REVELAÇÕES
DO FALSO: UM OLHAR SOBRE
ANJO DE ESTUQUE, DE JEAN BAUDRILLARD
Victor
da Rosa
Jean Baudrillard, talvez o mais agudo crítico das imagens, é
também fotógrafo. Irônico, paradoxal, Baudrillard chega a ser
cínico. Em seu ensaio, A arte da desaparição, diz que
"[...] Criar uma imagem consiste em ir retirando do objeto
todas as suas dimensões, uma a uma: o peso, o relevo, o perfume,
a profundidade, o tempo, a continuidade e, é claro, o sentido".
Dois minutos depois, porém, pega sua máquina fotográfica e sai
pela rua, como um flâneur pós-moderno, examinando a vida
que acontece no momento, congelando os acontecimentos, retirando
deles o perfume e o peso, o sentido - e revelando a falta de
realidade do nosso mundo.
Parece
mesmo ser exatamente isso: Baudrillard, em suas fotografias,
revela a irrealidade das coisas, a ilusão dos objetos, seu
próprio simulacro. Nas imagens d' O anjo de estuque,
livro recentemente publicado no Brasil que possui dezessete
poemas em versão bilíngüe e vinte fotografias, o fotógrafo
enfatiza a sombra e o vidro (ou, o ver através de) como potenciais
metáforas de um mundo onde nada mais se reflete - quero dizer:
é quando o mundo passa a ser o próprio reflexo, a própria
sombra, a imagem total de si.
É Baudrillard
mesmo quem diz: "Aquele que já não tem sombra é apenas
sombra de si mesmo". Quer dizer: já não estamos mais
lidando com a hipótese de que há o original e sua cópia. A
suposição, em Baudrillard, é ainda mais radical: é a de que
a cópia passou a ser, paradoxalmente, o original - ou seja:
o Real, se é que isso existe, sumiu, desapareceu, e só pode,
agora, ser perversamente simulado através da publicidade,
do excesso de informação simultânea, da interatividade - através
de toda relação virtual.
Uma provocação,
quase uma profecia, sempre com uma ironia inesperada: não
haverá mais tempo para acontecimentos reais se realizarem
- tudo será precedido, como numa paródia mais que instantânea,
de sua realização virtual, publicitária e informativa (tudo
será transformado em imagem antes mesmo de sua realização
no mundo). As coisas se tornarão tão aceleradas que não haverá
tempo, sequer, para imaginar - quando a idéia surgir, quando
o real acontecer, quando o diálogo houver, será tarde demais,
pois já se tornará imagem, ilusão, incerteza. É nesse instante
que o Real desaparece e o falso é revelado.
Quem diz
é o filósofo: se o Real desapareceu, não é por causa de sua
ausência e sim por causa de seu excesso - ou seja, é porque
existe realidade demais. Em outras palavras, é o excesso de
realidade que provoca o fim da realidade, da mesma forma que
o excesso de informação provoca o fim da comunicação. Digo,
o real, nos tempos atuais, é hiper-real - é atravessado por
luzes brancas, pelo inteiramente positivo, pelo perfeito (próteses,
artifícios e silicones). O hiper-real é expurgado de qualquer
tipo de negatividade, de defeito, de erro.
Baudrillard,
n' A transparência do mal, chama tal excesso das positividades
de "brancura operacional". Diz que "estamos
iluminados de todos os lados pelas técnicas, pelas imagens,
pela informação, [...] e estamos condenados a uma atividade
branca, a uma socialidade branca, ao embranquecimento dos
corpos [...], a uma assepsia total". E arremata: "Ora,
tudo que já não pode ser negado como tal é condenado à simulação
indefinida". É como se o mundo passasse a ser transparente
e não mais conseguisse desviar a luz da perfeição.
Vem daí,
penso, a ênfase das fotografias de Baudrillard em elementos
que são atravessados pela luz, como o vidro, a sombra, o plástico
(e talvez também a água). O elemento da transparência pode
ser lido como esse hiper-real que não mais refrata e desvia
a brancura da luz, das positividades, mas a absorve com uma
grave indiferença - o elemento da transparência pode ser lido
como essa ausência de corpo compacto, essa transformação de
corpo em imagem diluente, como nesse fragmento do poema quatorze,
d' O anjo de estuque: "A própria árvore está oca
/ por falta d'água, e / a fragilidade das folhas e / dos nervos
- ora não há / folhas nem nervos - só a seca / nos atravessa
- e não há / frente nem perfil - / fica faltando todo / o
nosso corpo".
Ou ainda:
a transparência é também a impossibilidade de possuir um equivalente.
Ou seja, diferente do espelho, o vidro não reflete um objeto,
mas é atravessado por ele. Ora, se não há equivalente (ou
reflexo), não há representação - portanto, não há original.
É como se as coisas funcionassem liberadas de seu conteúdo
e fossem somente signos, ocos, sem alguma referência - somente
imagens, puras: assim é a sociedade espetacular, não possui
sentido, seu fim é o próprio espetáculo (é como se a tentativa
fosse criar uma imagem total do mundo - uma tela-total).
E é como
se Baudrillard tentasse criar uma imagem total do mundo -
fotografa as sombras no chão e nos vidros ao invés de fotografar
os corpos, fotografa pessoas através de, objetos através de,
fotografa a própria ilusão - a própria simulação do mundo.
Parece que diz: as sombras não estão em universos paralelos,
como em Matrix - as sombras estão aqui, do nosso lado:
nós somos a própria sombra?
Mas talvez
tudo isso seja somente histeria performática, misticismo,
exagero - talvez as fotografias de Baudrillard estejam fora
de foco. Quem o sabe? Se alguém perguntasse ao próprio Baudrillard,
certamente ele olharia o sujeito com desconfiança e mal-humor,
daria um sorriso milimetricamente imprudente - uma mistura
de ironia e desespero - e responderia com uma voz segura:
Justamente isso faz parte da incerteza e da ilusão - quem
o sabe?
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Victor da
Rosa é ensaísta, bacharelando em Letras pela UFSC e editor da
MAFUÁ, revista de literatura em meio digital.
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