ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

PEDRO PÁRAMO, SOMATÓRIA DO ASSOMBRO

 

Tida Carvalho

 

Escrever mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é o futuro do escrever...

Haroldo de Campos, Galáxias

 

Em 2666 encontramos, literalmente, a concretização do romance extenso, no sentido literal, afinal são mais de oitocentas páginas de desdobramento da ficção, um desdobramento ilusionista da ilusão, entre outros transbordamentos. Mas sabemos que o romance extenso pode ser, às vezes, não necessariamente longo, mas denso, interminável, prenhe de sentidos que se proliferam na floresta de signos. É o caso de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, que quero trabalhar em conjunção e alguma contraposição com a leitura de 2666, pensando neste texto como um prototexto de Bolaño, como uma protofronteira mexicana de Tijuana ou Santa Teresa. Em minha proposta de leitura penso haver em comum entre eles, a questão fronteiriça da literatura e do espaço propriamente dito, o ambiente errante e incerto que provoca no leitor um certo tipo de estranheza e languidez, uma incertitude permanente.

Como autobiografia de um prosador contemporâneo, Pedro Páramoé um segmento biográfico da trajetória literária da Hispanoamérica, surgido em 1955. Esta novela é a reminiscência de uma história que responde a um mundo imaginário, ao mesmo tempo em que se encaixa numa natureza originária, nativa, autóctone e petrificada como o diminuto fragmento da revolução no México. Por isso, falar de Pedro Páramoé falar dessa história. É falar das distintas feições do rosto mexicano. E, principalmente, é falar não de facções, mas de máscaras sempre cambiantes, a partir das quais se desvela a expressão de uma história vivida, em que as personagens estariam situadas geograficamente, para contar acontecimentos verdadeiramente vividos, ou, de uma forma contundente, agir com fatores legítimos, reais, e até invariáveis: o lugar, a situação, por exemplo.

Em Juan Rulfo, muito além de suas obras literárias, encontramos seu olhar poético, que transnuda o imaginário e o cotidiano do México que, aqui, aparece como uma antecipação do espaço em 2666, como em seus cliques fotográficos, centelhas poéticas.

Muro de adobe em Guadalaja, década de 1940

 

As imagens de Rulfo, tanto as fotográficas como as de caráter ficcional, têm o feitio de recordações, feitios de oração como as canções de Noel Rosa. As recordações talvez sejam algo de maior complexidade que as imagens, inclusive as visuais. Pedro Páramo, a personagem, havia falado antes de luzes, odores, sabores, pranto, movimentos, abraços, vozes... uma atmosfera.

É por isso que penso em Pedro Páramocomo um precursor de 2666, nessa atmosfera, neste captar de um México rural da infância de Juan Rulfo, cujos povoados, construções, pessoas, costumes estavam se transformando radicalmente. O vocabulário de suas imagens nos dá a dimensão da solidão, da existência como espera de algo em que não se crê ou não se espera de verdade. Tem-se um ambiente metafísico, ou “fantástico” se falamos em literatura, que fala sobre o mundo da imaginação, de um labirinto em linha reta.

A imagem a seguir foi feita por Cartier-Bresson, um paredão de fuzilamento captado por ele na década de 1930, em 1934. O paredão permanece ali como testemunha do que haviam sido a violência e a repressão, e que persistiria pelo século afora. É Juan Rulfo que fala dessa fotografia de Cartier Bresson: “Sentia-se a hostilidade no ambiente, enquanto o país, dominado por empresas estrangeiras, não parecia encontrar um caminho de libertação. Além disso, o mexicano daquela época, carente de estímulos, se refugiava no fatalismo, em uma burocracia instável ou simplesmente no vício até cair na loucura” (“O México dos anos 1930 visto por Henri Cartier-Bresson, por Juan Rulfo”. In: 100 fotografias, Juan Rulfo, p. 22).

O povo que revive Rulfo, morto e esquecido, é aquele com o qual passou a maior parte de sua infância. Neste tempo era um povoado fértil, com árvores, água, vida. Depois, quando Rulfo volta, passados trinta anos, é um povo abandonado, fantasmagórico, desértico, a antítese completa do tempo de sua infância. Comala é o nome do povoado no relato, de “comal”, um recipiente de barro para ir ao fogo, onde são aquecidas as tortilhas. Daí o nome de Comala, sobre as brasas.

Cemitério no Sul de Jalisco, 1961.

Encontrei-me com um povo morto, disse Rulfo, e como os mortos não vivem no tempo, deu-se a liberdade de manejar as personagens indistintamente, e deixá-las entrar e depois sair, esfumando-se, desaparecendo.

