos lembra em Poesia da Recusa que nessa obra e nos desenvolvimentos subsequentes das vanguardas históricas, que vão ser reciclados e radicalizados pela poesia concreta, encontram-se os pressupostos formais da poesia da Era Tecnológica, que se expande ao longo da segunda metade do século. O autor diz ainda que além de Mallarmé das vanguardas o que entendemos por poesia visual hoje teria como precedentes, Ezra Pound (o "método ideogrâmico", a colagem e a metalinguagem dos Cantos), James Joyce (o caleidoscópio vocabular do Finnegans Wake e sua polileitura textual), cummings (a atomização e o deslocamento sintático dos seus poemas mais experimentais) e, num segundo plano, por mais idiossincrática e menos rigorosa, a prosa experimental, minimalista e molecular, de Gertrude Stein. No caso particular da poesia brasileira, o Sousândrade (séc.19) de O Inferno De Wall Street, com seus epigramas-mosaicos pré-colagísticos, Oswald de Andrade e o poema-minuto "antropófago", a engenharia construtivista de João Cabral. Numa consideração transdisciplinar, menciona as transformações da linguagem musical de Webern a Cage e da visual de Malévitch/Mondrian a Duchamp que teriam afetado profundamente a questão visual.
Apollinaire é um caso a parte nesse percurso. Ele criou o termo Caligrama nos anos de 1910 para designar poemas calligramáticos (texto em forma de figura) que imitam a imagem do objeto representado. É uma estrutura externa ao poema, as imagens não partem de dentro para fora do poema como em Mallarmé, elas assumem forma do recipiente, mas não provoca modificações profundas nas palavras. Mesmo assim é dele o mérito de ter sido o primeiro a explicar o poema espacial, na nova ordem poética, através da noção de ideograma: a ligação entre os fragmentos do poema far-se-ia, não pela lógica gramatical, mas pela lógica ideográfica, que culmina numa ordem de arranjo espacial totalmente diversa da justaposição discursiva, sequencial e linear.
As experiências das Vanguardas Européias como o Futurismo e o Dadaísmo libertaram a palavra revolucionaram pela tipografia e lideraram a batalha contra a prisão do verso. Seu impulso era de ruptura com a linearidade da lógica cartesiana. A visualidade Dada era ela própria o ato revolucionário, sua poética não tem a funcionalidade interna que tinha a de Mallarmé, os caminhos dadaístas levam à concepção niilista do texto literário. O dadaísta Hans Arp, no entanto profetiza a poesia concreta quando afirma que o Dadaísmo não tem intenções sentenciosas ou didáticas. De fato, também os concretistas viriam a defender a ideia de que o poema concreto se apresenta ao leitor como obra aberta, resultado de uma tradição histórica ativa de “invenção,” que exige do leitor uma intervenção criativa, uma (co)participação na criação dos sentidos poéticos.
No Futurismo, a visualidade é mais mecanicista e política, há pouco rigor construtivo, desprezo aos valores semânticos (zaum, lettrisme, poesia fonética). Os experimentos de vanguarda põem em desigualdade constante os níveis verbais, sonoros e visuais do poema.
No Brasil da década de 50 um grupo de jovens poetas paulistas decreta o fim do ciclo do verso, desvinculando a arte poética das variedades e hibridizações do naturalismo. Era o concretismo na poesia, primeiro movimento literário brasileiro com reconhecimento internacional cujos criadores foram os poetas Haroldo de campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. O movimento buscava a renovação dos valores essenciais das artes visuais num momento pós-utópico, propondo uma linguagem poética ideo grãmica que fundia espaço-tempo, movimento e matéria. A forma do texto poderia ser o próprio significado do texto ou interferir plurisignificativamente nele como no poema Se Nasce/Morre de Haroldo de Capôs:
se
nasce
morre nasce
morre nasce morre
renasce remorre renasce
remorre renasce
remorre
re
re
desnasce
desmorre desnasce
desmorre desnasce desmorre
nascemorrenasce
morrenasce
morre
se
A forma ideogrâmica de “nascemorre” sugere desdobramentos vários de leitura nas mais diversas direções. O poema movimenta-se em redobramentos e desdobramentos dos signos que levam à idéia de um fluxo de vida e morte constante. A visualidade de cada uma das partes do poema é a o do símbolo matemático do infinito, uma bela metáfora do ciclo infinito de vida e morte do homem e suas criações, como o próprio poema.
