Esta entrevista fictícia com o Franco Átila foi escrita em outubro de 2007 e serviu como projeto/exploração para uma tese sobre a poesia de Ferreira Gullar e Paulo Leminski. Digamos que o entrevistado seja um exu. Ele foi, para mim, um batedor no terreno das ideias.
Você me chamou. O que quer?
Colocar o concretismo num campo de tensão, como eles mesmos se colocam, mas de forma inadequada.
Que campo?
Digamos que o Haroldo de Campos tenha definido (em algum artigo ou nota que não me lembro mais) como um campo poético que se estende entre dois pólos: uma poesia de expressão e outra de estruturação. A poesia como expressão do ser, do sujeito, dos afetos, da alma ou do espírito seria a poesia lírica propriamente dita, que domina a literatura de língua portuguesa e a brasileira desde o romantismo e mesmo o modernismo não teria conseguido afrontá-la. Para Haroldo, apenas Oswald de Andrade se insurgiu radicalmente contra ela no início do movimento. Esta poesia seria verborrágica (a diarréia cabralina), sentimental, choramingas e nada tem a dizer à nossa época. O que não deixa de ser uma boa provocação.
Este seria o pólo subjetivo do campo poético...
É, subjetivo ou afetivo, sentimental, lírico, prosaico (no pior sentido do termo) sem inventividade nem fecundidade, pois não responderia aos dilemas da época. Se bem que estes termos todos não são uma boa palavra, o termo adequado seria profundo, uma poesia de sondagem das profundezas, dos abismos do que quer que seja, ser, sujeito, alma coletiva, o diabo... Contudo, não se pode esquecer que muita poesia boa foi feita aí nesta tendência, ou pelo menos interpretada como profunda, como a Invenção de Orfeu, por exemplo. E mesmo um poeta que os concretistas admiravam, como o Mário Faustino, tendia para as profundezas: era uma espécie de poeta aristocrata...
Mas os concretistas não se importavam se a poesia de Mário Faustino era profunda, a de Murilo cristã e a de Cabral engajada. O que eles argumentavam é que, nestes autores, o rigor da linguagem tinha a primazia sobre o conteúdo.
É, mas não podemos esquecer que outra perspectiva interpretativa, justamente a interpretação das profundidades, poderia colocar o que você chama de conteúdo em primeiro plano. O que os concretistas fizeram foi instaurar teoricamente o polo da estruturação da linguagem no campo poético nacional. Digo teoricamente porque, na prática poética, o Cabral já tinha feito de forma incisiva com sua poesia anti-lírica: no admirável Lira & anti-lira o Luiz Costa Lima traça uma trajetória, de Bandeira a Cabral, que é exatamente o da poesia subjetiva à poesia de concreção (formal e histórica) cabralina. Esta interferência teórica concretista implicou na instauração de toda uma outra perspectiva para o poema, que passa agora a responder não pelas profundidades que exprime, mas pela linguagem que estrutura. Trata-se da instauração de uma poética, que vai prescrever como deve ser o poema (uma vez que eram poetas), mas também, e isto é fundamental, como se deve ler os poemas, ou seja, quais os critérios de valor para a poesia. É uma mudança de paradigma interpretativo, que passa a considerar a estruturação inventiva da linguagem como foco primeiro da leitura do poema. Não importa se um poeta é profundo, contado que tenha novidade e rigor na estruturação de sua linguagem...
Mas isto é o beabá de toda a crítica. Poesia, afinal de contas, é forma poética. Neste ponto os concretistas estão certos e mesmo críticos que nada têm de formalistas, como Candido e Bosi convergem com os pressupostos concretistas...
Sim, sim, ninguém vai negar o pacto de Jakobson, a função poética, uma obra precisa parar de pé, precisa explorar a linguagem, experimentar, inventar a sua linguagem com rigor, senão não passa de besteira. Não é disso que se trata. O problema é como a linguagem é vista em relação ao mundo, como ela é colocada diante da vida. É aí que os concretistas não conseguiram avançar muito, talvez por estarem presos demais a pressupostos estruturalistas. Eles instauraram o polo da anti-lira, da linguagem-objeto, da construção, da invenção, tudo bem, ponto para eles. Mas deixaram intactos os outros termos. O sujeito, os afetos, a psicologia continuaram lá, do mesmo jeito, eles apenas disseram: poesia psicológica de expressão subjetiva não serve, não dá mais. E como fica o sujeito para eles? Fica do mesmo jeito e tamanho, só não tem importância para a poesia em si, pois o psicológico está aquém da poesia, como motivação para a criação, ou além, como efeito receptivo. Eles depreciaram o psicológico e o profundo, mas não alteraram o campo poético de forma radical.
Vamos deixar esta questão da alteração do campo poético para a próxima. Nós falávamos do rigor...
Vamos lá, ainda não respondi a sua questão sobre o rigor. Há o rigor concretista, que tem como ponto de referência a estrutura de linguagem. Ora, se pensarmos bem, a poesia profunda também tem seu rigor, que exige que o texto se estruture de modo a sondar a estrutura das profundezas com eficiência, a representá-las da melhor forma possível. E o engajamento também exige uma amarração formal do texto que responda às formações sociais de alguma maneira. Todas as igrejas são rigorosas com a linguagem do poema, mas em relação a seu ponto de transcendência específico, ou seja, se trata de um rigor que deve se desenvolver dentro dos limites estruturais de cada crença. Por exemplo, o Alexei Bueno é um poeta rigoroso, dentro da igreja profunda ele faz uma poesia de fôlego, impetuosa, soturna, enobrecedora do espírito. Eu não sei é o que fazer com uma poesia dessas no mundo de hoje, mas tem gente que gosta e, de fato, no terreno das profundezas melancólicas o homem é digno de um Jorge de Lima. Quem sabe ele ficará para a poesia universal... Então, a questão não é o rigor versus a falta de rigor. A questão é: qual ponto de transcendência serve de critério para uma determinada igreja estabelecer o seu rigor? Ora são as profundezas, ora é a linguagem, ora são as formações históricas. É aí que as igrejas não se entendem e se engalfinham, pois cada uma acredita piamente que tem a verdade do rigor. Para a igreja da estruturação, a linguagem dos profundos é prolixa, diarreia. Para os profundos a concisão da estrutura é falta do que dizer e assim vai. Então qual seria o rigor para um texto que demolisse o campo poético, que negasse todas as igrejas e todos os sagrados? Eis o problema. Tem que ser um rigor da imanência, uma sintaxe que se constrói em constante fuga das estruturas, mas partindo delas, pois afinal de contas, um poeta estará sempre cercado por elas, sempre na órbita de um ou mais pontos de transcendência. E não há fórmulas nem gérmens de rigor para balizar o empreendimento poético, é um tateamento perpétuo, pois quando um texto escapa dos rigores das estruturas, restam somente atmosferas, ondas textuais para navegar sem bússolas ou pontos de apoio. Neste caso, a situação do poeta é a mesma do arqueiro persa do Catatau: "Flecha se atira em movimento, ninguém está parado. Nem o cavalo, nem o cavaleiro; nem a mão, nem o arco, nem a flecha, e o alvo o vento o leva: tiro certo." Veja como o Leminski já pensava a questão do rigor sem pontos de apoio desde o começo. Só quando o arqueiro se torna ele mesmo movimento, estará apto a acertar um tiro desses. Então, quando se atinge um rigor assim, de fusão com o movimento absoluto, pode-se dizer que o texto atinge a imanência, escapando aos rigores dos pontos de transcendência e furando os limites estruturais. Não há mais estruturas para este texto, sejam elas subjetivas, de linguagem ou sociais.
