ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 BOBOK, DE DOSTOIÉVSKI, E OS DIÁLOGOS DE MORTOS, DE LUCIANO

Tida Carvalho

 

Em seu estudo sobre Dostoiévski, Mikhail Bakhtin fez admiráveis observações a respeito da natureza polivalente do estilo dostoievskiano, que, na sua opinião, parece sempre dirigir-se para um possível interlocutor. Os seus diálogos nunca se dão entre pessoas totalmente desconhecidas ou distantes uma da outra: "Dostoiévski sempre apresenta dois personagens de modo que cada um esteja intimamente ligado à voz interior do outro. [...] O vínculo essencial e profundo, ou, em outras palavras, a coincidência parcial da palavra de um com a palavra secreta e interior do outro é um elemento indispensável nos seus mais importantes diálogos".[1]

A combinação orgânica do diálogo filosófico, do elevado simbolismo, do fantástico da aventura e do naturalismo de submundo constitui uma particularidade do gênero que se mantêm na prosa romanesca de Dostoiévski. Também o universalismo filosófico e o tratamento das "últimas questões", apresentando o homem e toda a vida humana em sua totalidade. A estrutura da menipéia é triplanar (céu, terra, mundo subterrâneo): desloca-se da terra para o Olimpo e para o inferno, provocando assim os "diálogos no limiar" que, na literatura do período da Reforma, eram chamados de "literatura das portas do céu". A representação do inferno, onde germinou o gênero específico dos "diálogos dos mortos", foi amplamente difundida na literatura européia do Renascimento, nos séculos XVII e XVIII.

Na menipéia surge a modalidade do fantástico experimental, estranho à epopéia e à tragédia antiga. Trata-se de uma observação feita de um ângulo de visão inusitado, como, por exemplo, de uma altura na qual variam acentuadamente as dimensões dos fenômenos da vida em observação. É o que ocorre em Icaromenipo, de Luciano. Essa linha deixou rastros em épocas posteriores, como em Rabelais, Swift, Voltaire, Machado de Assis e outros. Na experimentação moral e psicológica, as fantasias, os sonhos e a loucura destroem a integridade épica e trágica do homem e do seu destino, desenvolve-se uma aventura errante em que se revelam as possibilidades de um outro homem e de outra vida a qual o faz perder a sua perfeição e a sua univalência, bem como de coincidir consigo mesmo. Estabelece-se uma relação entre pesar, decepção, raiva e riso. Um riso que cultivamos como uma via para o conhecimento. A destruição da integridade e da perfeição é facilitada pela atitude dialógica face a si mesmo. As cenas de escândalo, de comportamento excêntrico, de discursos e declarações inoportunas são freqüentes e penetram as reuniões dos deuses no Olimpo, por exemplo. A "palavra inoportuna" o é por sua franqueza cínica ou pelo desmascaramento profanador do sagrado ou pela veemente violação da etiqueta.

Esse gênero se formou na época da desintegração da tradição popular nacional, da destruição de normas éticas que constituíam o ideal antigo do "agradável" ("beleza-dignidade"), numa época de luta tensa entre escolas e tendências religiosas e filosóficas heterogêneas, quando as discussões em torno das "últimas questões" se converteram em rotina entre todas as camadas da população e em qualquer parte: na praça pública, nas ruas, nos banhos etc. Nessas ocasiões, a figura do filósofo, do sábio (o cínico, o estóico, o epicurista) ou do profeta e do milagreiro tornou-se típica. Era a época de preparação e formação de uma nova religião universal: o cristianismo.

Na Idade Moderna, a introdução da menipéia em outros gêneros carnavalizados é acompanhada de sua contínua evolução em diversas variantes e sob diferentes denominações: o "diálogo luciânico", as "conversas sobre o reino dos mortos", a "novela filosófica", o "conto fantástico" e o "conto filosófico".[2]

Na análise de Bakhtin, em "Bobok", o narrador - um jornalista - encontra-se no limiar da loucura. Além disso, ele não é um homem como todos, isto é, é aquele que se desviou da norma geral, do curso normal da vida, como uma variação do "homem do subsolo". Seu tom é vacilante, ambíguo, às vezes bufo. As frases são truncadas, curtas e categóricas, mas ele se esquiva da última palavra. Assim é a caracterização de seu estilo, feita por um amigo: "Teu estilo se altera, é destrutivo. Tu o golpeias, o trituras - em proposições subordinadas, depois destas subordinadas uma outra subordinada, em seguida um parêntesis, e recomeças a retalhar..." (p. 209).[3]

