BOBOK, DE DOSTOIÉVSKI,
E OS DIÁLOGOS DE MORTOS, DE LUCIANO
Tida
Carvalho
Em
seu estudo sobre Dostoiévski, Mikhail Bakhtin fez admiráveis
observações a respeito da natureza polivalente do estilo
dostoievskiano, que, na sua opinião, parece sempre dirigir-se
para um possível interlocutor. Os seus diálogos nunca se dão
entre pessoas totalmente desconhecidas ou distantes uma da
outra: "Dostoiévski sempre apresenta dois personagens de
modo que cada um esteja intimamente ligado à voz interior do
outro. [...] O vínculo essencial e profundo, ou, em outras
palavras, a coincidência parcial da palavra de um com a
palavra secreta e interior do outro é um elemento indispensável
nos seus mais importantes diálogos".
A
combinação orgânica do diálogo filosófico, do elevado
simbolismo, do fantástico da aventura e do naturalismo de
submundo constitui uma particularidade do gênero que se mantêm
na prosa romanesca de Dostoiévski. Também o universalismo
filosófico e o tratamento das "últimas questões",
apresentando o homem e toda a vida humana em sua totalidade. A
estrutura da menipéia é triplanar (céu, terra, mundo
subterrâneo): desloca-se da terra para o Olimpo e para o
inferno, provocando assim os "diálogos no limiar" que, na
literatura do período da Reforma, eram chamados de
"literatura das portas do céu". A representação do
inferno, onde germinou o gênero específico dos "diálogos
dos mortos", foi amplamente difundida na literatura européia
do Renascimento, nos séculos XVII e XVIII.
Na
menipéia surge a modalidade do fantástico
experimental, estranho à epopéia e à tragédia antiga.
Trata-se de uma observação feita de um ângulo de visão
inusitado, como, por exemplo, de uma altura na qual variam
acentuadamente as dimensões dos fenômenos da vida em observação.
É o que ocorre em Icaromenipo,
de Luciano. Essa linha deixou rastros em épocas posteriores,
como em Rabelais, Swift, Voltaire, Machado de Assis e outros.
Na experimentação moral e psicológica, as fantasias, os
sonhos e a loucura destroem a integridade épica e trágica do
homem e do seu destino, desenvolve-se uma aventura errante em
que se revelam as possibilidades de um outro homem e de outra
vida a qual o faz perder a sua perfeição e a sua univalência,
bem como de coincidir consigo mesmo. Estabelece-se uma relação
entre pesar, decepção, raiva e riso. Um riso que cultivamos
como uma via para o conhecimento. A destruição da
integridade e da perfeição é facilitada pela atitude dialógica
face a si mesmo. As cenas de escândalo, de comportamento excêntrico,
de discursos e declarações inoportunas são freqüentes e
penetram as reuniões dos deuses no Olimpo, por exemplo. A
"palavra inoportuna" o é por sua franqueza cínica ou
pelo desmascaramento profanador do sagrado ou pela veemente
violação da etiqueta.
Esse
gênero se formou na época da desintegração da tradição
popular nacional, da destruição de normas éticas que
constituíam o ideal antigo do "agradável"
("beleza-dignidade"), numa época de luta tensa entre
escolas e tendências religiosas e filosóficas heterogêneas,
quando as discussões em torno das "últimas questões" se
converteram em rotina entre todas as camadas da população e
em qualquer parte: na praça pública, nas ruas, nos banhos
etc. Nessas ocasiões, a figura do filósofo, do sábio (o cínico,
o estóico, o epicurista) ou do profeta e do milagreiro
tornou-se típica. Era a época de preparação e formação
de uma nova religião universal: o cristianismo.
Na
Idade Moderna, a introdução da menipéia em outros gêneros
carnavalizados é acompanhada de sua contínua evolução em
diversas variantes e sob diferentes denominações: o "diálogo
luciânico", as "conversas sobre o reino dos mortos", a
"novela filosófica", o "conto fantástico" e o
"conto filosófico".
Na
análise de Bakhtin, em "Bobok", o narrador - um
jornalista - encontra-se no limiar
da loucura. Além disso, ele não é um homem como todos,
isto é, é aquele que se desviou da norma geral, do curso
normal da vida, como uma variação do "homem do subsolo".