Em linhas gerais, Pedro Páramoé uma linguagem, a linguagem do silêncio (que tantas vezes “ouvimos” nas tantas páginas de 2666), que comunica e manifesta mais que os próprios personagens, pois o som do silêncio no texto é agudo e constante, e graças a suas infinitas ondas, equaliza todo o argumento da história. É como se o povoado de Comala fosse se extinguindo até o silêncio, acabando-se, como se nunca houvesse sido. E é esse silêncio, esse extinguir-se, que também encontramos em 2666.


 

 

Nesta imagem abaixo (pre)vejo as moças trabalhadoras nas maquiladoras de Santa Teresa de 2666.

Meninas de Cardonal, Hidalgo, 1959.

Ao mesmo tempo me esta imagem me projeta para um outro momento, ainda conjugando literatura e memória no mesmo espaço de 2666. Nesta dada situação me remeto aos artistas plásticos Francis Alys e Krzystof Wodiczko

Francis Alÿs, nascido na Antuérpia, Bélgica, em 1959, estudou engenharia no Institut d´Architecture de Tournai, Bélgica, e história da arquitetura no IstitutoUniversitariodiArchitetturadi Venezia, Itália. Em 1986 mudou-se para a Cidade do México, onde mora e trabalha desde então. Em 1990 ele passou da Arquitetura para as Artes Visuais.

Desde o começo, passeios e percursos urbanos ocuparam um papel central em sua atividade de artista. Citarei algumas: em O Coletor, saiu pelas ruas do México puxando como cachorrinho um brinquedo feito de ímãs, até ficar totalmente coberto por fragmentos de metal. Em Paradoxo da Práxis 1 (às vezes fazer algo leva a nada), 1997, ele empurrou um bloco de gelo até derreter completamente. Em 2002 produziu, com Rafael Ortega e Cuauhtémoc Medina, Quando a fé move montanhas, que se realizou na periferia de Lima, Peru. Foram quinhentos voluntários que deslocavam em alguns centímetros uma duna de areia com quinhentos metros de comprimento.

            De alguma forma, as obras de Alÿs comparte o mesmo universo que o de 2666, a cidade de Tijuana/Santa Teresa, fronteira física e imaginária, no sentido de ver a arte como um recorte físico no espaço, arte como território, e que tem a plasticidade do tempo e do espaço. As obras são como redemoinhos, deslocamentos aparentemente sem programa estabelecido, um abismo de signos, uma armadilha de palavras e de signos.

            Para ilustrar mostro a obra de Alÿs, The Loop Tijuana San Diego, de 1997. Usando o dinheiro recebido para financiar seu trabalho, realizou uma viagem global, interminável, cujo objetivo era chegar de Tijuana a San Diego sem cruzar a fronteira Estados Unidos/México. Esta viagem através do mundo, transfigurou-se numa aventura quixotesca e absurda, ou gigantesca, que o levou à Austrália, via América do Sul, passando dali para o Norte, seguindo a bacia do Pacífico, até chegar ao Alaska, Canadá e, finalmente, à costa oeste dos EUA. De uma parte estaria a própria fronteira, tema do inSite, abordando questões de imigração ilegal, de controle de divisão e separação de dois universos sociais, históricos e econômicos. Mas de outra parte estaria o espaço contemporâneo da globalização, do nomadismo e da “transnacionalização”.

Caixa de texto:      Figura 1: The Loop Tijuana San Diego, 1997, de Francis Alÿs.  E a obra pode ser lida também como um comentário sobre o caráter da nova elite de artistas “globetrotters”, criada pela globalização do próprio mundo da arte, graças, em parte, ao circuito internacional, em expansão, de bienais e eventos, e às indústrias culturais de marketing de imagem que lhes dão suporte. Ou, ainda, o contexto geoeconômico: membros “iguais” do NAFTA, é claro que o México é o parente pobre numa igualdade improvável, e que a sua parte nesse intercâmbio desigual só pode ser desigual. Tijuana e outras cidades ao longo daquela complexa fronteira viraram, desde o estabelecimento do Tratado de Livre Comércio, o paraíso de vários tipos de crime e exploração econômica, legal e ilegal. Escravidão (legal) através das maquiladoras, e tráfico ilegal de pessoas, de drogas. E é este contexto de relações que mais nos interessa aqui ao associar o trabalho de Alÿs ao de Bolaño em 2666.

           

No capítulo IV, A parte dos crimes, o mais longo de 2666, o contexto econômico e social é o das maquiladoras nesta fronteira do México, neste ambiente de exploração em todos os níveis. E, de qualquer forma, todo o livro, em todos os capítulos, circunda esse espaço, acontece nele ou acaba chegando nele. Nesta parte das imagens, quero mostrar o trabalho do polonês KrzysztofWodiczko, sobre as trabalhadoras nas maquiladoras.

