A
GRAFIA PARA NADA
Victor
da Rosa
O
escritor Roland Barthes se dizia um "pintor de domingo". Segundo
seu biógrafo, Louis-Jean Calvet, Barthes começa a se dedicar
à pintura após uma viagem que faz ao Marrocos e Japão, no
início da década de 70, pois descobre nesses países uma prática
de escrita que arremessa o sujeito na pura fruição da materialidade,
na superfície sem fundo das coisas, enfim, uma prática que
não "caia diretamente na armadilha da linguagem" - nesses
países, escreve Calvet, o escritor "descobrira uma espécie
de prolongamento da escritura, transmutação dos movimentos
da mão que formam letras: a caligrafia".
Barthes
chegou a realizar duas exposições em vida, em 1976 e 1977,
e deixou em torno de 150 "grafias", datadas e numeradas -
"desenho? pintura, grafismo? O que faço não tem nome; é mais
da ordem do colorir, do grafite", escreve Barthes, em pequeno
texto presente em um de seus inéditos recentemente publicado
no Brasil, "Imagem e Moda". Costumava desenhar sobre
os papéis de carta do Collège de France, talvez em
intervalos de cursos, momentos de descanso, e ficava surpreso
quando as visitas se mostravam interessadas em suas composições.
"É muito fácil fazer", dizia, "basta deixar correr o lápis
sobre a folha do papel". Entretanto, não hesitava em imprimir
reproduções nas capas de alguns de seus livros e falar sobre
elas em ensaios e seminários.
Em
seu livro "Roland Barthes por Roland Barthes", o escritor
também imprimiu algumas reproduções, geralmente com pequenos
comentários ao lado - "... o significante sem significado",
"desperdício", "a grafia para nada". A grafia, em Barthes,
pode ser lida como uma prática de isenção de sentido, um puro
deslizamento na superfície mesmo do papel, na cor - "se eu
fosse pintor, pintaria somente cores: esse campo também me
parece liberado da Lei". Barthes pinta - ou seria melhor dizer:
traça, rabisca, encena? - não para construir sentido e provocar
interpretação, mas para fazê-lo vacilar, torná-lo vazio mesmo,
pois atrás de sua superfície só existe um gesto, o corpo que
produz movimento, pulsão de desejo: enfim, a encenação de
um esquecimento.
O
desperdício, o dispêndio, é também o gesto possível para uma
teoria do prazer. O traço de Barthes, dessa maneira, é puro
gasto de energia, movido somente pela pulsão do corpo - tudo
aquilo que derrama, que suspende, e se perde, "que cai sobre
alguma coisa". Sua pintura é a queda suave da cor sobre o
papel, seu desperdício e seu prazer - "Onde ler a idéia de
uma sexualidade feliz, (...) suave, sensual? Na pintura, ou
ainda melhor: na cor". Pois a cor, para o escritor, é também
uma idéia - uma idéia sensual.
A
teoria do prazer, em Barthes, é uma teoria da materialidade,
da cor e do traço - onde o texto, tecido e superfície, trabalha
através de um entrelaçamento infinito, sem nunca chegar até
qualquer ponto de apoio: nenhuma verdade é oculta. Em Barthes,
não há profundidade, mas intensidade e calor - fricções na
superfície, pois só existe superfície. Daí é possível ver
suas grafias como "atos de linguagem", e não como representação,
sentido - não há enigmas a decifrar, interpretações a fazer.
Diz o escritor, em "O prazer do texto": "(...) aquilo
que o prazer suspende é o valor: significado: a (boa) Causa",
pois "o prazer do texto é isto: o valor passado ao grau suntuoso
do significante". Seus grafismos são, dessa maneira, a fuga
de uma boa Causa.