Como um microcosmo de toda a obra de Dostoiévski, o conto desenvolve os seguintes temas: a idéia de que se não existem Deus nem a imortalidade da alma "tudo é permitido"; o tema da confissão sem arrependimento e da "verdade desavergonhada"; o tema dos últimos lampejos de consciência (relacionado, em outras obras, com os da pena de morte e do suicídio); o tema da consciência situada à beira da loucura; o tema da absoluta "inconveniência" e da "fealdade" da vida desvinculada das raízes populares e da fé popular.[4]

Desde o início do relato, encontramos o tom polêmico. Trata-se de um escritor não-reconhecido, que já começa a narração com uma polêmica com um colega, que o acusa de embriaguez. Discute com editores que não publicam suas obras e com o público, é incapaz de entender o humor 'normal', sente-se desconfortável com todos os seus contemporâneos. E, o que é mais interessante, polemiza também, mais adiante, com os "mortos contemporâneos", que ele ouve conversar. Para distrair-se, o narrador vai a um enterro, e o conto se lança no espaço da carnavalização. A impressão que tem dos mortos não é a melhor possível: "Não gosto disso, chega o que se sonha".[5] Percebe ao seu redor diversas categorias de túmulos, a hierarquia mantém-se no outro reino, pelo menos para os vivos ao enterrarem os mortos.

Desenvolve-se assim um juízo acerca da relatividade e da ambivalência da razão e da loucura, da inteligência e da tolice desde a descrição de um cemitério e de uma cerimônia fúnebre. Todo esse está impregnado de uma atitude familiar e profana face ao cemitério, às cerimônias fúnebres, ao clero, ao mortos e ao próprio "mistério da morte": combinada com o jogo de oxímoros e mésalliances carnavalescas, ela é impregnada de descidas e subidas e, ao mesmo tempo, de um naturalismo grosseiro.  

Eis alguns exemplos:

 

Saí para me distrair e fui dar comigo num enterro... Há uns vinte e cinco anos, penso, eu não ia ao cemitério. O lugar não é nada atraente. Para começar, o cheiro. Uns quinze mortos acabavam de ser levados para lá. (Talvez a noção de "atacado", de muitos mortos, banalize ainda mais a situação. Não se perdeu alguém importante, mas são perdas normais que acontecem a cada dia). Mortalhas de categorias diferentes. Havia mesmo dois catafalcos, o de um general e o de uma dama. Numerosas figuras tristes, desgostos bem simulados, muita alegria franca. Acrescento que não havia lugar para chorar: é preciso levar em conta os pequenos proveitos. Mas o cheiro, o cheiro! Eu não queria ser capelão de um cemitério.

Examinei com circunspecção o rosto dos mortos, não confiando de modo nenhum em minha impressionabilidade. Havia expressões de doçura e outras desagradáveis. Os sorrisos, em geral, não são nada belos e mesmo, em alguns, estão longe de o ser. Não gosto disso, chega o que se sonha.[6]

Durante a missa, sai da igreja para tomar ar e resolve permanecer no cemitério neste dia cinzento, mas seco. Lançou um olhar sobre as sepulturas e o que viu achou ignóbil.

Água, e que água! Toda verde... e, meu Deus, sim, a todo instante o coveiro remexia, para as esvaziar. Saí, antes de terminada a cerimônia, e perambulei do outro lado da grade. Pertinho há um asilo; um pouco mais longe, um restaurante. Não é mau, esse restaurantezinho: comi ali um pouco e deixei o resto. Não tardou muito a se encher da gente que tinha assistido às exéquias. Notei muita animação e alegria comunicativa. Comi e bebi.[7]

Sentado sobre uma sepultura, mergulhou numa "meditação de circunstância", e na pauta de reflexões, pensou no problema da admiração:

Sem dúvida, admirar-se com tudo é tolo, ao passo que é muito mais elegante não se admirar com coisa alguma, o que se considera como sinal de bom-tom. Mas, em última análise, é pouco provável que seja assim. Acho, quanto a mim, que é muito mais tolo não se admirar com coisa alguma, que admirar-se com tudo. Bem melhor: não se admirar com coisa alguma quase equivale a nada estimar. Um imbecil, de resto, não pode sentir estima.[8]

Nesses trechos, percebe-se a combinação ambivalente: morte-riso (a alegria); o banquete ("comi um pouco e deixei o resto"). E essas águas remexidas? Seriam as águas do Letes? O esquecimento revolvido em meio à perturbação do meio.