Certo, eis o rigor imanente. Agora vamos passar ao problema do campo poético. Você disse que uma poesia realmente revolucionária teria que destruir este campo. Como assim?
Vamos simplificar um pouco. Este campo da poesia é um território, um domínio alvo de disputas. A poesia profunda é um estado, o estado dominante até meados do século XX, melhor, é uma igreja, trata-se de uma disputa entre igrejas. O concretismo, então, quer fazer a reforma, fundar outra igreja, a igreja protestante da estruturação da linguagem, que diz que os católicos da profundidade estão corrompidos, não tem mais a fé rigorosa na poesia, abandonaram as escrituras sagradas da poesia que é a forma de linguagem. É tão parecido com a reforma, o ascetismo e a contenção concretista e cabralina versus a exuberância pagã e o derramamento católico da poesia profunda. Se eles quisessem mesmo ser revolucionários, não deviam fundar uma igreja, com seus catecismos e sacerdotes, com seu sagrado. Não deviam ser antagonistas deste sacro drama. Deviam propor a demolição do campo poético como um todo, acabar com toda a forma de sagrado, com todas as igrejas, a das profundezas, a do engajamento (porque há, em poesia, a igreja histórica do engajamento, da poesia social, da estrutura de linguagem que exprime uma estrutura histórica) e a da linguagem. Os concretistas são hereges organizados, profetas de uma nova fé, um novo cristianismo poético. A poesia revolucionária, pelo contrário, teria que abandonar o sagrado em favor do mágico, recusar o sacerdócio e sua catequese e buscar a bruxaria e seus feitiços. Bruxos não têm igrejas nem fiéis, não ficam pastoreando nem servindo de mediação entre a voz divina e os mortais, não são juízes de deus. Eles só querem fazer seus feitiços em paz, ensinar um ou outro aprendiz, tentar ajudar quem o procura no seu covil. O que os concretistas fizeram? Disseram: meu deus não é o profundo nem a história, minha igreja não é a da profundidade nem a do engajamento, meu deus é a linguagem e minha igreja é a da estruturação, este é o absoluto. Eles suprimiram toda a errância (o rigor da errância), toda a perdição desde o início, mesmo que tivessem vontade de errar, como Haroldo de Campos quis com as Galáxias.
Você acha que ele não conseguiu um estado de errância com as Galáxias?
Primeiro, devemos reconhecer que se trata de um bom texto, com momentos excepcionais. Mas apesar de todas as dobras e redobras barrocas, como ele gostava de dizer, apesar deste furor proliferativo da linguagem, as Galáxias são... isto: furor proliferativo da linguagem, da sacra linguagem, roçando o beletrismo, o exibicionismo, a finesse. Ele mesmo diz que a obra tem um espírito de finesse, é claro que ele via isto com olhares positivos, é a finesse-tensão do barroco mais agudo e labiríntico que ele queria, mas descamba muitas vezes para o rococó deslambido, a finesse-firula. É o mesmo problema do Leminski com o Catatau.
Aliás, depois o Leminski conseguiria escapar da poética concretista.
É, mas deu trabalho. Os concretistas fundaram uma igreja muito rica e sedutora. De início, tem este ascetismo da linguagem, contido, milimétrico, quase a-verbal, quase mudo, tendendo para o pictórico, o gráfico, a arte visual concreta, este ascetismo que nos legou possibilidades maravilhosas com o alfabeto fonético, fazendo-o, pela primeira vez no Ocidente (muito mais que em Cummings ou Mallarmé) se exprimir como ideograma, fazendo a imagem e a concreção da página realmente se entranharem na letra, na coisa poética. Nesta linha é que se desenvolve a maravilhosa poesia pós-concretista do Augusto de Campos, que ele reuniu no Despoesia, onde os poemas são uma espécie de pop-haikais gráficos. O Gullar diz que o Augusto era o único bom poeta entre os concretistas e que o Haroldo o estragou com sua idéias antiverbais, mas o Gullar está errado, pois ele continuou excepcional como poeta visual (ou verbovocovisual como ele gosta), apesar de todo o seu catecismo teórico – afinal ele é um sacerdote-mor da igreja da estruturação. O outro lado da igreja concreta, que é por onde o Leminski entrou com mais força com o Catatau, é do transbordamento da linguagem, que eles gostam de chamar de barroco ou neobarroco. Mas são dois polos do mesmo Sagrado, duas manifestações da mesma Divindade que é a Santa Linguagem. Novamente, é tão parecido com o protestantismo que raia o cômico. Num primeiro momento, a poesia concreta clássica (como diz o Leminski) o puritanismo ascético e comedido como antídoto ao transbordamento desmedido e pagão dos católicos da igreja do profundo. Num segundo tempo, a proliferação neobarroca, uma espécie de distensão, o momento pentecostal de derramamento do espírito santo cristão, mas dentro dos limites internos do protestantismo concretista, sob a mesma batuta rígida da bíblia e de seu deus masculino e punidor, o deus da estruturação rigorosa da linguagem. Transborde, prolifere, derrame-se, mas não esqueça o deus que opera em sua poesia, não esqueça dos rigores que amarram sua linguagem, do caminho estreito para o céu da estrutura, da ascese inventiva do texto, em nome do Pound, do Cummings e do Mallarmé amém. É duro ser dessa igreja, qualquer desvio do catecismo e te mandam rezar duzentos Pound Nossos e quatrocentas Ave Mallarmias.
E o caso do Leminski? Como escapar da catequese?
É difícil, é um trabalho difícil. Antes de falar do Leminski é bom saber com o que estamos lidando, o que significam estas igrejas literárias, que não são apenas a profunda e a da estruturação, mas também a do engajamento.
São três então...
Três, pelo menos três e mais as suas variações, dissidências, reintegrações, você sabe, perto do fim do mundo esse negócio de igreja é uma putaria só e o campo do sagrado virou literalmente a casa da mãe joana, pra alegria dos bruxos...
Mas o que significam então estas igrejas, estes sagrados que se instauraram no campo poético?
O primeiro sagrado, na poesia do Ocidente, é o profundo, em suas várias acepções desde o renascimento, desde Petrarca talvez. É uma espécie de reação ao Dom Quixote, ao Voltaire, à prosa romanesca e ensaística moderna, sempre irônica, sarcástica, desconfiada e materialista. Já notou como o romance é materialista desde o começo, mesmo quando mágico? A poesia se torna então uma espécie de salvação das almas, uma guardiã do conhecimento analógico como diz o Octavio Paz. É claro que ela não faz isto de forma pacífica, pois os poetas têm consciência da impossibilidade desta nostalgia e sabem o quanto sua resistência já se dá no tempo histórico do mundo burguês, do capitalismo e da ciência. Aliás, esta resistência nostálgica é um confronto com o mundo desencantado e utilitarista da modernidade, uma revolução paradoxal, porque aponta para trás, para uma concepção de mundo que certamente não voltará e que talvez nem tenha existido, porque esse negócio de resgate de passado, de conhecimentos passados, como é o caso do pensamento analógico, não deixa de ser uma construção, a construção do profundo no mundo moderno, a saudade de um universo espelhado e semelhante a si mesmo, o poema como microcosmo analógico do mundo. Assim, o poeta ora aparece como pesquisador, escrutinado a verdade oculta do mundo (o clássico), ora como profeta, anunciador da verdade (o romântico) ou ainda como caçador, procurando os vestígios da verdade (o simbolista). E esta verdade sagrada pode tanto ser buscada no ser das coisas (nos objetos, no outro) ou no si mesmo, no sujeito, na individualidade e até na linguagem, como faz o simbolismo, que em suas vertentes mais mágicas estende a linguagem no mundo e vê o mundo como linguagem, signos da correspondência. É bom lembrar que toda esta vontade de sagrado é impregnada por sua contraparte, pela fratura da consciência histórica, pelo desejo revolucionário: a poesia moderna é feita deste dilaceramento, desta fissura entre a analogia (as profundezas) e a razão (a historicidade). Mas sua face analógica nunca deixou de ser um reservatório das profundezas, do sagrado, da nobreza. Aliás, a literatura, a poesia em particular, foi o último domínio aristocrático que o capitalismo derrubou. Até meados do século XX a ideia de que ela enobrecia o espírito tinha bastante força.