Seu tom é vacilante, ambíguo, às vezes bufo. As frases são
truncadas, curtas e categóricas, mas ele se esquiva da última
palavra. Assim é a caracterização de seu estilo, feita por
um amigo: "Teu estilo se altera, é destrutivo. Tu o
golpeias, o trituras - em proposições subordinadas, depois
destas subordinadas uma outra subordinada, em seguida um parêntesis,
e recomeças a retalhar..." (p. 209).
Como
um microcosmo de toda a obra de Dostoiévski, o conto
desenvolve os seguintes temas: a idéia de que se não existem
Deus nem a imortalidade da alma "tudo é permitido"; o
tema da confissão sem arrependimento e da "verdade
desavergonhada"; o tema dos últimos lampejos de consciência
(relacionado, em outras obras, com os da pena de morte e do
suicídio); o tema da consciência situada à beira da
loucura; o tema da absoluta "inconveniência" e da
"fealdade" da vida desvinculada das raízes populares e da
fé popular.
Desde
o início do relato, encontramos o tom polêmico. Trata-se de
um escritor não-reconhecido, que já começa a narração com
uma polêmica com um colega, que o acusa de embriaguez.
Discute com editores que não publicam suas obras e com o público,
é incapaz de entender o humor 'normal', sente-se
desconfortável com todos os seus contemporâneos. E, o que é
mais interessante, polemiza também, mais adiante, com os
"mortos contemporâneos", que ele ouve conversar. Para
distrair-se, o narrador vai a um enterro, e o conto se lança
no espaço da carnavalização. A impressão que tem dos
mortos não é a melhor possível: "Não gosto disso, chega
o que se sonha". Percebe ao seu redor
diversas categorias de túmulos, a hierarquia mantém-se no
outro reino, pelo menos para os vivos ao enterrarem os mortos.
Desenvolve-se
assim um juízo acerca da relatividade e da ambivalência da
razão e da loucura, da inteligência e da tolice desde a
descrição de um cemitério e de uma cerimônia fúnebre.
Todo esse está impregnado de uma atitude familiar e profana face
ao cemitério, às cerimônias fúnebres, ao clero, ao mortos
e ao próprio "mistério da morte": combinada com o jogo
de oxímoros e mésalliances carnavalescas, ela é impregnada de descidas e subidas
e, ao mesmo tempo, de um naturalismo grosseiro.
Eis
alguns exemplos:
Saí
para me distrair e fui dar comigo num enterro... Há uns vinte
e cinco anos, penso, eu não ia ao cemitério. O lugar não é
nada atraente. Para começar, o cheiro. Uns quinze mortos
acabavam de ser levados para lá. (Talvez a noção de
"atacado", de muitos mortos, banalize ainda mais a situação.
Não se perdeu alguém importante, mas são perdas normais que
acontecem a cada dia). Mortalhas de categorias diferentes.
Havia mesmo dois catafalcos, o de um general e o de uma dama.
Numerosas figuras tristes, desgostos bem simulados, muita
alegria franca. Acrescento que não havia lugar para chorar:
é preciso levar em conta os pequenos proveitos. Mas o cheiro,
o cheiro! Eu não queria ser capelão de um cemitério.
Examinei
com circunspecção o rosto dos mortos, não confiando de modo
nenhum em minha impressionabilidade. Havia expressões de doçura
e outras desagradáveis. Os sorrisos, em geral, não são nada
belos e mesmo, em alguns, estão longe de o ser. Não gosto
disso, chega o que se sonha.
Durante
a missa, sai da igreja para tomar ar e resolve permanecer no
cemitério neste dia cinzento, mas seco. Lançou um olhar
sobre as sepulturas e o que viu achou ignóbil.
Água,
e que água! Toda verde... e, meu Deus, sim, a todo instante o
coveiro remexia, para as esvaziar. Saí, antes de terminada a
cerimônia, e perambulei do outro lado da grade. Pertinho há
um asilo; um pouco mais longe, um restaurante. Não é mau,
esse restaurantezinho: comi ali um pouco e deixei o resto. Não
tardou muito a se encher da gente que tinha assistido às exéquias.
Notei muita animação e alegria comunicativa. Comi e bebi.
Sentado
sobre uma sepultura, mergulhou numa "meditação de circunstância",
e na pauta de reflexões, pensou no problema da admiração:
Sem
dúvida, admirar-se com tudo é tolo, ao passo que é muito
mais elegante não se admirar com coisa alguma, o que se
considera como sinal de bom-tom. Mas, em última análise, é
pouco provável que seja assim. Acho, quanto a mim, que é
muito mais tolo não se admirar com coisa alguma, que
admirar-se com tudo. Bem melhor: não se admirar com coisa
alguma quase equivale a nada estimar. Um imbecil, de resto, não
pode sentir estima.