Caixa de texto:      A Project for Geological Displacement.  Cuando la Fe MueveMontañas, When Faith Moves Mountains, Lima, (2002).Projeto de Francis Alÿs, em colaboração com Rafael Ortega e Cuauhtémoc Medina.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Este artista se posiciona em uma dimensão crítica frente à subjacente presença da espetacularização das emoções e denuncia as patologias de uma sociedade da negação. Assim como em 2666, em que o espaço, fluido ou não, é o epicentro da narrativa, Wodiczko mostra a cidade como terreno fluido de interpretação, análise e encontro, como prerrogativa do artista polaco em sua busca pela “verdade”, que a toda hora se esconde à sombra de certas dinâmicas como a indiferença. Para alterar nossa forma tradicional e indiferente de compreensão, projeta imagens em fachadas de edifícios ou monumentos emblemáticos. Suas imagens de mãos gesticulantes, rostos marcados ou corpos inteiros de indivíduos que compõem a comunidade, dão testemunho de suas experiências.

 

 “Tijuana Projection” (2002), éuma intervenção feita no Centro Cultural de Tijuana (CECUT), edifício conhecido popularmente como La Bola, construído por Pedro Ramírez Vázquez e Manuel Rossen Morrison, em 1982. Este edifício, que se articula a partir de uma grande esfera diretamente inspirada nos projetos utópicos de Ledoux, foi concebido para dinamizar culturalmente a cidade e promover o turismo cultural. Tijuana se destaca por ser um dos lugares onde a pressão e o controle da polícia anti-imigração norte-americana é mais forte. A fronteira militarizada com os EUA modificou por completo, com o tempo, a paisagem real de Tijuana. Mas não se transformou tão só o espaço físico que ocupam as pessoas que vivem e trabalham ali, senão todo o “espaço interior”, os estados de ânimo, as esperanças, os horizontes mentais, assim como as identidades e as utopias da coletividade.

 

Caixa de texto:      KrzysztofWodiczko.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Tijuana Projection” é o intento do artista de visualizar os efeitos físicos e mentais produzidos pela construção de uma fronteira que marca de maneira dramática o território, incide sobre a experiência, a linguagem, o espaço a se habitar, o corpo com sua saúde e suas enfermidades, a psique com suas fissuras e readaptações, a política com sua habitual cartografia absurda, o EU com a pluralidade de suas fragmentações e suas cansativas recomposições, a sociedade com suas divisões, a economia com suas invasões e retiradas, o pensamento com seus mapas de ordem.

 

KrzysztofWodiczko, sensível aos assuntos e interesses da comunidade de Tijuana, bem mais que as características físicas do lugar, interessou-se por seu significado simbólico que se vale da vontade integradora do edifício, e projeta a imagem dos rostos de pessoas que narram o drama de sua experiência como imigrantes, em tempo real. Desta forma, contextualiza e enriquece a noção de espacialidade com capas de humanidade, de tensões políticas, étnicas e psicológicas. Seu interesse centra-se em fazer uma arte comprometida com a cidadania, abordando conflitos sociais e rechaçando a imagem de uma esfera pública pacífica.

 

Por isso, através de 2666 em conjunção com Pedro Páramode Juan Rulfo e suas fotografias do México, as imagens de Alÿs e Wodiczko termino este texto me perguntando: pode o que não é visível ser escrito? Ou: o que não é escrevível deve ser mostrado? É claro que ao tentar escrever sobre o realismo explodido de Bolaño estou dizendo sim a essas perguntas.

 

De repente se acenderam as luzes do parque, mas houve um segundo de escuridão total, como se alguém houvesse jogado uma manta negra sobre alguns bairros de Hamburgo.

O cavalheiro suspirou, devia rondar os setenta anos, depois disse:

 – Que legado mais misterioso, o senhor não acha?

 – Sim, sim, de fato, acho – disse Archimboldi levantando-se e despedindo-se do descendente de fürstPückler.

Pouco depois saiu do parque e na manhã seguinte partiu para o México (2666, p. 848).

 

Referências Bibliográficas:

ALYS, Francis. Numa dada situação. Vários tradutores. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

BOLAÑO, Roberto. 2666. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

RULFO, Juan. 100 fotografias. Tradução Denise Bottmann e Gênese Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

RULFO, Juan. Pedro Páramo. Tradução Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2004.

WODICZKO, Krzysztof. Vídeo 008.jpg hightechfolkart.wordpress.com

 

 

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Tida Carvalho, Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, Pós-doutora com pesquisa realizada sobre a obra de Haroldo de Campos, sobretudo Galáxias, Máquina do Mundo Repensada e a sua tradução da Ilíada, também na UFMG.

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