Sim isto é história, nós já a conhecemos bem, é a igreja profunda, mas e o sentido desta igreja para o ocidente?
É uma transcendência, é aí que está o ponto: o profundo, a analogia, é um transcendental. Um abismo que suga e organiza as energias em seu interior, que para o movimento do mundo em nome de uma paz eterna, celestial (ou infernal, sei lá), um buraco negro. Uma hora este abismo é deus ou outro ser qualquer, outra hora é o sujeito, que é uma maneira mais humana, digamos, mais cristã de misturar a transcendência ao mundano: a ideia de sujeito é muito cristã e o cristianismo é uma espécie de humanismo sagrado.
A linguagem, no caso concretista, seria outra transcendência...
Não, não chegamos lá ainda, estamos na poesia profunda, não apressemos o passo. O transcendente aqui pode ser a linguagem sim, mas numa concepção simbolista. O importante é que a transcendência implica em construção de sistemas, ou de estruturas como o Derrida gostava de falar. As estruturas não são estáticas nem simples, elas se movem, proliferam, se contraem, são como organismos (outro bom nome). Mas elas têm centros ou centro, que é justamente o ponto de transcendência, o seu abismo trator, espécie de motor imóvel que está fora do jogo estrutural, que coordena este mesmo jogo do exterior. Este ponto de transcendência, abismo, ser, sujeito ou linguagem sagrada, é o deus da estrutura, o seu arquiteto onipotente e onisciente, lá onde o movimento acaba. Por isto, a poesia profunda da modernidade deixa um sabor/bolor sagrado na boca e mesmo com toda sua consciência histórica há sempre uma nostalgia de fundo, um deus que se perdeu ou que está por encontrar, a paz perdida da verdade eterna. Agora se isto está nos poemas ou na leitura que se faz deles é um troço complicado de dizer. É preciso ver caso a caso, até onde um texto pode se dobrar à transcendência e por onde ele pode escapar dela, por onde ele tenta fugir dos buracos negros.
Então a poesia profunda é uma estética transcendental, uma metafísica?
É, um modo de conhecimento, de percepção, de nostalgia ou visada transcendental. É bom ressaltar que isto não tem nada a ver com qualidade, não se trata de poesia de má qualidade, inútil ou coisa assim, muito pelo contrário. O problema é que a transcendência sempre esteve em crise na poesia, apesar de sua situação dominante. Mas na virada do século XIX para o XX, ela já não tinha sentido para alguns poetas, para algumas atmosferas/correntes poéticas.
As vanguadas, por exemplo...
Sim, as vanguardas europeias denunciando a sacralização e a nobreza da arte, de como esta sacralização era, no fundo, burguesa. E qual a alternativa para a arte enobrecedora, qual poesia deveria desafiar as profundidades, se opor à transcendência? Deveria ser uma poesia da imanência, onde o sagrado, o uno, o ser não teria vez. Havia dois caminhos para isto. O primeiro, aberto pelas experiências simbolistas, era o da estruturação da linguagem como coisa, como signo despojado da analogia. O segundo era seguir o caminho do romance ou, pelo menos, de uma certa interpretação do romance, que era fazer a relação da estrutura do texto com as formações históricas. Então as alternativas eram a poesia de estruturação e a poesia engajada (engajada num sentido amplo, de consciência histórica, não apenas de denúncia social). São dois ateísmos possíveis. E ambos, de certa forma, já estão previstos na tradição da ruptura como sua contraparte desencantada, ou seja, faziam sistema com a analogia, assumindo o papel de antíteses possíveis. Então, a estruturação e o engajamento significam, não a fuga entrópica do campo poético estabelecido, mas a afirmação de estruturas minoritárias já existentes, uma espécie de tomada do poder literário pela esquerda – e esse negócio de esquerda assumir o poder a gente sabe muito bem no que dá... O concretismo embarcou na estruturação, na linguagem-coisa. Alguns poetas, inclusive o Gullar de Dentro da noite veloz, embarcaram na poesia engajada. Cabral mesclou as duas tendências, estruturação e engajamento.
Em todo o caso, o concretismo é uma recusa da transcendência da poesia profunda, uma vez que sua estética é a da estruturação da linguagem...
Sim. O movimento é de luta contra a transcendência profunda, ou seja, uma tentativa de construção da imanência, foi um desejo concretista, mas eles não conseguiram. O que fizeram foi fundar um outro sagrado, um outro ponto de transcendência. O raciocínio parecia lógico para eles, como era para Jakobson. De que se faz a poesia? De palavras, de linguagem, de significantes. Ora, a linguagem então é a matéria, a única carne palpável da poesia para além de qualquer ilusão metafísica, é o seu plano de imanência possível, o campo no qual ela pode se desenvolver sem precisar dever nada para transcendência alguma.
De fato, não deixa de ser um empirismo, um materialismo bruto e poderoso este.
Sim, o problema é a concepção de linguagem dos concretistas, que era (e pra muita gente ainda é assim) estruturalista, sistêmica, orgânica. Eles pensavam em termos de sistemas fechados que se inter-relacionam, que trocam valores ou entram em relação dialética. Eles questionavam a poesia modernista profunda, uma poesia subjetiva, de diluição, sentimental, chorona, verborrágica, psicológica. Tudo bem estavam certos, mas nunca questionaram a concepção de sujeito desta poesia. Só diziam o seguinte: a estrutura-sujeito não tem nada a ver com a poesia, ela só entra no circuito poético na sua ponta final, como receptora, ou na antessala poética, como origem das motivações psicológicas da feitura do poema, mas a verdade da poesia está na estrutura-linguagem que ela é. Então, o que eles fizeram foi apenas desvalorizar o subjetivo e hipervalorizar a linguagem. Nunca se perguntaram: o sujeito e a linguagem são mesmo estruturas? São sistemas fechados que interagem entre si de maneira relativamente estável e previsível? Eles precisavam de uma perspectiva imanente de mundo, de questionar o sujeito e a linguagem (e a sociedade) enquanto estruturas. Faltou isto à sua poesia e, principalmente, à teoria, que é fraca, mais fraca que a poesia. A teoria da poesia concreta é quase sempre um catecismo da estruturação da linguagem. Tinha fé demais na linguagem como estrutura, na sua capacidade revolucionária. Ela aceita que a linguagem é um sistema fechado, assim como o sujeito e a sociedade. Estes sistemas fazem trocas entre si, mas de forma a nunca perder sua identidade própria, suas centralidades, sua unidade enfim. A poesia se desenvolve no plano do sistema-linguagem, ela é fundamentalmente estruturação dos signos linguísticos. Tudo o mais, o afetivo, o perceptivo, o coletivo que aparece no poema são seres de linguagem, que remetem para fora da linguagem, para o sujeito e a sociedade, sim, mas cuja essência de verdade no poema é forma linguística. Veja como a linguagem funciona como o último desaguadouro do universo poético, que suga e para todo movimento, mesmo que a poesia seja altamente experimental e inventiva (e a poesia concreta era, e com furor), mesmo assim tudo conflui para o abismo da linguagem e seus rigores, veja como eles transformaram a função poética no ponto de transcendência da poesia – oh! São João Jakobson anunciador.