Nesses
trechos, percebe-se a combinação ambivalente: morte-riso (a
alegria); o banquete ("comi um pouco e deixei o resto"). E
essas águas remexidas? Seriam as águas do Letes? O
esquecimento revolvido em meio à perturbação do meio.
Segue-se
uma divagação breve e vacilante do narrador que, sentado
sobre a lápide, reflete acerca do tema do espanto e do
respeito, aos quais os contemporâneos renunciaram. Essa
consideração é importante para compreender a concepção do
autor. Em seguida vem um detalhe simultaneamente naturalista e
simbólico.
Neste
ponto perdi o fio das minhas idéias. Não gosto de ler epitáfios:
todos se parecem. Sobre uma lápide, não longe de mim, se
encontrava um sanduíche meio comido. "É bastante estúpido,
disse a mim mesmo, e fora do lugar". Eu o varri para a
terra, pois que não era pão, mas apenas um sanduíche. E
depois, afinal, esmigalhar o pão na terra não é pecado,
parece, é sobre o assoalho que é pecado. Será bom eu me
informar a respeito.
O
detalhe estritamente naturalista e profano - um resto de
sanduíche sobre a lápide - dá motivo para evocar a simbólica
carnavalesca: permite-se esfarelar pão sobre a terra -
trata-se de semeadura, de fecundação - mas não se permite
sobre o chão - seio estéril.
Em
seguida, desenvolve o tema fantástico: o narrador ouve a
conversa dos mortos que estão debaixo do chão. As suas vidas
ainda continuam, por algum tempo, nos túmulos. De repente,
começa a ouvir toda a espécie de coisas, inclusive percebe
que os mortos jogavam cartas... de memória. A cena ouvida é
hilariante:
-
Excelência, não há meio de jogar sem garantias. É preciso
absolutamente fazer um morto, e deverá certamente haver um
carteamento sem valer.
-
Mas onde encontrar o morto aqui?
São
vários mortos que conversam e que se distribuem entre as
classes sociais: um general, um homem do povo, uma dama da
sociedade, o conselheiro secreto, o jovem bem nascido, conde
Petrovich que na verdade era barão, o funcionário, um
engenheiro, uma mocinha de dezesseis anos (uma 'Menipa'),
entre outros. Todos precisam saber que naquele lugar reina uma
nova ordem: - "Que nova ordem é essa então?" - "É que
nós estamos, por assim dizer, mortos, Excelência".
A
uma certa altura, uma ex-dama bela e insuportável, é
alertada pelo homem do povo sobre o cheiro horrível que
exalava:
Eu
não me volto, mãezinha, e meu cheiro não tem nada de
especial, atendendo-se que estou ainda bem conservado,
enquanto que vós, a bela, estais lindamente estragada. Assim,
cheirais insuportavelmente, mesmo considerando o lugar. É por
delicadeza que não digo nada...
"Que
mulher suja", diz dela o general. A decrepitude mortal
acompanha a decrepitude humana e moral anterior. No diálogo
18, entre Menipo e Hermes, o primeiro quer saber onde estão
os belos e as belas:
Hermes:
... Dê uma olhada naquela direção, à direita, lá onde está
o Jacinto, o Narciso, Nireu, Aquiles, Tiro, Helena, Leda, em
suma, todas as beldades de antigamente.
Menipo:
Só estou vendo ossos e crânios desnudos das carnes,
praticamente iguais.
Hermes:
Mas esses ossos que você parece desprezar são exatamente o
que todos os poetas admiram!
Entre
tantos 'disparates', o narrador não se contém: "O quê,
era a isso que chamavam um morto moderno? Todavia, eu devia
escutar e não me apressar demais a tirar conclusões". No
diálogo Hermes, Caronte
e diversos mortos, o primeiro concede a Menipo o privilégio
da proedria,
reservado às pessoas ilustres nas seções de teatro, nas
assembléias e nos jogos, para que ele pudesse aproveitar
melhor o espetáculo que era a travessia. Neste conto, o
narrador é este Menipo a quem é dado o privilégio de
assistir ao verdadeiro espetáculo da vida tornando-se morte.