A escrita pictórica de inspiração oriental se mescla ao elemento tecnológico criando necessidades visuais que só poderiam ser resolvidas mecanicamente, modificando sobremaneira o próprio ato criador, cada vez menos artesanal e mais técnico. Os poetas concretos são antes de tudo designers de palavras e de sonhos. Em Organismo (1960), Décio Pignatari cria um poema em que a tipologia é o próprio significado ao criar a sensação de movimento (close-up) causada pela mudança de tamanho dos tipos gráficos.
A Poesia Concreta para muito além do elemento visual propunha uma espécie de arte geral da palavra:
A expressão joyceana verbivocovisual sintetiza essa proposta que, desde os anos 1950, foi colocada em prática pelos poetas Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, José Lino Grünewald e Ronaldo Azeredo, desdobrando-se até hoje, ao longo de mais de cinco décadas de produção em suportes e meios técnicos diversos – livro, revista, jornal, cartaz, objeto, lp, cd, videotexto, holografia, vídeo, internet.(...) Os poetas concretos estabeleceram, desde o início, ligações entre a sua produção, a música contemporânea, as artes visuais e o design de linhagem construtivista. Reprocessaram elementos dessas artes em seus poemas e mantiveram extensa colaboração com artistas e designers, compositores e intérpretes, seja na esfera da música erudita, seja na da música popular, sem falar de outros poetas e críticos, tanto do Brasil quanto do exterior.
O conceito de poesia visual, ainda por criar, deve partir da revisão de apreciações históricas, para considerar o todo. Poesia visual é poesia livre, é dizer como nunca foi dito, sem pudores de invadir territórios artísticos visinhos ou códigos impensados. Poesia visual é formar por formar, quer escreva, desenhe, cole, pinte, digite, publique ou emoldure; quer construa por cálculos, projetos ou acredite em inspiração, instinto, acaso. O essencial é que haja poesia.
Mas se por um lado o conceito de poesia visual nos leva a reflexões especulativas e filosóficas, até; por outro surge a necessidade metodológica de pensar em classificações de possíveis poéticas visuais. Pode ser que todos os poetas tenham feito poesia visual, de acordo com os modelos de seu tempo, mas o fizeram usando “poetécnicas” (tomando o termo de Júlio Plaza) diferentes. O modo de operar, do qual resulta a visualidade parece mais simpático de examinar. Isso seria importante para evitar que determinadas visualidades se “absolutizassem”, de modo a parecer conter toda a verdade poética, monopolizando o exercício da poesia.
Poesia digital: uma possível poética visual
A Poesia Digital é uma possível poética visual. No entanto, o que caracteriza a Poesia Digital não é apenas a visualidade da palavra, mas a montagem artística multimídia. E antes que alguém diga que poesia sempre foi multimídia, intersemiótica ou hipertextual, admite-se o fato como verdadeiro, mas não sem antes anotar que na produção poética digital há intencionalidade e consciência da intersemiose.