Segue-se uma divagação breve e vacilante do narrador que, sentado sobre a lápide, reflete acerca do tema do espanto e do respeito, aos quais os contemporâneos renunciaram. Essa consideração é importante para compreender a concepção do autor. Em seguida vem um detalhe simultaneamente naturalista e simbólico.

Neste ponto perdi o fio das minhas idéias. Não gosto de ler epitáfios: todos se parecem. Sobre uma lápide, não longe de mim, se encontrava um sanduíche meio comido. "É bastante estúpido, disse a mim mesmo, e fora do lugar". Eu o varri para a terra, pois que não era pão, mas apenas um sanduíche. E depois, afinal, esmigalhar o pão na terra não é pecado, parece, é sobre o assoalho que é pecado. Será bom eu me informar a respeito.[9]

O detalhe estritamente naturalista e profano - um resto de sanduíche sobre a lápide - dá motivo para evocar a simbólica carnavalesca: permite-se esfarelar pão sobre a terra - trata-se de semeadura, de fecundação - mas não se permite sobre o chão - seio estéril.

Em seguida, desenvolve o tema fantástico: o narrador ouve a conversa dos mortos que estão debaixo do chão. As suas vidas ainda continuam, por algum tempo, nos túmulos. De repente, começa a ouvir toda a espécie de coisas, inclusive percebe que os mortos jogavam cartas... de memória. A cena ouvida é hilariante:

- Excelência, não há meio de jogar sem garantias. É preciso absolutamente fazer um morto, e deverá certamente haver um carteamento sem valer.

-  Mas onde encontrar o morto aqui?[10]

São vários mortos que conversam e que se distribuem entre as classes sociais: um general, um homem do povo, uma dama da sociedade, o conselheiro secreto, o jovem bem nascido, conde Petrovich que na verdade era barão, o funcionário, um engenheiro, uma mocinha de dezesseis anos (uma 'Menipa'), entre outros. Todos precisam saber que naquele lugar reina uma nova ordem: - "Que nova ordem é essa então?" - "É que nós estamos, por assim dizer, mortos, Excelência".[11]

A uma certa altura, uma ex-dama bela e insuportável, é alertada pelo homem do povo sobre o cheiro horrível que exalava:  

Eu não me volto, mãezinha, e meu cheiro não tem nada de especial, atendendo-se que estou ainda bem conservado, enquanto que vós, a bela, estais lindamente estragada. Assim, cheirais insuportavelmente, mesmo considerando o lugar. É por delicadeza que não digo nada...[12]            

"Que mulher suja", diz dela o general. A decrepitude mortal acompanha a decrepitude humana e moral anterior. No diálogo 18, entre Menipo e Hermes, o primeiro quer saber onde estão os belos e as belas:  

Hermes: ... Dê uma olhada naquela direção, à direita, lá onde está o Jacinto, o Narciso, Nireu, Aquiles, Tiro, Helena, Leda, em suma, todas as beldades de antigamente.

Menipo: Só estou vendo ossos e crânios desnudos das carnes, praticamente iguais.

Hermes: Mas esses ossos que você parece desprezar são exatamente o que todos os poetas admiram![13]

Entre tantos 'disparates', o narrador não se contém: "O quê, era a isso que chamavam um morto moderno? Todavia, eu devia escutar e não me apressar demais a tirar conclusões". No diálogo Hermes, Caronte e diversos mortos, o primeiro concede a Menipo o privilégio da proedria, reservado às pessoas ilustres nas seções de teatro, nas assembléias e nos jogos, para que ele pudesse aproveitar melhor o espetáculo que era a travessia. Neste conto, o narrador é este Menipo a quem é dado o privilégio de assistir ao verdadeiro espetáculo da vida tornando-se morte. Em toda a narrativa, ele se cerca de outros menipos, como esta 'menipa' que o surpreende pelo riso:  

confesso que eu mesmo me surpreendi: alguns dentre eles, aliás, estavam já enterrados desde a antevéspera, como por exemplo uma mocinha de dezesseis anos, que não fazia outra coisa senão rir... ou antes, casquinar, com um riso ignóbil e feroz.[14]

O Conde banaliza a importância dos títulos de nobreza e de toda a hierarquia social: "e depois, não sou conde, sou barão, unicamente barão. Somos uns reles baronetes, descendentes de lacaios, e depois, rio-me de tudo isto. Não passo de um canalha da pseudonobreza, e que se considera como um "amável libertino". E assim continua sua dessacralização da vida e da morte: "Não creio em nada, e rio-me disso". Ao que o Vovô, o general, responde: (...) "sou inteiramente da vossa opinião... A vida comporta tantos sofrimentos, tantos dilaceramentos, e tão poucas distrações... eu gostaria de estar por fim tranqüilo e, pelo que vejo, espero tirar daqui tudo.[15] Que estranho investimento este na vida tranqüila e feliz que a morte pode oferecer.