Em toda a narrativa, ele se cerca de outros menipos, como esta
'menipa' que o surpreende pelo riso:
confesso
que eu mesmo me surpreendi: alguns dentre eles, aliás,
estavam já enterrados desde a antevéspera, como por exemplo
uma mocinha de dezesseis anos, que não fazia outra coisa senão
rir... ou antes, casquinar, com um riso ignóbil e feroz.
O
Conde banaliza a importância dos títulos de nobreza e de
toda a hierarquia social: "e depois, não sou conde, sou barão,
unicamente barão. Somos uns reles baronetes, descendentes de lacaios, e depois, rio-me
de tudo isto. Não passo de um canalha da pseudonobreza, e
que se considera como um "amável libertino". E assim
continua sua dessacralização da vida e da morte: "Não
creio em nada, e rio-me disso".
Ao que o Vovô,
o general, responde: (...) "sou inteiramente da vossa opinião...
A vida comporta tantos sofrimentos, tantos dilaceramentos, e tão
poucas distrações... eu gostaria de estar por fim tranqüilo
e, pelo que vejo, espero tirar daqui tudo.
Que estranho investimento este na vida tranqüila e feliz que
a morte pode oferecer.
Contrapondo-se
a essa idéia de paraíso artificial da morte, aparece a
constatação da morte como 'farsa':
como
é possível falarmos aqui? Por que estamos mortos e todavia
falamos: damos a impressão de nos movermos e entretanto não
falamos: damos a impressão de nos movermos e entretanto não
falamos e não nos movemos absolutamente. Que significa esta
farsa?
E
é o filósofo (que na morte continua sendo o amigo da
sabedoria) Platão Nikolaievitch que pode ir aos fatos. É
engraçado porque também aqui, no conto, ele fala pela voz de
outrem:
Ele
explica isso de maneira muito simples, e precisamente pelo
fato de que, lá em cima, quando estávamos com vida, cometíamos
o erro de considerar a morte aqui embaixo como sendo a morte.
O corpo aqui se dispõe, por assim dizer, a viver ainda uma
vez, restos de vida se concentram, mas unicamente na consciência.
É - não vo-lo saberia explicar - a vida que se prolonga
como que por inércia. Tudo está concentrado, de acordo com a
opinião do nosso filósofo, na consciência, e persiste ainda
dois ou três meses... algumas vezes seis meses... Há um
aqui, por exemplo, quase inteiramente decomposto que, uma vez
cada seis semanas, murmura de repente uma palavra, uma
palavrinha só, naturalmente sem significação: "bobok,
bobok, bobok". Logo, é porque há nele ainda uma imperceptível
centelha de vida...
Cria-se
com isto uma situação excepcional: a
última vida da consciência até o sono completo, liberta
de todas as condições, situações, obrigações e leis da
vida comum é, por assim dizer, uma vida
fora da vida. Como será aproveitada pelos "mortos
contemporâneos"? A consciência dos mortos, manifesta-se
com liberdade absoluta,
não restrita a nada. E eles se revelam.
Descortina-se
o típico inferno carnavalizado das menipéias: uma multidão
sortida de mortos, que não conseguem libertar-se
imediatamente das suas posições hierárquicas e relações
terrenas, conflitos cômicos que surgem nessa base, blasfêmias
e escândalos. Do outro lado, as liberdades de tipo
carnavalesco, a consciência da total irresponsabilidade, o
sincero erotismo sepulcral, o riso nos túmulos.
O
"rei" desse carnaval dos mortos é um barão decaído:
"Somos uns reles baronetes, descendentes de lacaios, e
depois, rio-me de tudo isto"
(assim como Menipo). Este é o barão que, fugindo às
interpretações do filósofo, declara:
Basta,
e o resto, estou seguro, são asneiras. A coisa certa são os
dois ou três meses de vida e no fim das contas: - bobok.
Proponho a todos passarmos esses dois meses tão
agradavelmente quanto possível, e para isso organizarmo-nos
sobre outras bases. Senhoras e senhores! Eu vos proponho não
ter mais nenhuma vergonha!
Na
morte, continuariam as reminiscências... da vida, do eterno,
do nada, do que se prolonga como que por inércia. E essa
palavrinha sem significação: bobok,
é repetida ou ecoada na escuta no limiar, nessa centelha de
vida que também poderia ser a centelha de morte.