Na base da produção poética digital está o hibridismo de linguagens sonoras, visuais, de movimento e de escrita. Essa produção pode ser intertextual ou hipertextual, admitir interferências, interatividade ou não, ser linear e/ou não linear. A Poesia Digital se destaca como uma adequação e/ou emprego dos recursos tecnológicos digitais na produção de novos significados e tem como estratégia criar um alto grau de imersão, sugestão de presença, de estar lá, dentro, no centro da poesia. Um bom exemplo disso é o poema SOS, de Augusto de Campos, que foi elaborado em 1983 e publicado em livro só em 1991, como poesia-papel e recebeu versão intermidiática, com duração de aproximadamente 2’ 15’, letras em tom vibrante de amarelo, animação e a sonorização. Nele a imersão acontece pela sensação de perda de distinção entre autor e observador, uma vez que, o poema se constroi diante do leitor: em uma tela inicial negra, surgem gradativamente as vogais [o], [ó]; em seguida o ponto de interrogação [?] e, consecutivamente, o pronome em inglês [I], as vogais [a] e, por fim, as demais letras, até formar o poema todo. Concomitantemente, a trilha sonora de Cid Campos potencializa o jogo poético proposto por Augusto. O dado sonoro remete a uma atmosfera “intergaláctica”. Evidentemente, a construção dessa visualidade segue um projeto. No caso de SOS, o fato de as letras aparecerem, uma a uma, com certa sonorização, indica ter sido uma solução absolutamente apropriada ao objeto, uma vez que remete à ideia de pontos luminosos que se acendem na escuridão do cosmo e que na verdade são as unidades mínimas de som que funcionam, também, como espécies de janelas semânticas que se abrem para o cosmo poético. A forma “caótica” com que esses elementos surgem impulsiona o eixo semântico do texto: o desespero ensimesmado que é também a procura de possíveis saídas para a própria construção do texto. Tais “saídas” abrangem significações tanto estéticas quanto existenciais.
A disposição dos versos revela uma tendência muito forte dentro da Poesia Digital, a interdisciplinaridade. No poema SOS, há o diálogo com a Física e a Química. Os versos se apresentam visualmente tal como a distribuição de camadas eletrônicas ou níveis de energia de um átomo, o que funciona muito bem num texto que transborda cosmicidade. A correspondência espacial das informações da estrutura é significativa, entra diretamente em relação com o conteúdo. O intercâmbio de informações entre as disciplinas faz do poema um discurso híbrido, complexo, aberto, susceptível de ser decomposto. As fronteiras do texto, e da própria concepção de arte na qual ele se abriga, estão rarefeitas, sinalizando o trânsito permitido.
Os versos, dispostos de modo concêntrico, ganham movimento, ou melhor, a sensação de. Então começa uma viagem linguística em direção ao centro, o significante SOS:
A primeira camada verbal, [ego (Latim) eu (Português) Я (Russo) ich (Alemão) io (Italiano) je (Francês) yo (Espanhol) I (Inglês)], move-se de forma levógira (sentido anti-horário). O verso adjacente, [nós sós pós], é assinalado por um movimento dextrógiro. O terceiro, [que faremos após?], tem a movimentação igualmente levógiro, o quarto volta a estabelecer o movimento dextrógiro, [sem sol sem mãe sem pai], e assim sucessivamente até se chegar ao núcleo significante [SOS].
No primeiro verso o “eu/nós” que vaga, em círculos concêntricos que se fecham. O homem cósmico se repete cópia de cópias joguete do universo. O movimento lembra a busca de uma combinação numérica para a abertura de um cofre, o segredo. Isso é muito curioso porque há nessa imagem a sugestão da “chave”, da decodificação ou tradução que viabilize a “saída”. O poema se abre. O “eu/nós” é um sobrevivente. Um náufrago notívago enviando mensagens telegráficas sufocadas, de socorro e solidão, para o espaço, assim como Celan lançou suas garrafas ao mar e o jovem poeta pediu socorro a Rilke.
Prosseguindo, quando atingida pelos movimentos, a palavra SOS duplica-se e sofre um processo de dilatação plástica. O [o] expande-se engolindo todas as camadas em um movimento centrífugo, contrário ao movimento centrípeto anterior.
Há uma errância, um vagar, expresso na movimentação das camadas verbais. Seus movimentos em direções opostas sugerem uma busca frenética de uma identidade em meio ao caos do mundo pós. As palavras andam em círculos como se procurassem uma saída na infinitude do cosmo, a aventura da busca da autenticidade poética. Tudo isso causa certa hipnose, torpor, imersão. Mas também acena para uma reflexão universal do eu, o eu em todos nós, uma desolação partilhada em várias línguas: ego eu Я ich io je yo I – tomada de consciência existencial da solidão criadora num mundo inóspito: “noite que anoitece”, “sem sol”, “silencioso”.