Então a tentativa de imanência concretista fracassou e acabou em outra transcendência. E a outra tentativa de imanência, a engajada?
Essa é fraca em poesia. Ela é da prosa, mas se infiltrou na poesia... quando? É difícil precisar. Em língua portuguesa já a divisamos em Cesário Verde, com aquela secura incrível, aquela linguagem chã, irônica, entre cética e imperturbável e que, no entanto, era estranhamente perturbada e perturbadora... Em Drummond o engajamento é poderoso, ágil; e em Cabral é levado ao ápice da desolação: o engajamento, mais que uma poesia da denúncia, é uma poesia da desolação, do desengano ateu, eis sua força crítica. É por conta deste ceticismo ateu que o engajamento aparece como alternativa à profundidade. E os engajados também são inimigos encarniçados da igreja profunda e, muitas vezes, desafetos da nova igreja da estruturação. É só conferir a briga de foice no escuro entre Roberto Schwartz e os concretistas. O seu projeto contra as transcendências profunda e de linguagem é a afirmação da historicidade radical da literatura. Mas sem entrar em muitos detalhes, os engajados também fracassam. O motivo principal do fracasso é acreditarem numa espécie de mimese literária, num certo vício representativo que rebate a forma literária (do poema ou da narrativa) nas formações históricas. Em suma, a estrutura do texto, de uma forma ou de outra, reflete, refrata ou renega dialeticamente a estrutura do real social. O mesmo jogo das estruturas estanques, só que, desta vez, a primazia, o ponto de transcendência está na estrutura social ou, pelo menos, na complexa dialética entre a linguagem literária e as formas sociais – como na engenhosa crítica de Schwartz. É incrível como se consegue transformar a historicidade, tão ateia e materialista, em um ponto de transcendência literário. É que toda vez que se tenta achar uma estrutura de base, um explicador final, uma poética da unidade para o texto, o que se acha, na verdade, é um buraco negro que vai, novamente, parar o movimento poético, mesmo que este buraco negro seja o mais agnóstico possível, como é o caso da historicidade.
Sim, mas há as soluções sincréticas para o texto, que considera tanto o social, o psicológico e a linguagem, seja na construção ou na leitura da poesia.
Os sincretismos, os hibridismos, as mesclagens, eles não resolvem nada, só fazem a replicação, a dialética e a convergência dos pontos de transcendência, mantendo a mesma concepção de sistemas fechados em relação dialética ou de troca. No máximo, o hibridismo produz uma tensão irresolvida entre as várias estruturas: sujeito, sociedade e texto. É o que se prega, uma leitura sincrética dos autores, de Drummond, por exemplo, pois ele, afinal de contas, seria o poeta completo e multifacetado, um mestre (o master poundiano) em que subjetividade, rigor linguístico e engajamento são igualmente importantes e poderosos. O que iríamos encontrar com isto? Um triplo ponto de transcendência, a santa trindade moderna, o ecumenismo das três igrejas, a complacência piedosa das crenças rivais. Mas ainda assim, transcendências, pontos de confluência onde os movimentos poéticos cessam, onde nada mais passa, nada mais pulsa, o ponto da verdade eterna transcendental. Uma provocação à parte: não seria possível extrair uma imanência de Drummond, de Bandeira e mesmo de Jorge se Lima e Murilo Mendes?
Agora podemos retomar o Leminski, não? Ele superou os catecismos das igrejas poéticas? Ele driblou os seus pontos de transcendência?
Sim, mas não foi tarefa fácil. É difícil de fazer. Difícil de pensar também, de saber o que se faz. Muito da poesia do Leminski, sua poesia pós-Catatau, é no sentido de se livrar das catequeses, das transcendências do campo literário. Muitas vezes ele cai nas armadilhas do profundo, não o subjetivo, mas numa certa metafísica oriental, clássica e até mesmo cristã. Outras vezes sua poesia se deixa sugar pelo abismo da estruturação da linguagem, rezando na cartilha concretista. Que quer dizer isto? Que o Leminski oscila, a seu modo, entre a lógica analógica e a razão do poema de tendência concretista ou, por outras palavras, que ele se insere na tradição da ruptura que caracteriza a poesia moderna, como diz o Octavio Paz. Mas, para o Leminski, havia a necessidade de sair desta oscilação, de sair dos hibridismos e deslizar entre as estruturas e suas igrejas, estabelecer uma poética de movimento absoluto, não apenas do movimento relativo, interno às estruturas, mas o movimento que recusa qualquer estrutura e todo o freio, que seja puro erro. De uma perspectiva estrutural, este erro seria o errôneo, o contrário do acerto, mas de uma perspectiva imanente seria a errância, uma poética errática que recusa os fechamentos sistêmicos. Muitas vezes ele vislumbra esta errância e não consegue um bom resultado poético
Como acontece com muita poesia marginal...
Como Chacal, por exemplo. O problema da poesia marginal é que ela não conseguiu uma boa linguagem para o erro, não construiu os rigores da errânica. É difícil se afastar dos pontos de transcendência: linguagem, sociedade, sujeito. Eles são uma referência poderosa, são como esqueletos ou germens de rigores (não são fórmulas prontas de rigores como no parnasianismo, é mais complexo) que indicam o 'caminho estreito' da experiência poética e escapar deles pode resultar em obras sem nenhum estilo, nenhuma sintaxe, obras que não se sustentam como tais, que não criam mundos e se tornam meros testemunhos textuais de impressões e vivências, como é o caso de boa parte da poesia marginal. No caso do Leminski, ele já nasceu, como poeta, vacinado contra o engajamento e a poesia subjetiva. Ele dá uma entrevista divertida sobre isto, em que diz estar cagando e andando pra poesia profunda, que ele não tem psique, que é uma besta dos pinheirais... O problema maior dele é com o concretismo, com os rigores concretistas, com o ponto de transcendência de linguagem que ele vai tentar distender, desviar, corromper. Ele sabe o quanto é difícil, pois não significa perder o rigor da linguagem, perder a sintaxe, o espírito de inovação e experimentação, não se trata disso. A questão é como construir os rigores da errância, rigores feiticeiros e não sacerdotais. Estes rigores não anunciam nenhuma voz sagrada, mas liberam as vozes do delírio, irremediavelmente plurais e proliferativas. Para os sacerdotes das igrejas literárias tais rigores são infernais, pois se não respondem a nenhuma transcendência certamente é coisa do diabo.
E o Leminski consegue isto em sua poesia?
Em alguns poemas, sim. E, sobretudo, ele consegue, também nestes poemas, pensar o assunto mais que nos seus ensaios que, no geral, tendem para o catecismo concretista. Há um poema dele que diz "Quero forças para o salto/ do abismo onde me encontro/ ao hiato onde me falto" e arremata "Pedra, letra, estrela à solta/ sim, quero viver sem fé,/ levar a vida que falta/ sem nunca saber quem é". É a recusa de toda a transcendência, de todo buraco negro. A princípio parece que se trata apenas de uma recusa da psique, do ser, mas, na verdade, é a busca de uma pura imanência no poema e na vida. Aliás, o caminho que Leminski encontrou para a imanência foi encharcar a poesia de vida e vice-versa, fazer poesia e vida deslizarem uma na outra. E ele pagou com a vida por isto, era intenso demais...
Parece romântico, vida e poesia. Dor, amor, embriaguez e morte. Excesso de intensidade...
Parece romântico, neo-romântico – e também meio beat, rock and roll. Pode até ser, mas enquanto os românticos (ou pelos menos é a leitura que se faz deles) tendem a ver sua perdição de vida como um passo para a comunhão com o mistério maior da vida, com o transcendente, em Leminski há a tentativa de levar o erro ao limite extremo da errância, viver sem fé, à velocidade da treva e não à velocidade da luz, como ele mesmo diz.