Contrapondo-se a essa idéia de paraíso artificial da morte, aparece a constatação da morte como 'farsa': como é possível falarmos aqui? Por que estamos mortos e todavia falamos: damos a impressão de nos movermos e entretanto não falamos: damos a impressão de nos movermos e entretanto não falamos e não nos movemos absolutamente. Que significa esta farsa?[16]

E é o filósofo (que na morte continua sendo o amigo da sabedoria) Platão Nikolaievitch que pode ir aos fatos. É engraçado porque também aqui, no conto, ele fala pela voz de outrem:

Ele explica isso de maneira muito simples, e precisamente pelo fato de que, lá em cima, quando estávamos com vida, cometíamos o erro de considerar a morte aqui embaixo como sendo a morte. O corpo aqui se dispõe, por assim dizer, a viver ainda uma vez, restos de vida se concentram, mas unicamente na consciência. É - não vo-lo saberia explicar - a vida que se prolonga como que por inércia. Tudo está concentrado, de acordo com a opinião do nosso filósofo, na consciência, e persiste ainda dois ou três meses... algumas vezes seis meses... Há um aqui, por exemplo, quase inteiramente decomposto que, uma vez cada seis semanas, murmura de repente uma palavra, uma palavrinha só, naturalmente sem significação: "bobok, bobok, bobok". Logo, é porque há nele ainda uma imperceptível centelha de vida...[17]

Cria-se com isto uma situação excepcional: a última vida da consciência até o sono completo, liberta de todas as condições, situações, obrigações e leis da vida comum é, por assim dizer, uma vida fora da vida. Como será aproveitada pelos "mortos contemporâneos"? A consciência dos mortos, manifesta-se com liberdade absoluta, não restrita a nada. E eles se revelam.

Descortina-se o típico inferno carnavalizado das menipéias: uma multidão sortida de mortos, que não conseguem libertar-se imediatamente das suas posições hierárquicas e relações terrenas, conflitos cômicos que surgem nessa base, blasfêmias e escândalos. Do outro lado, as liberdades de tipo carnavalesco, a consciência da total irresponsabilidade, o sincero erotismo sepulcral, o riso nos túmulos.

O "rei" desse carnaval dos mortos é um barão decaído: "Somos uns reles baronetes, descendentes de lacaios, e depois, rio-me de tudo isto"[18] (assim como Menipo). Este é o barão que, fugindo às interpretações do filósofo, declara:  

Basta, e o resto, estou seguro, são asneiras. A coisa certa são os dois ou três meses de vida e no fim das contas: - bobok. Proponho a todos passarmos esses dois meses tão agradavelmente quanto possível, e para isso organizarmo-nos sobre outras bases. Senhoras e senhores! Eu vos proponho não ter mais nenhuma vergonha![19]

Na morte, continuariam as reminiscências... da vida, do eterno, do nada, do que se prolonga como que por inércia. E essa palavrinha sem significação: bobok, é repetida ou ecoada na escuta no limiar, nessa centelha de vida que também poderia ser a centelha de morte.

No Górgias, Platão, através de Sócrates, tem a seguinte opinião sobre a morte:  

A morte vem a ser apenas a separação de duas coisas, alma e corpo; depois de se apartarem um do outro, cada qual mantém o seu próprio estado, não muito inferior ao de quando o homem estava vivo. O corpo conserva sua natureza e, visíveis, todos os bons e maus tratamentos recebidos. (...) Em suma, por algum tempo após a morte será visível tudo, ou quase tudo, que uma pessoa deparou a seu corpo durante a vida.[20]

Como se estivesse ressoando esse diálogo, o conto Bobok continua atuando nesse limiar entre vida e morte, e até os sentidos são mantidos por algum tempo:

Lá em cima o nosso filósofo nada em plena bruma. Precisamente no que concerne ao olfato, ele observou que o fedor que se sente aqui é de certa forma espiritual - um fedor que viria da alma, para que se tenha, nesses dois ou três meses, tempo de se recompor... e seria em suma a verdadeira graça.[2]