No aspecto visual do poema, é curiosa a relação que se dá entre a expansão do significante SOS e as cores usadas pelo poeta. No círculo cromático, o amarelo é a cor que se considera mais próxima do branco, da luz e do calor. Tende a causar a sensação de expansão. Em pintura, é ela que intensifica os matizes provocando mudanças de efeito em oposição ao roxo e ao preto ou negro, que causam sensação oposta de compressão, aperto. O negro em que está disposto o verbo é opressor, sem sol sem mãe sem pai / na noite que anoitece, na qual se vaga consumido. E então a vogal o se dilata como um sol amarelo e sonoro, apontando para uma nova possibilidade poética.
É inegável que a versão digital do poema tem uma energia diferente. Surge uma nova dinâmica que expande e multiplica as tramas semânticas do texto. Os recursos hipermidiáditos, tais como texto, imagem, gráficos, áudio, ilustração e animação, são acoplados via interconexão, transpondo a criação poética da ilusão à imersão. Isso se traduz numa tecnologia que oferece estímulos para a criação de uma linguagem poética digital, na qual texto, som, imagens fixas e animadas num mesmo suporte numérico promovem a aproximação entre arte e tecnologia. A implicação disto, em SOS, é que há um ganho estimável em ambiguidade, carga plástico-sonoro-musical, e em geração de novas combinações sígnicas, o que motiva uma multiplicidade de significações extraordinária.
O acréscimo plástico-sonoro-musical colabora para a construção da concretude dentro do poema e estimula a articulação dos elementos materiais da linguagem. Essa articulação dos signos equivale a uma “dança” da sintaxe. Tal tensão na linguagem do poema, nos termos estabelecidos, revela a heterogeneidade da criação poética digital contemporânea. Herdeiro da vanguarda, mas livre dela, o poeta do pós-tudo fica à vontade, inclusive, para embaralhar todos os estilos postulados pela História da Literatura.
O suporte digital, com seus recursos de animação, muda tudo. O desafio passa a ser a poesia que se locomove e explode em cores e sons, dando origem a uma nova proposta semântico-estilística. Na verdade, muito mais que isso, a criação poética intermidiática embaralha não só estilos, mas também signos de naturezas diferentes, permitindo-se, desse modo, experimentações de linguagem para muito além do Concretismo e da própria literatura. O poema não se sustenta mais como puramente verbal. Ele precisa reinventar-se, decompor-se infinitesimalmente. Desse modo, a arte poética se dilata alastrando-se para a música, as artes visuais, o cinema e para os mais avançados instrumentos multimidiáticos, lançando mão de outras signagens, tornando-se mesmo interdisciplinar. Esse é o caso de SOS, que foi produzido em conjunto tanto por pesquisadores das áreas de Engenharia Eletrônica e da Arquitetura quanto pelo poeta Augusto de Campos e seu filho, Cid Campos.
Outra propriedade da Poesia Digital é o dialogismo, manifesto em graus diferenciados de interatividade, produzindo efeitos sobre o leitor e vice-versa. A interação pode ir de um grau zero até a interatividade de comando contínuo, permitindo a modificação e o deslocamento de objetos sonoros ou visuais mediante a manipulação do usuário, como em alguns videogames. Em Sem Saída, de Augusto de Campos, o leitor interage com o texto movimentando o mouse:
Clemente Padín diz que
O poema digital se oferece ao leitor semelhante ao poema tipográfico desenhado em uma folha de papel, porém, a diferença é que, se o leitor desejar adentrar nos conteúdos deverá necessariamente se inserir pessoalmente na leitura para completar o processo de comunicação e aceitar as sugestões propostas do autor a abrir novos espaços (através de hipertextos ou vínculos).
Para aceitar a viagem proposta pelos vínculos basta passar o mouse sobre oa objetos “linkados ou clicar nos lugares propostos pelo poeta/disigner.