Então esta interpenetração de vida e poesia é diferente da que ocorre nos românticos. Seria diferente também da infiltração de vida na poesia modernista como em Bandeira e Mário?
Sim, pois o modernismo ainda evoca o sujeito, a vida do sujeito, a psique. Em geral a leitura que se faz do poema modernista é tratando-o como uma expressão da subjetividade, por mais que de um lado ela transborde para o oceano do ser e da analogia e, de outro, ela se fragmente e se dissipe na historicidade desencantada da modernidade. Aliás, o sujeito seria exatamente o ponto de inflexão destes contrários, o ponto de dilaceramento desta tensão, novamente a tradição da ruptura. Por isto a subjetividade poética modernista é tão complexa e cheia de nuances, oscilando entre a nostalgia, a melancolia, o ceticismo e a utopia. O poema modernista seria a expressão, a representação ou a sondagem, quase sempre fracassada, das profundezas deste sujeito em crise, fraturado, fragmentado. Com o Leminski, há uma tentativa de desvio desta trajetória, uma resistência à sondagem das profundezas, mas também à historicidade e à estruturação de linguagem que são as faces laicas e desencantadas da tradição da ruptura. Veja o caso dos afetos, da afetividade, do sentimento, ele não exclui isto de sua poesia e nem os reduz a seres de linguagem, não os fazem desaguar em estruturação de linguagem como os concretistas prescreviam. Mas também não são os afetos de um sujeito, não é a sondagem de uma psique, de uma alma, seja ela individual, nacional ou universal. Isto ocorre porque, de certa forma, Leminski tem uma concepção da linguagem e do sujeito diferente dos modernistas e dos concretistas. Para ele, a linguagem é um sistema aberto, uma atmosfera permeável que já está impregnada da vida dos homens desde sempre, uma espécie de concepção pragmática da linguagem, que não está no sistema de coordenadas dos eixos sintagmáticos e paradigmáticos, não é o código e nem mesmo o movimento do código, a sintaxe do código. A linguagem para o Leminski é seu uso, é utilitária, é a sua ferramenta, imperfeita, imprevisível, impura, misturada com o mundo desde as entranhas. Ele sabia e queria a impureza da linguagem, de cada sílaba e som. Assim como via o sujeito como um sistema aberto, sem essências. Tem um poema muito bom sobre isto, sem dúvida inspirado na filosofia zen do haikai: "apagar-me/diluir-me/desmanchar-me/até que depois/de mim/de nós/de tudo/não reste mais/que o charme". O charme, que em francês remete ao poema, é também um estado sedutor, é resíduo, rarefação, deslizamento do sujeito, é uma atmosfera contagiante, uma circulação energética, uma individuação não essencial, uma linha de subjetivação, algo que transpassa e é transpassado pelo ambiente, muito precário e poroso. Esta sua concepção imanente da poesia e da vida, da linguagem e do sujeito, que recusa toda transcendência e todo rebatimento em estruturas finais, que recusa toda fórmula da eternidade, esta imanência vai ficar realmente clara no Agora é que são elas e no Metaformose.
Que muitos dizem ser um texto Catatauesco, um Catatau de menor fôlego.
Bobagem, Metaformose é melhor, mais incisivo e agudo, um texto que evita as firulas de linguagem. E, apesar de algumas semelhanças, é muito diferente do Catatau que é um texto desigual, superestimado como prosa de invenção, neobarroca, esta ladainha dos fiéis da igreja da estruturação. Eles admiram o Leminski como neoconcretista, como poeta do rigor da linguagem que ousou se aproximar dos insigths de relaxo/vivência da poesia marginal e conseguiu uma espécie de fusão zen, de hibridismo entre a expressão subjetiva de descompressão da linguagem e o rigor objetivo concretista, pendendo para este último, é claro. O críticos e poetas
construtores, de filiação concretista, fazem uma interpretação sincrética do Leminski, usando as coordenadas poéticas do concretismo.
O próprio Leminski interpretou sua poesia como uma pororoca, um encontro tropicalista entre a razão cartesiana concretista e o desbunde carnavalesco tropical.
É, e muita poesia dele é assim mesmo, entre a razão estrutural do poema e um pensamento analógico carnavalesco, mas há poemas e textos que deslizam entre estas polaridades e caminham para a errância, para outro regime poético. Talvez Leminski não tivesse plena lucidez da tarefa que empreendeu rumo ao erro. É normal em poetas, não que eles não saibam pensar, mas costumam fazer isto melhor de forma poética, não conceituando, mas imbricando o pensamento em sensações e afetos. O Leminski foi um grande pensador, os seus poemas e textos criativos tendiam para o que Pound chama de logopéia, mas um pensador estético, que é muito diferente de um intelectual, um crítico, um teórico. Temos então que extrair este pensamento de sua obra, entender e até fabricar os conceitos que ele fareja e também discernir os problemas a que este pensamento estético responde. Temos que estender, fazer proliferar o seu texto poético. Só assim podemos usá-lo de modo fecundo. E, muitas vezes, o que se extrai daí é contra as ideias acabadas, as totalizações interpretativas que o próprio autor faz de sua obra.
Sim, você estava falando de como no Agora é que são elas e no Metaformose a recusa da transcendência e a afirmação da imanência ficam claras. Será porque são dois textos em que há muito desse pensamento estético?
Sim, sim. E por incrível que pareça, são textos que refletem sobre a narrativa e não sobre a poesia. É como se o Leminski, que era por natureza um poeta, precisasse falar em narrativa e da narrativa para afirmar a imanência. Como se precisasse de um outro, o outro da prosa fabular, para buscar a imanência da linguagem da poesia e da vida. Às vezes se busca num domínio conexo o que queremos para o nosso, como se fosse preciso passar por circuitos alternativos para melhor pensar as circulações em que estamos imersos.
Vamos falar no Metaformose, que é um texto sobre os mitos gregos. Não há assunto mais clássico, afinal. Aliás, não há matéria poética mais primordial, mais metafísica...
É verdade, porque o mito, porque recuperar os mitos gregos na era do capitalismo eletrônico? Parece, de início, uma tarefa regressiva, nostálgica, a recuperação das profundezas mais profundas do Ocidente, uma vontade de resgatar nossa origem substancial. O próprio Leminski diz, na parte mais didática do livro, que os gregos imaginaram todo o imaginável, o que pode ser interpretado como se eles tivessem fabulado todas as verdades do homem ocidental, guardadas desde sempre em sua mitologia. Restaria a nós interpretá-las, desvendá-las, sondá-las, o que não deixa de ser uma poética da profundidade, ao estilo clássico. Mas quando partimos para o texto criativo de Metaformose, vemos que ele abandona esta concepção.
Partamos para o texto então...