No
Górgias, Platão,
através de Sócrates, tem a seguinte opinião sobre a morte:
A
morte vem a ser apenas a separação de duas coisas, alma e
corpo; depois de se apartarem um do outro, cada qual mantém o
seu próprio estado, não muito inferior ao de quando o homem
estava vivo. O corpo conserva sua natureza e, visíveis, todos
os bons e maus tratamentos recebidos. (...) Em suma, por algum
tempo após a morte será visível tudo, ou quase tudo, que
uma pessoa deparou a seu corpo durante a vida.
Como
se estivesse ressoando esse diálogo, o conto Bobok continua atuando nesse limiar entre vida e morte, e até os
sentidos são mantidos por algum tempo:
Lá
em cima o nosso filósofo nada em plena bruma. Precisamente no
que concerne ao olfato, ele observou que o fedor
que se sente aqui é de certa forma espiritual - um
fedor que viria da alma, para que se tenha, nesses dois ou
três meses, tempo de se recompor... e seria em suma a
verdadeira graça.
É
lógico que há um metadiálogo entre o Platão Nikolaievitch
e o Platão grego, e que esse diálogo ainda se amplia na
proposta irônica do barão: "Proponho a todos passarmos
esses dois meses tão agradavelmente quanto possível, e para
isso organizarmo-nos sobre outras bases. Senhoras e senhores!
Eu vos proponho não ter mais nenhuma vergonha!"
Nesse desejo de não ter pudor, a vida na morte funda-se sobre
princípios novos e (desta vez) racionais, segundo lemos no
decorrer do conto:
Mas,
enquanto esperamos, prossegue o conde, peço que ninguém
minta. É tudo que exijo, e é o essencial. Sobre a terra é
impossível viver sem mentir, porque vida e mentira são sinônimos:
mas aqui não mentiremos, a fim de rirmos um bocado. (...)
Dispamo-nos e fiquemos nus!
Ainda
não estamos no melhor dos mundos de Cândido, mas, como diz o
general, que "aqui" não passa de um cadáver em putrefação:
"Pouco importa, constituí a parte de um todo".
E o barulho torna-se ensurdecedor, mas nem isso impediu
que o descuidado espirro do narrador fosse ouvido pelos
mortos, e o efeito foi surpreendente:
Tudo
se tornou calmo como num cemitério, e se desvaneceu. Fez-se
um silêncio verdadeiramente sepulcral. Não penso que fosse
constrangimento pela minha presença: eles tinham resolvido não
ter mais vergonha de nada! Não se pode igualmente supor que
tenham tido medo que eu os denunciasse à polícia; que teria
vindo fazer aqui a polícia? De tudo isso concluí,
involuntariamente, que deviam ter algum segredo desconhecido
dos mortais, e que evitam divulgar. "Então, meus amigos,
disse comigo, voltarei ainda, para vos fazer uma visita"; e
com estas palavras, deixei o cemitério.
E,
de repente, "fez-se um silêncio verdadeiramente
sepulcral".
E a apreciação conclusiva do narrador é interessante pelo
tom: "Não, não o posso admitir, não, em verdade, não!
Bobok não me perturba (eis aí, então, aonde queria chegar
esse bobok).
E
o que pensar então? Será que para onde todos vamos será
como o lugar onde todos estamos? Na grotesca jornada de um
morto pelo mundo dos vivos, uma cômica inversão da viagem do
vivo pelo mundo dos mortos, tal como ilustrada no mito de
Orfeu, tanto quanto no do narrador da Divina Comédia.
A
depravação em semelhante lugar, a depravação das supremas
esperanças, a depravação dos cadáveres decompostos e
putrefatos - e que não poupa sequer os últimos momentos de
consciência! Foram-lhes concedidos, esses momentos supremos
e... Mas acima de tudo, num lugar como esse. Não, não posso
admitir. (p. 224)
Aqui
irrompem no discurso do narrador palavras e entonações quase
genuínas de outra voz inteiramente diferente, que irrompem
mas no mesmo instante interrompem-se na expressão reticente
"e...". E para nós, leitores viventes? Será que
encontramos, enfim, alguma coisa de consolador? Sim, o conto tem um final folhetinesco: "Levarei meu artigo
ao Cidadão. Também
publicaram lá o retrato de um redator. É possível que mo
imprimam".
Este o nosso consolo, a vida como narrativa, a morte como
narrativa.
