Inelutável modalidade do visível (ineluctable
modality of the visible): pelo menos isso se não mais, pensado através dos
meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui para ler, marissêmen e
maribodelha, a maré montante, estas botinas carcomidas. Verdemuco,
azulargênteo, carcoma: signos coloridos. Limites do diáfano. Mas ele
acrescenta: nos corpos. Então ele se compenetrava deles corpos antes deles
coloridos. Como? Batendo com sua cachola contra eles, com os diabos. Devagar.
Calvo ele era e milionário, maestro di
color che sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se se
pode por os cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha
os olhos e vê.
Não há apresentação mais adequada à poesia reunida de Ademir Demarchi
que esta referência ao livro Ulysses
de James Joyce. Nele, o mar nos é dado a ver pelo que ali podemos ver de nós
mesmos em espelho, ou seja, no duplo separado pela imagem. E a isso
acrescentaria de Georges Didi-Huberman: "O que vemos só vale – só vive – em
nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável, porém, é a cisão que separa dentro
de nós o que vemos daquilo que nos olha."
O mar é espelho pelo qual vemos e somos vistos e isso é algo contra o qual não
podemos lutar: a cisão daquilo que é visível.
Pirão de Sereia é o título da reunião dos poemas que Ademir Demarchi produziu ao longo
de seus trinta anos de poesia. Inscrita no nome que dá título à reunião, a
posição dos poemas e a do poeta mantêm o gesto de relerem-se um no outro e de
olhar para o passado procurando nele o que há para ser dito/pensado ainda. A
posição com que se mira o grande espelho é a de pensador do presente, e nada
mais adequado do que o ambiente para a reflexão ser o de um banquete onde a
comida é um pirão. Pirão tem o sentido culinário de ser uma papa
de farinha de mandioca feita geralmente com caldo temperado resultado do
cozimento de legumes e/ou carnes (peixe, ave ou animais de carne vermelha). Além de seu sentido culinário, tem também um
sentido sexual, de uso jocoso, derivado do culinário que é o de mulher
fisicamente desejável. Portanto, nesse título Pirão de Sereia misturam-se duas práticas. Além de ser caldo engrossado e tornado consistente com a farinha – pó
resultante do moer da mandioca – seu teor é duplamente de ser mulher perigosa,
de um lado o popularmente "mulherão" e, de outro, o do perigo da morte que vem
com o desejo pelo desconhecido, um dos topoi
mais frequentados pela poesia épica. Esse pirão é a comida com a qual se
celebra o banquete dos trinta anos de poesia nele reencontrados.
Ademir Demarchi vê o presente no pirão e é olhado por ele através dos
olhos da sereia, que estão ali boiando no caldo e olhando. O poeta com isso enfrenta
o maior temor de Ulysses: sucumbir diante desse desconhecido em que se
constitui o mar, esse mundo interior que só vem à tona no ato diviso do (re)ver.
A seleção do que entraria dos trinta anos de poesia na composição do
pirão oferece o privilegiado momento ao poeta de redefinir as linhas de sua
própria poesia. De um passado pouco
frequentado ele seleciona o livro Maria, a
cidade sem rosto, poemas escritos em 1985 ou em anos proximamente anteriores,
resultados da reciprocidade entre a cidade e seu habitante/observador, diga-se
afetado e que só por isso pode criar o poema e produzir o sujeito. No poema "O
homem da Getúlio ou vamos destruir a cidade", é forte e evidente esse
paralelismo entre sujeito e cidade. Curiosamente, o céu que o poema apresenta em
1985 como meio através do qual o inelutável do visível se dá a ver é o
equivalente do mar e sua mesma função exercida nos poemas de 2012, nos poemas
de Costa a costa.
olhe-me, céu enorme
espelho e reflexo de meus desejos
crive meu semblante inerme
derrube os pássaros ocos que voam ideias e sons vazios
e verta seus estrondos, sua fúria
pra acordar os últimos deuses que dormem
em meu corpo
O céu cumpre a função de ser espelho, "reflexo de meus desejos",
convocando à ação o homem da avenida Getúlio Vargas ou convocando o leitor, em
claro diapasão da poesia de um Drummond, à participação na modernidade. Esse
tom se desdobra também no poema "Estética de um poeta" quando rejeita a forma
bem acabada e o caminho fácil.
o melhor de todos
é o que não tem métrica
não tem meta
e não segue a seta.