É melhor começar pelo que o texto não é. Há pelo menos quatro maneiras modernas de tratar os mitos clássicos. A primeira vigorou entre os poetas e mitólogos até o século XIX. É acreditar, não na veracidade das fábulas ou dos deuses, mas no mito como expressão simbólica ou metafórica da verdade da alma ou da psique humana. É a crença no mito que os Junguianos ainda têm e que a psicanálise, de certa forma, também, com o Édipo. Desta visão do mito certamente derivaria uma poética profunda, mesmo que seja a da crise do mito, a da sua impossibilidade nos dias de hoje, como é o caso dos poemas melancólicos do Alexei Bueno sobre os deuses gregos. No Metaformose não há esta crença, nem mesmo a desilusão da crença: "Fábulas não são parábolas, nenhum sentido oculto, toda fábula é feita de luz. Moral da história, histórias são amorais". A segunda maneira é inserir o mito na história, vincular a mitologia a um contexto social e aí as fábulas gregas vão aparecer no contexto de uma sociedade aristocrática. É a leitura dos mitólogos no século XX, que não acreditam mais no mito e o veem como um fenômeno histórico. Também este não é o caso do Metaformose, que não remete às formações da sociedade grega, a não ser em sua parte didática, onde Leminski toca levemente no assunto. A terceira leitura do mito é a que Levi-Strauss engendrou com sua antropologia cultural, numa tentativa de determinar a estrutura simbólica das culturas, que vai buscar uma espécie de lei do mito não nos seus conteúdos, mas nas suas relações formais. Muito próximo disso está a quarta leitura, também estruturalista, que busca uma espécie de forma geral da narrativa, muito técnica e abstrata, todo aquele troço que começou com o Propp (que não queria bem essa forma geral, mas foi o inspirador para sua procura posterior, não é à toa que Propp é o personagem central do Agora é que são elas), passando por Greimas e Genette. Estes dois últimos modos de ler o mito são os mais interessantes para nós, porque vão convergir com a poética concretista, amante do estruturalismo. E são neles que o texto do Metaformose se detém mais, justamente para evitá-los. Há todo um cuidado para que a proliferação mítica não caia no buraco negro ordenador do estruturalismo, para que a forma da linguagem não surja como um ponto de transcendência. Esta é a armadilha da qual Leminski se encontra mais próximo e justamente a que ele esconjura com mais vigor: "Não há lugar para sonhar com uma fábula que seja a soma de todas as fábulas, a Fábula total, a Fábula universo. Fábulas são sábias. Não há nenhuma fábula sobre isso"
Sim, Metaformose recusa todas estas leituras do mito. E o que ele coloca no lugar?
Todas estas leituras vinculam a estrutura do mito, da narrativa em geral, a uma outra estrutura de fundo: à estrutura profunda do homem universal, à estrutura social da Grécia pré-socrática, às estruturas formais da cultura ou da linguagem narrativa. São leituras transcendentais na medida em que estabelecem um fora para o jogo fabular, este fora é uma estrutura primária que causa, sustenta e explica o movimento da estrutura fabular. Como evitar estes abismos transcendentais que fazem parar o movimento das fábulas? Como atingir a pura imanência? É dizer, como Deleuze diz, não há unidade, não há centralidade, não há sentido (verdade) nem leis formais que regem o jogo das fábulas. No mundo das fábulas não há o jogo do dentro e do fora. Formulado de outro modo, tudo é fora, pois quando só existe o fora não há possibilidade de haver um exterior imune ao movimento, nenhum motor imóvel controlando a circulação das fábulas: "elas se expandem em todas as direções, entrópicas, auto-proliferando-se, alimentando-se do cadáver putrefato das fábulas já existentes." Até os homens, que contam os mitos, aparecem, em certo momento, como seus meros reprodutores, como pontos de passagem das fábulas, as quais perfazem um mundo próprio sem dever sua existência e seu movimento a nada nem ninguém: "As histórias, sozinhas, se contam entre si. A história do Minotauro narra a saga de Perseu para um público de Medusas. Os homens são apenas os órgãos sexuais das fábulas". O universo das fábulas que Leminski constrói no Metaformose é muito parecido com o que Deleuze & Guattari chamam de rizoma no início do Mil Platôs. É a construção estética da ideia de rizoma.
É um troço bem barthesiano esse, em que a escritura fabular se tece a si mesma. Mas não se corre o risco de se construir, assim, um mundo das fábulas totalmente alheio ao dos homens, fechado em si mesmo? Um mundo ideal. E desse ideal para a transcendência é um pulo...
Não, não. Não é um mundo fechado, é um sistema aberto, um universo imanente, um Corpo sem Órgãos. Os homens, a sociedade, são outros corpos, outros universos imanentes. A imanência implica apenas que não há pontos de transcendência, não implica em fechamento, muito pelo contrário, ela é a abertura extrema, a porosidade máxima que se pode num corpo. Dizer que as fábulas não devem nada aos homens, que elas se contam a si mesmas, não significa erigir um mundo ideal das fábulas, onde os homens são apenas fantasmas, é apenas dizer que o movimento das fábulas não pode ser rebatido no mundo dos homens, que ele não é a representação de uma verdade que está na sociedade ou na psique do homem. O movimento das fábulas, para Leminski, é de produção e não de representação, elas não representam nada, "Que significam fábulas, além do prazer de fabular?". Há, em Metaformose, duas realidades, dois níveis de acontecimentos, duas corporeidades: as fábulas e os homens. Como estas realidades se organizam, como se distribuem umas em ralação às outras? Como se trata de arte, para responder estas questões é preciso se perguntar como isto se resolve esteticamente.
E como é?
É um texto simples, o Metaformose. Nada das finesses barrocas do Catatau ou das Galáxias. Nada de metafórico ou simbólico, nada de alusivo ou elíptico. É muito bruto. Leminski é um poeta bruto, sem muita sutileza. A princípio, parece que o texto não tem consistência, não tem densidade, é como se fosse um moto contínuo em que se transita entre as fábulas ou pedaços de fábulas misturadas aleatoriamente a fragmentos de ideias e pensamentos. O texto salta continuamente entre fábulas e ideias, na verdade, corre entre elas. Daí a falta de consistência, a impressão de que se está diante de algo sem densidade, diante de puras circulações, de energias. Mesmo que uma ideia reapareça em outro lugar do texto, isto é, seja obsessiva, como a de que as fábulas não têm um ponto de transcendência, ideia que emerge de diversas maneiras em vários lugares do livro, mesmo que haja essa insistência, a impressão que se tem é de fluidez, como se algo palpável se esboçasse no movimento ondulatório do texto para novamente mergulhar nele como energia indiferenciada. Trata-se de ondas, de compor um texto em ondas, como uma atmosfera ou um campo energético. Leminski retirou tudo o que poderia fazer refluir estas ondas, como a metáfora, o símbolo e até mesmo a estruturação de linguagem: a linguagem aqui procede por proliferação, não a do tipo neo-barroca, não estamos falando de um jogo auto-referente, mas de uma proliferação em que o texto se precipita em ideias, em perceptos e afetos, verdadeiramente construtiva. A proliferação neo-barroca das Galáxias é ainda reflexiva, um labirinto de espelhos literário, uma espécie de narcisismo da linguagem poética que gira loucamente, mas sempre em torno de si mesma. Leminski nunca quis só o texto, a literatura, o livro, a citação, ele quis que o livro se lançasse para fora de si, que o texto estético atingisse o ponto do pensamento, dos afetos, da vida. Neste aspecto ele é muito parecido com o Gullar e é por isto que a proliferação da linguagem no Metaformose, apesar de sua rudeza e despojamento, e até de um certo descuido, é mais interessante que a das Galáxias e a do Catatau, pois ela abandona o labirinto de espelhos neo-barroco. É literatura, sim, mas que não quer o narcisismo literário.
E como fica a relação entre fábulas e homens no Metaformose?
