A Poesia sem pele, de Lau Siqueira, se expõe num tom de “fragilidade∕ no universo∕ absoluto” da palavra. Sem pele, “sem medo de∕ transbordar”. A poesia de Lau é assim: memória: “costura de ∕ instantes diluídos ∕ na eternidade”. O sujeito que habita seu universo se desdobra: é um “fingidor dos sentimentos ∕ voláteis colhendo impressões ∕ fervidas vivas”.
Seu olhar flagra a presença digital de uma espécie de naturalidade que assombra. A naturalidade de um tom que emerge de espaços e tempos que acabam não sendo mais do “eu” que os revela no poema, mas muito nosso, na perspectiva de um pensamento que percebe que “vvvvvvvvveloz∕ a vida pássaro∕ por nósssssss”.
Talvez seja mesmo “Poetria”, o poema que melhor fotografe a nudez da poesia de Lau, essa simplicidade que se limita com a lâmina de uma adaga: sua intestinação, sua fluidez fingida: “poema é face descoberta∕ de tudo que pulsa∕ poema é atitude permanente∕ em tudo que passa∕ (que massa)”. “Descoberta” e “atitude”; “tudo que pulsa”; “tudo que passa”. As imagens do pássaro, das asas, do rio, as imagens do homem na sua dimensão frágil, como um “persomargem”, ou como um incomodado frente ao tempo. “Fragmentes” acentua esse voltar-se para a dimensão do tempo que passa, irrevogavelmente, sem que a vida∕ devolva nenhum∕ dos pedaços”. Eis a experiência do corte com que a lâmina dessa adaga de palavras cinge o mais desprotegido olhar.
As imagens da natureza na poesia de Lau Siqueira assumem uma dimensão cósmica, como um signo que condensa no átomo do poema um elétron que pulsa, que constrói pela pulsão entre olhar e objeto uma relação magnética e anterior ao tempo. Quero com isto afirmar que sua poesia penetra os objetos extraindo deles a dimensão de um mundo ainda não visto. Refiro-me aqui a esse viés de sua poesia que não se aliena do mundo e que o revela naquilo que tem de desafiador: sua carga tensa que abole qualquer beleza imposta pela convenção. Em “quarta capa”, os versos remetem para essa tensão: “O poeta ∕ é o que busca na palavra ∕ a dimensão do átomo. ∕ O silêncio extremo ∕ por detrás de cada fato”. A natureza, com seus pássaros, rios e árvores, na poesia de Lau Siqueira, como em “rio jaguaribe”, “tese de machado”, “clorofila”, “curicacas”, “alfabélico”, “a natureza do espetáculo”, para citar alguns, se fazem dessa percepção ruidosa do sujeito, que adentra o mundo com a imagem da natureza como filtro, para revelar para nós algo que somente a poesia, na sua visão íntima das coisas, pode dizer na garganta do poema tudo aquilo que represa, tudo aquilo que não pode ser dito. Veja-se o “concerto para cordas vocais”:
a garganta
é a represa
de tudo
que não pode
ser
d
i
t
o
exceto pelas multidões do incontido
Charles Baudelaire, em “O pintor da vida moderna”, ao falar sobre a natureza como o lugar da imitação do Belo, revela que tudo que é “belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo. O crime, cujo gosto o animal humano adquiriu no ventre de sua mãe, é de origem natural.” Mas tudo, acrescenta o poeta, esse mal primitivo e esse belo construído que humaniza o animal que nos habita, revela-se como arte. Assim leio os poemas de Poesia sem Pele, de Lau Siqueira, como desenhos atentos desse olhar que entrevê na natureza primitiva das coisas a poesia como o dado de utopia, que revela no animal de tudo o humano que vocifera ou que eterniza aquilo que ainda espera. Seu “teoria literária” nos antecipa já essa via de descoberta:
das águas turvas
nascerá o que não brota
nos jardins e nos prados
onde a vida punga
como equação do silêncio
A poesia de Lau é assim: lâmina de folha a cortar na palavra sua presença aguda de existência volátil: um “ponto google”, o cerne de um palimpsesto de descobertas no corpo do poema:
todo esplendor
é nada
o que encanta
são as
invisibilidades
Deixo ao leitor a descoberta desta poesia, que se deseja nua sem desespero de olhares.
|