É lógico que há um metadiálogo entre o Platão Nikolaievitch e o Platão grego, e que esse diálogo ainda se amplia na proposta irônica do barão: "Proponho a todos passarmos esses dois meses tão agradavelmente quanto possível, e para isso organizarmo-nos sobre outras bases. Senhoras e senhores! Eu vos proponho não ter mais nenhuma vergonha!"[22] Nesse desejo de não ter pudor, a vida na morte funda-se sobre princípios novos e (desta vez) racionais, segundo lemos no decorrer do conto:

Mas, enquanto esperamos, prossegue o conde, peço que ninguém minta. É tudo que exijo, e é o essencial. Sobre a terra é impossível viver sem mentir, porque vida e mentira são sinônimos: mas aqui não mentiremos, a fim de rirmos um bocado. (...) Dispamo-nos e fiquemos nus![23]

Ainda não estamos no melhor dos mundos de Cândido, mas, como diz o general, que "aqui" não passa de um cadáver em putrefação: "Pouco importa, constituí a parte de um todo".[24] E o barulho torna-se ensurdecedor, mas nem isso impediu que o descuidado espirro do narrador fosse ouvido pelos mortos, e o efeito foi surpreendente:

Tudo se tornou calmo como num cemitério, e se desvaneceu. Fez-se um silêncio verdadeiramente sepulcral. Não penso que fosse constrangimento pela minha presença: eles tinham resolvido não ter mais vergonha de nada! Não se pode igualmente supor que tenham tido medo que eu os denunciasse à polícia; que teria vindo fazer aqui a polícia? De tudo isso concluí, involuntariamente, que deviam ter algum segredo desconhecido dos mortais, e que evitam divulgar. "Então, meus amigos, disse comigo, voltarei ainda, para vos fazer uma visita"; e com estas palavras, deixei o cemitério.

E, de repente, "fez-se um silêncio verdadeiramente sepulcral"[25]. E a apreciação conclusiva do narrador é interessante pelo tom: "Não, não o posso admitir, não, em verdade, não! Bobok não me perturba (eis aí, então, aonde queria chegar esse bobok).[26]

E o que pensar então? Será que para onde todos vamos será como o lugar onde todos estamos? Na grotesca jornada de um morto pelo mundo dos vivos, uma cômica inversão da viagem do vivo pelo mundo dos mortos, tal como ilustrada no mito de Orfeu, tanto quanto no do narrador da Divina Comédia.

A depravação em semelhante lugar, a depravação das supremas esperanças, a depravação dos cadáveres decompostos e putrefatos - e que não poupa sequer os últimos momentos de consciência! Foram-lhes concedidos, esses momentos supremos e... Mas acima de tudo, num lugar como esse. Não, não posso admitir. (p. 224)

Aqui irrompem no discurso do narrador palavras e entonações quase genuínas de outra voz inteiramente diferente, que irrompem mas no mesmo instante interrompem-se na expressão reticente "e...". E para nós, leitores viventes? Será que encontramos, enfim, alguma coisa de consolador?  Sim, o conto tem um final folhetinesco: "Levarei meu artigo ao Cidadão. Também publicaram lá o retrato de um redator. É possível que mo imprimam".[27] Este o nosso consolo, a vida como narrativa, a morte como narrativa.

Vimos então que neste mundo no limiar de uma lápide e o abaixo da terra, temos personagens que se digladiam, discursam, gritam, agonizam, defendem idéias com a mesma intensidade com que vivem paixões carnais; vão do reles ao sublime num piscar de olhos. Um simples cubículo, ou a parte do cemitério onde se encontra o narrador, é capaz de comportar nobres, burgueses, funcionários públicos, estudantes e vagabundos que debatem acaloradamente entre si - todos envolvidos em questões metafísicas que pairam acima das determinações materiais e das segregações entre o público e o privado. Tudo isto, o embate entre vida e morte, vai diminuindo, diminuindo, até que os sons produzidos não passem mais de uma onomatopéia sem sentido: bobok, bobok, bobok.

Neste conto rompem-se as "cordas podres" da mentira oficial e individual e revelam-se as almas humanas, horríveis como no inferno ou, ao contrário, radiantes e puras. Por um instante as pessoas se vêem fora das condições habituais de vida, como na praça pública carnavalesca ou no inferno, e então se revela um outro sentido - mais autêntico - delas mesmas e das relações entre elas.