Há um ponto, ou melhor, uma linha de inflexão entre os dois, que é o Narciso: trata-se de uma fábula, de um elemento fabular ou de um homem? Esta ambiguidade irá percorrer o texto de ponta a ponta e não se resolverá, antes, ela vai se desdobrar, se recolocar o tempo todo. Ora Narciso é os homens, ora é coisa fabular. A partir daí, há todo um imbricamento entre as duas ondas imanentes que povoam o texto, as fábulas e os homens. Veja que se tratam de ondas, de sistemas abertos e porosos e não de estruturas. Não é a estrutura das fábulas de um lado e a estrutura da psique ou da sociedade, de outro. São duas ondas, duas atmosferas se entrecortando continuamente em seus mínimos fluxos. A sua relação não é reflexiva nem dialética, as fábulas não representam a ordem dos homens ou vice-versa. Dialética e reflexividade são relações estruturais, entre estruturas, que não cabem a sistemas abertos, que se organizam como ondas. A relação entre as fábulas e os homens é de interferência recíproca, como dois campos de energia que interagem microscopicamente, tornando difícil traçar o limite onde começa um e termina outro. Homens e fábulas são diferentes em sua natureza, mas os limites entre eles são indiscerníveis, pois sua interação se dá por limiares, pois as ondas (marítimas, atmosféricas, energéticas) passam de uma a outra por limiares e não por limites. Um necessita do outro, pois não há nem fábulas sem homens, nem homens sem fábulas, mas a existência de um não espelha a do outro, não representa o outro. São ondas que deslizam umas sobre as outras incessantemente. Os homens precisam das fábulas pra explicar o mundo e as fábulas necessitam dos homens para procriar, como se fossem dois corpos, duas espécies em simbiose. É uma visão inumana das fábulas, como se elas tivessem sua própria vida, não uma vida ideal, celestial, mas concreta, tumultuada, povoada de perigos, mortes e nascimentos e, ainda por cima, dependente, em parte, dos homens que as contam. As fabulas permanecem, os homens as compartilham, mas também as modificam e às vezes às esquecem, ou seja, elas morrem. Do mesmo modo a vida dos homens depende parcialmente das fábulas: o que seria de nós sem a capacidade de narrar, de lembrar e ordenar coisas e eventos na duração, sem a capacidade de acionar as fábulas, enfim? Esta é a relação que Leminski estabelece entre homens e fábulas, de 'acionagem', ambos necessitam acionar-se mutuamente para viver, fazer disparar o processo de vida um do outro. Parece estranho pensar assim, mas se atentarmos bem para a concepção de discurso que o Foucault tem, toda aquela circulação discursiva, aqueles dispositivos que passam pelos homens e os dispõe no mundo, é muito parecido com este mundo fabular do Metaformose.
E onde está a imanência nisto tudo?
É um mundo de puras circulações, puro movimento, sem pontos de apoio, sem origem nem fim, sem totalidade nem unidade, sem motor imóvel nem juízo de deus. As fábulas circulam nos homens que circulam nas fábulas, e nem homens, nem fábulas, nem qualquer outra instância possui as explicações ou os controles para o movimento, para as transformações incessantes. Então, fábulas e homens formam um universo imanente, são duas ondas precárias deste universo, a onda dos signos, que narra e explica, e a onda dos corpos, que vivem a vida biológica dos homens. Neste universo não há possibilidade de transcendência exatamente porque o explicador, que é o signo, a linguagem, a fábula enfim, este explicador não remete para nenhuma transcendência, nem mesmo de linguagem, pois está no mesmo nível de precariedade e devir que a vida humana, embora a vida das fábulas seja de uma natureza totalmente diferente. Não há uma celebração da verdade dos mitos, nem a busca de qualquer outra instância que os explicaria finalmente tais como a psique humana, as formações sociais, a estrutura simbólica ou as formas de linguagem, como se o mito fosse a expressão metafórica desse explicador final. No Metaformose há simplesmente uma afirmação, ao mesmo tempo sóbria e radical: a da pluralidade intransitiva das fábulas, mas também da vida humana, ou seja, a afirmação da imanência pura de um cosmo em que fábulas e homens estão imersos como acontecimentos.
Você usou conceitos de Deleuze & Guattari para explicar o Leminski, como rizoma, devir, CsO acontecimento, o que é bem interessante. Mas esta insistência em extrair um Leminski deleuziano não poderia matar a singularidade do poeta e dobrar a sua obra às exigências de uma teoria ou filosofia?
Não, não se trata de explicar o Leminski por meio da filosofia de Deleuze & Guattari, se bem que o efeito final pode até ser este, pois é da natureza do pensamento filosófico criar conceitos aplicáveis a certos problemas: então o problema estético Leminski seria explicável ou respondido com a solução conceitual Deleuze & Guattari. De certo modo você tem razão, digamos que os conceitos filosóficos dos autores do Antiédipo se aplicam bem ao problema Leminski ou, pelo menos, aos problemas que sua obra coloca. Mas talvez possamos pensar de outro modo, assim: que a obra de Leminski, particularmente o Metaformose, é já uma resposta estética bem acabada ao problema de como escapar da transcendência e instaurar a imanência, que é o mesmo problema ao qual a obra destes pensadores procura responder filosoficamente. Então, o que temos não é a filosofia de Deleuze & Guattari como chave conceitual para decifrar a poesia de Leminski, mas uma convergência de soluções para um mesmo problema que se impõe ao Ocidente pelo menos desde o fim do século XIX. É claro que a solução de Deuleuze & Guattari é conceitual e a de Leminski é estética, mas são afins. A relação entre Leminski e estes filósofos é de afinidade, de ressonância como dizia Deleuze. Eles fizeram obras que ressoam umas com as outras, cada um em seu campo específico e por conta própria, sem se conhecerem. Porque os conceitos do Antiédipo e do Mil platôs servem tão bem para falarmos do Metaformose? Não seria por conta de uma espécie de afinidade que eles mantêm com o pensamento-poesia de Leminski? Ora, isto é perfeitamente factível. As pessoas podem até estranhar quando aproximo o Metaformose do Poema sujo, quando encontro pontos de contato entres estes dois textos de intenções (textuais) tão diferentes, mas isto é aceitável, é literatura comparada. Porque não se pode aceitar que entre uma obra literária e uma filosófica não possa haver linhas de contado, espécies de isormorfias assimétricas do espírito? Assim, uma obra filosófica não seria só o explicador da obra literária, mas, apesar de suas diferenças, que não são pequenas, teria uma espécie de empatia com ela, uma afinidade mágica, como acontece na amizade: os amigos são seres diferentes e, no entanto, afins, muito antes de se conhecerem e, se o encontro ocorre de fato, é como se um iluminasse a vida do outro. Os amigos (e os amantes também) dizem um para o outro: se você não aparecesse eu não saberia, mas era exatamente uma vida como a sua que a minha desejava. Não para que as vidas se tornem mais completas, nada desse papo furado de cara-metade ou alma gêmea, mas um amigo, uma amada, uma obra (as obras que gostamos são nossas amantes) são como terras novas e fecundas que se avizinham, por onde nosso espírito se prolonga com alegria. Então, o que existe é esta amizade entre a obra do Leminski e a de Deleuze & Guattari, mesmo que uma não saiba da existência da outra.
E nós somos os amantes destas obras?
Sem dúvida, a relação dos homens com as obras literárias, com os signos enfim, é a do desejo, é a mesma relação dos homens com as fábulas: uns fecundam os outros sem cessar.
Que outras obras de poesia brasileira mais atual seriam amigas das de Leminski?
Deve haver uma porção delas, pois a literatura, depois de meados do século XX entrou numa espécie de crise definitiva. Por um lado ela entrou demais no mercado, no jogo das premiações, esse troço todo. Por outro, ela deixou de ser um estado, ou uma igreja, deixou de ser a nobre expressão da alma de uma nação, do homem universal, da sociedade. Ela foi desincumbida do peso de representar estes paquidermes espirituais, de enobrecer a alma e atingiu uma leveza, uma marginalidade e uma liberdade com a qual vários escritores sonharam. É claro que isto tem seu preço, que é o de viver no submundo, no quase anonimato, ser, como diz o Augusto de Campos, um pulsar quase mudo. Mas quanto à sua pergunta, essa poesia que tende à imanência, uma espécie de tradição maldita em poesia, pode estar em autores muito diferentes entre si, como no Ferreira Gullar do Poema Sujo, em Manoel de Barros, Sebastião Uchôa Leite, no Augusto de Campos pós-concretista...