A Poesia Digital pode ser apenas releitura, ou transcriação de um poema gutemberguiano (tradução intersemiótica), ou pode ser inteiramente produzida em computador, distinguindo-se, portanto, da poesia (digital)izada, isto é, daquela que é apenas “hipertextualizada”, ou ainda que passa do papel para o pixel sem acréscimo estético, criativo ou significativo. Os textos digitais artísticos diferem dos demais exatamente pelo uso do computador, como “médium” entre a criatividade humana e a produção de signos com fins estéticos. O que está em jogo é a impossibilidade da realização dessa poesia em livros sem prejuízo do efeito estético. O uso do computador modifica e condiciona todo o processo de criação poética: concepção, obra e recepção.
A Poesia Digital é uma das diversas modalidades de poesia produzida e/ou armazenada em meio digital, há outras como, a poesia sonora, a poesia verbal digitalizada, a fractal etc. A poesia aqui denominada digital é talvez, a forma mais híbrida dentre as circulantes na rede de computadores em virtude de conglomerar linguagens diferentes num único objeto. Jorge Luis Antônio diz que a Poesia Digital é hiper e intertextual:
Ela dialoga consigo mesma, com a palavra ou vestígio dela, com a imagem, com o "mundo exterior", com o "mundo interior" (da máquina, do hardware, do software, etc.), com o som que a palavra evoca, ou com o som incluído nesse conjunto, com o leitor-fruidor-operador, e com o operador da máquina. Um texto artístico digital é, faz parte e participa de outros textos da cultura, e dialoga com ela, sofrendo influências as mais diversas. Assim, ao chamar esse texto de poesia digital, nós atribuímos a ele a característica geral de poesia, ou seja, linguagem também, mas não só, verbal (mas que dialoga com as artes plásticas, visuais, sonoras, teatrais, fotográficas, cinematográficas, videográficas, holográficas, etc.), que se comporta à semelhança de poesia.
Em virtude de ser um “gênero” poético emergente, a Poesia Digital não tem uma denominação definitiva, sendo também chamada de Infopoesia, Ciberpoesia, Poesia Algorítmica, Geração automática de texto, Poesia animada por computador, Clip-poema digital, Eletronic Word, Interpoesia, Multipoesia, Poesia Midiática, Poesia Experimental, Nova Poesia Visual, Poesia Internética, Nova poesia das mídias e finalmente Poesia Digital, etc. Não obstante, Poesia Digital é o termo mais recorrente e talvez o mais poético por remeter aos digitus, dedos sugerindo um fazer (arte)sanal.
A escrita poética digital abriga em si a noção de sobreposição de escrituras, o palimpsesto, onde coincidem camadas verbais, visuais, sonoros e de animação, permitindo ainda, interferências inesperadas (se o artista assim desejar) dos leitores. Outra peculiaridade da Poesia Digital, é que para produzi-la o poeta precisa conhecer as regras do Software disponível. Ele precisa (re)adaptar seu modus operandi ao do computador. É corrente também a formação de equipes em torno de um projeto de poesia, isso porque nem sempre o poeta domina os recursos digitais do computador, necessitanto, assim do auxílio de profissinais da área da informação, para viabilizar seus projetos artísticos.
Um dos grandes desafios da Poesia Digital, para o poeta, é produzir resultados artísticos que mesclem criatividade e artesanato técnico, criando ambiguidades poéticas icônicas e ideogrâmicas. Melhor dizendo, criar uma (não)palavra que seja imagem e som antes de mais nada, que mesmo partindo do verbal, apele á comunicação não-verbal; que funcione como estrutura-conteúdo, verbivocovisual. A Poesia Digital não pode prescindir de formas, texturas, sons, movimentos, dimensões e cores, assim como do mesmo modo não pode abrir mão de sua função simbólica motivada pelos dados verbais do texto. O poeta, quase um artista gráfico, músico ou cineasta transita nesse lugar desconhecido, entre o figurado da palavra e o icônico das imagens e dos sons.