Bobok, uma onomatopéia que visa reproduzir o ruído que faz uma bolha de ar quando eclode na superfície da água parada, como quando um dos mortos "murmura de repente uma palavra, uma palavrinha só, naturalmente sem significação: "bobok, bobok, bobok"", é essa a palavra, nenhum sentido, apenas barulho.

De qualquer modo, mesmo não sabendo explicar o por quê desse nome 'bobok', o narrador/ouvinte dos mortos desse conto provoca essa interrogação em seu amigo: "acontecerá algum dia (de ele) não estar embriagado?"[28]. E, desde o início, associa-se o literato à loucura, ao que ele retruca mentalmente: "Todavia, se é fácil entre nós fazer perder a razão, não há nenhum exemplo de que a tenham inculcado"[29]. Pode-se associar também o narrador e todo o conto, a uma estirpe filosófico-existencial - ao cinismo e a Diógenes, Crates, Menipo, parentes próximos: "O mais inteligente dos homens é, na minha opinião, aquele que se trata de imbecil ao menos uma vez por mês, e já ninguém hoje é capaz disso" (...) "Foram tão bem embaralhadas as cartas que o homem inteligente não se distingue mais do imbecil"[30].

A conclusão de Caronte, em Caronte ou os contempladores, de que todos os homens parecem "borbolhas" (inflam e explodem), é aproveitada em Dostoiévski, que trabalha este tema luciânico de forma ao mesmo tempo direta e enriquecida, também inflada como uma borbolha, que dá à gênese do conto e à forma como ele reaproveita a tradição, um sabor e um vigor excitantes, exuberantes de dialogismo e polilingüismo, não só entre as personagens, mas entre obras e personagens de autores e tempos diversos. Caronte diz que os homens são como bolhas que inflam e estouram, e em Bobok, os homens se reduzem a um som, um barulhinho, ou seja, um estouro de bolha que inflou-se tanto que agora fica reduzida a sua linguagem, linguagem onomatopaica que nem de longe lembra a nobre e eloqüente linguagem dos homens vivos e "poderosos".

"Bobok não me perturba...".

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

DOSTOIÉVSKI. F. M. Contos de Dostoiévski - Bobok. Introd., sel. e trad. Ruth Guimarães. São Paulo: Cultrix, 1985.

LUCIANO. Diálogos de mortos. Tradução e notas de Maria Celeste Consolin Dezotti. São Paulo: Hucitec, 1996.

PLATÃO. Górgias ou A oratória. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Difel, 1986.

PLATÃO. Fédon. Introd. Trad. Maria Teresa Schiappa de Azevedo. brasília: Ed. UnB, 2000.

 *

Tida Carvalho (Belo Horizonte/MG). Escritora, ensaísta, pesquisadora e professora de Literatura Brasileira e Portuguesa, da PUC Minas. Doutora em Literatura Comparada pela UFMG com a tese "Representações de Diálogos dos Mortos na Literatura Ocidental". Publicou "O Catatau de Paulo Leminski: (des)coordenadas cartesianas" (São Paulo, Livro Aberto, 2000).  tidacarvalho@oi.com.br


[1] BAKTHIN, Problemas da poética de Dostoiévski, p. 233.

[2] BAKHTIN, Problemas da poética de Dostoiévski, p. 115-118.

[3] As referências ao conto são da seguinte edição: Dostoiévski, contos. Trad. Ruth Guimarães. São Paulo: Cultrix, 1985, p.207-224.

[4] Cf. Bakhtin, 1981, p. 124.

[5] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 220.

[6] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 209-210.

[7] IDEM, p. 210.

[8] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 211.

[9] IDEM, p. 211.

[10] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 212.

[11] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 213.

[12] IDEM, p. 214.

[13] LUCIANO, Diálogos de mortos, Hermes e Caronte, p. 135-137.

[14] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 217.

[15] IDEM, p. 218-219.

[16] IDEM, p. 220.

[17] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 220-221.

[18] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 218.

[19] IDEM, p. 221.

[20] PLATÃO, Górgias, p. 192.

[21] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 221.

[22] IDEM, p. 221.

[23] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 222.

[24] IDEM, p. 223.

[25] IDEM, p. 223.

[26] IDEM, p. 224.

[27] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 224

[28] IDEM, p. 207.

[29] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 208.

[30] DOSTOIÉVSKI, Bobok, p. 208-209.

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