Trata-se de uma poesia que se nega a realizar o poema, concluindo ou
dando-lhe a forma final, em que comparecem, além de Drummond, a irreverência
não-conformista do banquete de Oswald de Andrade. O que não quer dizer que a
morte não esteja presente nesses seus versos e em outros de anos posteriores.
Nos poemas de Maria, a cidade sem rosto,
aparecem de modo mais antropofágico ou autofágico com irreverência e
humor:
sou a morte que retorna
inexistente: in-existir
insistente para várias visitas
e com a certeza de que o poema é dado à monumentalização mesmo que esta
seja a da pichação no muro da cidade sem rosto.
É com o livro de poemas Os mortos
na sala de jantar que o poeta melhor se compreende e compreende a sua
poesia como aquela que "recusa" a comodidade e aposta no compartilhamento
cultural, isto é, no banquete – jantar – antropofágico, onde estão presentes a
festa e a morte, ou seja, aqui a poesia se compreende a si mesma como cerimônia
que deve propiciar o espelhamento, o (re)ver
a si mesmo. Como se lê no poema "Epitáfios":
epitáfios
são epígrafes
de
histórias que continuam
túmulo
adentro
A morte compreende-se, pois, como parte do destino de toda a poesia e em
especial com a história do poema. Em "O valor de um poema", pode-se ler:
num
obscuro livro sem onde
há
escavado um breve poema
esquecido
e por ser estripado
uma
vala, cova comum
a
ser por todos dividida e compartilhada
em
cada reentrância do seu vazio
silêncio
odor
e
éter
inútil,
eternamente aberto e em obras
forrado
com escamas destrinchadas de deuses
constante
receptáculo do nada à espera de seu outro eu
Furio Jesi em sua leitura do poema de Rimbaud Bateau Ivre demonstra na análise da história da forma poema o
quanto ela esteve relacionada ao rito de celebração da morte, uma vez que todo
poema nasce para ser monumento do que ele foi, portanto, túmulo, próprio túmulo
erigido por si mesmo, mas que se coloca em posição de abertura e exposição à
ação do tempo, da história e toda sua força erosiva. Jesi, retomando o verso de
Mallarmé, "calme bloc ici-bas...", afirma que está assinalado na forma do poema
essa inscrição lapidar e que o campo da poesia é muito parecido ao do
cemitério.
A poesia de Ademir Demarchi celebrada nesses trinta anos sabe-se já
monumento/lápide, porém se coloca em atitude de permeabilidade à ação do tempo
e da história, atitude como se observou muito afeita a certa poesia
decadentista. Por isso, não é gratuito o leve orientalismo presente no extenso
poema "Do sereno que enche o Ganges":
tudo é espera
os dias passam azuis
enquanto não chega a hora
a todos enreda a rotina hera
o coração ao crepúsculo
bate ao ritmo da retina
Bem como o diapasão nietzschiano, diga-se tão pouco investido pela
poesia brasileira moderna, dos aforismos de Preceitos
da dúvida:
***
aos
vivos senectudes
aos
mortos virtudes
***
a
proibição
é o
alimento de deus
Decadente, mas também barroco, é o desejo pela arte e não por sua
realização, a ponto de sobrepor-se ao acabamento perfeito dos versos apenas o
desejo de sua inscrição como se fosse poesia. Nada mais adequado ao pensamento
do contemporâneo. Daqui deriva a escrita em letras minúsculas, nunca escrevendo
nomes próprios como próprios, evitando a todo custo o ponto final e as
exclamações de fim de frase. Até chegar ao ponto de inscrever como epígrafes de
um poema as pichações em diálogo dissonante feitas num muro da cidade que não
tem rosto:
"poesia agora" -
[de uma pixação de muro]
"ora, amigo, e poesia tem hora?"
[ - no mesmo muro, a resposta]
Estamos diante da poesia, da poesia de Ademir Demarchi, seu espelho e
simultaneamente lápide, de cada um e de todos: a poesia vive.
Notas