Diante dos fatos, quais processos de leitura seriam válidos, tendo em vista a complexidade da produção poética digital? A leitura de textos desta natureza, não pode obedecer a parâmetros habituais de leitura, esses textos impõem sintaxes diferentes que demandam leituras em direções diferentes.
Autores como E. M. de Melo e Castro, Elson Froés, Lúcio Agra, Arlindo Machado, Julio Plaza, Clemente Padín, Eduardo Kac, Wilton Azevedo e Philadelpho Menezes são nomes fundamentais na criação e na apreciação crítica de poéticas digitais. Dentre estes, Wilton Azevedo teria sido o primeiro poeta brasileiro a fazer um CD-ROM de poesia digital interativa [Hiperpoesia/Interpoesia].O poeta e crítico português E. M. de Melo e Castro publicou em 1993, sob a organização de Nádia Battella Gotlib, O Fim Visual do século XX, em que textos críticos de vários autores discutem as poéticas tecnológicas da contemporaneidade. Melo e Castro colaborou muito para os estudos da Poesia Digital com pesquisas desenvolvidas entre Portugal e Brasil. Em 1998 elaborou um manifesto teórico-prático apresentando o conceito de Transpoética 3D. No mesmo documento estão os resultados dos estudos de Melo e Castro e seus alunos do curso de Infopoesia da PUC-SP. As experiências foram realizadas em um PC (1997-98), em ambiente Windows 95 com os softwears Adobe Photoshop 4.0, Fractint V18 e Corel Motion 3D 6. O poeta e ensaísta também se dedicou aos estudos das relações intersemióticas nas linguagens oral e visual, propôs e desenvolveu outros conceitos de poéticas digitais tais como Infopoesia, Poesia permutacional e Vídeopoesia nos livros O Próprio Poético, Poética dos Meios e Arte High Tech, Dialéctica das Vanguardas, Algorritmos, Trans(a)parências, dentre outros. O texto Infopoesia: produções brasileiras está disponível na seguinte url: http://www.ociocriativo.com.br/meloecastro.
Sobre o mesmo assunto, porém, dando maior ênfase à máquina e sua relação com o imaginário humano escreve Arlindo Machado em Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. Já Philadelpho Menezes juntamente com Wilton Azevedo abordam mais de perto a Poesia Digital, no seu texto Interpoesia: Poesia Hipermidia Interativa, obra-chave para o entendimento da problemática da produção poética em contexto digital. Julio Plaza, sozinho ou em outras parcerias tem textos basilares sobre o tema, um exemplo é o texto que produziu em parceria com Mônica Tavares, Processos criativos com os meios eletrônicos: Poéticas digitais, obra básica para o estudo de poéticas digitais por ser o resultado de anos de pesquisa daqueles autores, a propósito dos domínios mais revolucionários e criativos da produção estética infográfica.
A produção cibercultural, em seus aspectos mais criativos, é fonte de estudos de autores como Lúcia Santaella, Antônio Risério, Omar Khouri e Derrick Kerckhove, sendo que, os três primeiros, com enfoque mais estético, o último, mais antropológico. Haja uma considerável literatura voltada para o assunto, seria enfadonho enumerar nomes e obras aqui.
Apesar do envolvimento de pesquisadores e artistas que pensam a literatura brasileira de forma inventiva, há sempre quem queira a beleza fácil da tradição disciplinar, mas não é possível seguir ou retornar à floresta de signos de Baudelaire sem as marcas do mundo digitalizado, nem tampouco ignorar que a arte digital seja um tipo novo de linguagem geradora de conceitos que, até então, não existiam. Talvez alguma crítica que ainda opere com critérios que já não correspondem ao nível do estágio de desenvolvimento das forças produtivas, possa desconhecer que a linguagem poética sempre vai criar modos de rever a si própria. O meio pode ser a areia, o papel ou o ecrã, a Musa é indiferente ao engenho solitário, prefere sentir novos olhares febris, mesmo que para velhos temas.