Os
traços de Barthes são letras que se desenham no papel, se
derramam, e nesse intervalo entre uma coisa e outra deixam
de produzir suas características iniciais, tocando o indiferente
- "pintura, grafismo?". Numas das figuras que aparecem em
seu "Roland Barthes por Roland Barthes", e que também
ilustra a capa do "Neutro", alguns traços se insinuam
e podem ser reconhecidos como letras mesmo: a letra "C", ou
a letra "E", porém figuram esvaziadas de qualquer possibilidade
de significação. A letra, assim, só cintila enquanto traço,
erotismo, desenho: enquanto puro correr da mão que
desliza, e não procura agarrar nada.
Trata-se
mesmo de uma suspensão de qualquer fronteira que pudesse separar
letra e visualidade. Barthes, cada vez mais, procurava tensionar
estas linguagens, jogar uma contra a outra, confundi-las,
levá-las ao limite e ao silêncio, pois qualquer possibilidade
de nomeação dessa prática é suspensa - seus tensionamentos,
porém, são quase silenciosos, discretos, derramados, "sem
agressividade".
Em
seu ensaio sobre o artista Cy Twombly, um de seus últimos
ensaios, Barthes escreve: "Também nos grafismos de TW a escritura
é reconhecida; chega a apresentar-se como escritura. As letras
formadas, no entanto, já não fazem parte de nenhum código
gráfico, assim como os grandes sintagmas de Mallarmé já não
fazem parte de nenhum código retórico". A letra, em Twombly,
não é mais letra, não é mais nada. Não seria esta a potência
que a arte produz, e também sua sedução - suspender todos
os códigos, a cultura, as fronteiras, para, somente dessa
maneira, construí-los novamente, inventá-los?
Penso
que nesse ponto é possível vislumbrar uma política em Barthes
- pois sua teoria do prazer é também uma resposta ao Pai Político,
como escreve em seu "O prazer do texto": "o texto é
(deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro
ao Pai Político". O gesto de Barthes é algo que está ligado
mais com uma força de suspensão e desestabilização dos códigos
- algo, enfim, que poderia ser imaginado como uma "política
da suspensão", do "prazer", ou até como uma
"política da linguagem".
O
nada é também uma força, uma potência, pulsão. O nada, diferente
das imagens e estereótipos que são criados em torno dele,
atua e produz - e aqui eu deveria dizer, logo em seguida,
ele não atua, não produz. As grafias de Barthes são pontos
de fuga na linguagem, pois a produção acontece nessa dobra
que é quase fora de códigos, que é entre códigos - principalmente
de seus códigos, enquanto escritor, pois a pintura que faz
já poderia ser percebida dentro de uma tradição. Dessa maneira,
Barthes escreve sobre seus grafismos: "Essa prática de amador
sem dúvida tem muitas motivações: (...) pode ser a vontade
de estender o exercício de meu corpo, de 'mudar de mão' (mesmo
sendo sempre a direita); (...) talvez também o alívio (o repouso)
de poder criar alguma coisa que não caia diretamente na armadilha
da linguagem, na responsabilidade fatalmente vinculada a toda
frase: uma espécie de inocência, em suma, de que o ato de
escrever me exclui."
Trata-se
de certo frescor da linguagem que Barthes procura, até uma
irresponsabilidade (frescor que, de alguma maneira, procurou
em toda sua trajetória - pois se fosse para desenhar uma linha
da trajetória teórica de Barthes, esta linha seria feita de
muitos desvios, silêncios, retornos, fugas). Sua experiência
com grafismos pode ser lida, dessa maneira, como um tensionamento
com a própria prática de escritor - tensionamento que provoca
justamente os desvios, a descontinuidade: uma catástrofe delicada.
As
grafias de Barthes, por fim, são gestos sem palavras. A cada
traço, é como se Barthes se lançasse no espaço vazio da linguagem
onde só é possível voltar modificado, outro, pois no instante
em que o escritor marca a folha branca do papel, está marcando
também a si. É como se lançasse no silêncio, procurasse o
nada: um traço na ausência.
*
Victor
da Rosa,
ensaísta, estuda Letras na UFSC. Colabora com o Caderno
de Cultura do Diário Catarinense e o Caderno
Idéias do Jornal ANotícia. Outros de seus textos
podem ser lidos em:
www.literaturamenor.blogger.com.br.
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