Vimos
então que neste mundo no limiar de uma lápide e o abaixo da
terra, temos personagens que se digladiam, discursam, gritam, agonizam,
defendem idéias com a mesma intensidade com que vivem paixões
carnais; vão do reles ao sublime num piscar de olhos. Um
simples cubículo, ou a parte do cemitério onde se encontra o
narrador, é capaz de comportar nobres, burgueses, funcionários
públicos, estudantes e vagabundos que debatem acaloradamente
entre si - todos envolvidos em questões metafísicas que
pairam acima das determinações materiais e das segregações
entre o público e o privado. Tudo isto, o embate entre vida e
morte, vai diminuindo, diminuindo, até que os sons produzidos
não passem mais de uma onomatopéia sem sentido: bobok, bobok, bobok.
Neste
conto rompem-se as "cordas podres" da mentira oficial e
individual e revelam-se as almas humanas, horríveis como no
inferno ou, ao contrário, radiantes e puras. Por um instante
as pessoas se vêem fora das condições habituais de vida,
como na praça pública carnavalesca ou no inferno, e então
se revela um outro sentido - mais autêntico - delas
mesmas e das relações entre elas.
Bobok, uma onomatopéia que visa
reproduzir o ruído que faz uma bolha de ar quando eclode na
superfície da água parada, como quando um dos mortos
"murmura de repente uma palavra, uma palavrinha só,
naturalmente sem significação: "bobok, bobok, bobok"",
é essa a palavra, nenhum sentido, apenas barulho.
De
qualquer modo, mesmo não sabendo explicar o por quê desse
nome 'bobok', o narrador/ouvinte dos mortos desse conto
provoca essa interrogação em seu amigo: "acontecerá algum
dia (de ele) não estar embriagado?".
E, desde o início, associa-se o literato à loucura, ao que
ele retruca mentalmente: "Todavia, se é fácil entre nós
fazer perder a razão, não há nenhum exemplo de que a tenham
inculcado".
Pode-se associar também o narrador e todo o conto, a uma
estirpe filosófico-existencial - ao cinismo e a Diógenes,
Crates, Menipo, parentes próximos: "O mais inteligente dos
homens é, na minha opinião, aquele que se trata de imbecil
ao menos uma vez por mês, e já ninguém hoje é capaz
disso" (...) "Foram tão bem embaralhadas as cartas que o
homem inteligente não se distingue mais do imbecil".
A
conclusão de Caronte, em Caronte
ou os contempladores, de que todos os homens parecem
"borbolhas" (inflam e explodem), é aproveitada em Dostoiévski,
que trabalha este tema luciânico de forma ao mesmo tempo
direta e enriquecida, também inflada como uma borbolha, que dá
à gênese do conto e à forma como ele reaproveita a tradição,
um sabor e um vigor excitantes, exuberantes de dialogismo e
polilingüismo, não só entre as personagens, mas entre obras
e personagens de autores e tempos diversos. Caronte diz que os
homens são como bolhas que inflam e estouram, e em Bobok,
os homens se reduzem a um som, um barulhinho, ou seja, um
estouro de bolha que inflou-se tanto que agora fica reduzida a
sua linguagem, linguagem onomatopaica que nem de longe lembra
a nobre e eloqüente linguagem dos homens vivos e
"poderosos".
"Bobok
não me perturba...".
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN,
M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1981.
DOSTOIÉVSKI.
F. M. Contos de Dostoiévski - Bobok. Introd., sel. e trad. Ruth Guimarães.
São Paulo: Cultrix, 1985.
LUCIANO. Diálogos
de mortos.
Tradução e notas de Maria Celeste Consolin Dezotti. São
Paulo: Hucitec, 1996.
PLATÃO.
Górgias ou A oratória.
Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Difel, 1986.
PLATÃO.
Fédon. Introd.
Trad. Maria Teresa Schiappa de Azevedo. brasília: Ed. UnB,
2000.
*
Tida
Carvalho (Belo Horizonte/MG). Escritora, ensaísta, pesquisadora e
professora de Literatura Brasileira e Portuguesa, da PUC
Minas. Doutora em Literatura Comparada pela UFMG com a tese
"Representações de Diálogos dos Mortos na Literatura
Ocidental". Publicou "O Catatau de Paulo Leminski:
(des)coordenadas cartesianas" (São Paulo, Livro Aberto,
2000). tidacarvalho@oi.com.br
|