Num movimento barroco retoma-se o início deste ensaio como que para o inacabável exercício do rever: a poesia fixa o olho no poema e no poeta. A Musa não dá pra qualquer um. Sempre foi assim, os bardos sabem disso. Pound acertou: Beaut is difficult...
NOTAS:
A poesia sempre foi digital, isto é, se for levado em consideração o significado mais primitivo do vocábulo digital, que por sua vez procede do latim digitus, significando, dedo. O poeta usou pena, caneta, máquina datilográfica e teclado do computador, empregando, os dedos. Por outro lado, o termo digital de Poesia Digital, não significa apenas que seja uma poesia feita pelas mãos, mas também pode ser compreendido como a poesia traduzida para uma linguagem matemática, baseada nos números de dígitos (dedos) que o homem possui.
A Poesia Digital seria a poesia que foi traduzida em dígito, condição essencial para que possa circular no meio informacional. Traduzir em dígito é digitalizar informações como fontes, cores, movimento, sons etc., o texto poético, com todas as informações que a criatividade de um poeta pode criar, é manifesto numa linguagem que baseia seu funcionamento na lógica binária em que toda a informação é guardada e processada sob a forma de zeros (0) e uns (1). Este preceito tem sua origem no sistema de numeração indo-arábico de base dez, pois são dez os dedos das duas mãos da maior parte dos seres humanos. Com este sistema só é possível contar valores inteiros, por essa característica é que se estabeleceu a analogia entre dígitos e digital, uma vez que trabalham com valores discretos, finitos, no caso, seqüências de zeros e uns.
Neste texto, entretanto, Poesia Digital deve ser compreendida não apenas como uma poesia traduzida em código numérico/binário, mas como produto de manipulação de “dedos inventivos que criam” como quer o poeta André Vallias, a poesia traduzida em dígitos, aqui, é “talvez aquilo que sempre escapa por entre os dedos, e nos faz de novo agarrar o vazio...” (VALLIAS, [online] Disponível na internet via URL:http://www.textodigital.ufsc.br) Capturado em 08/03/2006.
O átomo é formado por um pequeno núcleo, constituído por prótons e nêutrons, envolvido por uma região muito maior, denominada eletrosfera, em que se encontram os elétrons, que, por sua vez, estão distribuídos em sete grupos, pois se encontram a diferentes distâncias em relação ao núcleo. Esses grupos são denominados camadas eletrônicas ou níveis de energia. As camadas podem ser representadas pelas letras K, L, M, N, O, P e Q ou pelos números 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7. A visualidade do poema corresponde exatamente a essa configuração. Os versos estão dispostos em sete camadas, como os elétrons, e o significante SOS ocupa a posição central, a exemplo do núcleo atômico. Portanto, não se trata de uma visualidade meramente fortuita, mas sim de um componente vital para a carga semântica do poema, parte de um projeto previamente pensado.
O conceito de literatura esteve ligado, até há pouco, a um juízo de arte refratário a decomposições, ou seja, uma idéia de arte “inteira” não miscível ou alterável. As últimas raias da arte foram excedidas desde que a produção artística migrou da escala do indivíduo à da sociedade global. Mesmo mantendo-se como a mensagem de um indivíduo, o artista, para um outro indivíduo, a produção artística foi profundamente alterada. A reprodução técnica, hoje representada pelo seu mais novo baluarte, o computador, originou um novo modo de comunicação estética. O meio técnico com seus multimeios provocou a geração de novas matrizes artísticas e culturais, bem como novos modelos de sensibilidade estética. E nesse tocante, Walter Benjamin, apesar de muito mal lido e interpretado, em seu ensaio A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade, é muito lúcido em enfrentar o problema da delimitação e da definição das fronteiras da arte a partir da reprodutibilidade técnica. O ensaio confronta os valores veiculados pelos produtores artístico-culturais, suas técnicas tradicionais e os meios técnicos impactantes que atendem às necessidades de produtores capazes de gerar novos modelos estéticos.
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