No Augusto de Campos?
Sim, no Augusto. É preciso extrair o leite imanente que brota e nos grita de seus popoemas visuais, contra as crenças estruturantes do próprio poeta, que é um sacerdote-mor da igreja da estruturação. Para isto é preciso pensar a sua poesia com sobriedade e rigor crítico, pensar e não simplesmente louvar, como fazem os seus discípulos basbaques, que repetem sempre o mesmo catecismo, a mesma cantilena concretista da invenção, do neo-barroco, do rigor conciso, essas baboseiras automáticas da igreja da estruturação da linguagem.
E o Gullar, que parece estar no extremo oposto do Leminski e do Augusto, com uma poesia que passa pela expressão subjetiva e pelo engajamento?
Realmente, o Gullar começa com uma poesia existencialista de expressão subjetiva, passa brevemente pelo concretismo, sem nunca ter tido convicção pelo movimento, e depois se volta a uma poesia de engajamento. Todas estas passagens se dão por impasses, por crises, como se cada fase desaguasse num apocalipse poético depois do qual só restasse o silêncio. São mortes poéticas. Digamos que o Poema sujo seja a resolução possível destas mortes, a vida possível da poesia para o Gullar. Muita gente pensa que o Poema sujo é uma espécie de síntese de toda a sua poesia anterior, já que neste texto há um diálogo com os outros e um aproveitamento de certas construções, a retomada de certas matérias, dilemas e obsessões do poeta. Mas o fato é que o Poema sujo é muito mais uma ruptura do que uma síntese, a ruptura mais radical de Gullar com sua obra anterior, no sentido em que ele, de fato, entra para outro regime poético. Talvez a palavra ruptura não seja boa, por dar uma ideia de antítese, de polaridade dialética, que é um movimento previsível num sistema fechado. A objetividade concretista, por exemplo, é uma polaridade diametralmente oposta ao subjetivismo modernista e faz sistema com ele. O melhor seria falar em escape. O Poema sujo é um texto de fuga, de deslizamento absoluto por entre os pontos de transcendência poéticos.
Como assim?
É preciso nos perguntar sobre as crises da poesia do Gullar, qual o significado delas. Em A luta corporal, ele começa a poesia na fratura que os poetas modernistas se instalaram e aprofundaram até o limite, que é a da ironia, a da consciência poética perturbada pela perda da aura. O Octavio Paz talvez tenha sido quem melhor expôs esta fratura, com a tradição da ruptura, a ideia de que a poesia moderna se instaura no espaço paradoxal de uma nostalgia analógica e uma utopia histórica, um desejo de volta ao paraíso combinado com o de uma revolução libertária. Independente de outras motivações, como os problemas da nação e a revolta contra a fôrma parnasiana, a tarefa mais urgente do modernismo foi retomar e colocar esta questão no panorama da poesia brasileira, pois os parnasianos não tinham nem ideia do que se tratava, presos na sua atmosfera neoclássica, deslocados da modernidade. O melhores modernistas levaram esta fratura ao extremo, aguçando a crise entre analogia e historicidade quase ao ponto de sua explosão. Assim é a poesia de Drummond, Murilo, Jorge de Lima e Bandeira. O concretismo não deixa de ser uma tentativa de saída deste impasse, pela afirmação da concreção da linguagem poética, na esteira de Cabral que também tenta sair do impasse. A luta corporal parte desta fratura, no momento em que ela se encontra mais aguda, ou seja, exatamente quando o impasse entre a analogia e a historicidade parece não ter mais solução. João Luiz Lafetá observa bem como os poemas de A luta corporal padecem de uma tristeza quase doentia ante constatação da irremediável fugacidade, casualidade e incomunicabilidade das coisas e dos seres no mundo. Há, neste poemas, um desejo de permanência, sentido e comunhão, ou seja, que o mundo fosse uma espécie de cosmo analógico ou que, pelo menos a poesia fosse capaz de recuperar este cosmo pela linguagem. Mas nem mesmo a linguagem poética é capaz dessa recuperação, restando a ela a constatação, o lamento e, por fim, a auto-dissipação como resultado de seu fracasso. A luta corporal é a expressão da insolubilidade da tradição da ruptura. É como se a analogia, um dos polos desta tradição, não fosse mais factível, nem como desejo, como se esta saudade metafísica de um cosmo espelhado não estivesse mais no horizonte possível dos homens. Era uma crise metafísica, da impossibilidade da analogia, mesmo misturada com a historicidade. A luta corporal é a consciência e o desespero diante deste impasse, pois até então a tradição da ruptura, com sua metade metafísica e sua contraparte histórico-revolucionária tinha sido um terreno fecundo para a poesia, tinha sido, na verdade, o terreno poético por excelência da modernidade. Então, de que a poesia do Gullar fugia? Deste impasse. Particularmente, ela fugia da metafísica, da analogia, da instauração de horizontes do sagrado na poesia, mesmo do sagrado corrompido pela historicidade. É isto que Gullar, que Cabral e os concretistas não queriam mais, que não cabia mais na poesia de meados do século XX, no mundo tecnológico e desolado do pós-guerra. Por isto esta guerra empreendida contra o sujeito, a psicologia, a afetividade, e até contra a nação, contra um certo ufanismo disfarçado que atravessava a busca pelo Brasil real, que não deixava de ser a sondagem das profundezas de um sujeito coletivo, pois o modernismo deslocou para estes elementos a tradição da ruptura. A subjetividade, individual ou coletiva, era o palco no qual se digladiavam a saudade analógica e os ímpetos revolucionários, a nostalgia da unidade perdida e utopia de um novo homem. Mário de Andrade talvez não seja o melhor poeta modernista, mas é em sua poesia que esta tradição da ruptura vai aparecer com mais força enquanto expressão do sujeito, pois Mário é o poeta do sujeito, da subjetividade individual que emerge e se confunde com a nação. E ambos, indivíduo e nação, encontram-se dilacerados entre dois polos do desejo, que são exatamente os da analogia e da historicidade, do arcaico e do moderno, do primitivo e do civilizado: de um lado, a unidade, o sentido e a comunhão e, do outro, a fragmentação, a casualidade e a desagregação.
Sim e o Gullar? Como ele soluciona o problema?
Não há solução, há escapes. A tradição da ruptura é uma paradoxo, um bom paradoxo, muito fecundo. Os poetas modernos nunca resolveram o paradoxo, apenas o retomaram, aprofundaram-no à sua maneira, levaram-no à exasperação extrema. O paradoxo era, na verdade a solução para a seguinte questão: como a poesia pode sobreviver num mundo sem magia, sem sagrado, num mundo histórico e agnóstico? Não há como abrir mão do desejo analógico, mas também não há como não se deixar seduzir pela historicidade e pelo ímpeto revolucionário, pela utopia. Era a pergunta dos românticos europeus e foram eles que instauraram a poesia neste campo tenso em que não se queria perder nem a nostalgia nem a utopia, nem a metafísica nem a história. A poesia de Baudelaire deu consistência e consciência até então inéditas a este dilema romântico, foi a poesia da lucidez moderna, uma alucinada poesia da lucidez, uma espécie de simbolismo realista, a expressão brutal do paradoxo. O problema é que este paradoxo parece não ter sido mais fecundo a partir de meados do século XX. Na verdade, algumas vanguardas do início do século já não acreditavam mais na sua eficácia, mas só no pós-guerra ele deixa de ser uma alternativa poética. Que fazer então? Uma poesia voltada para a linguagem? concretismo. Para a historicidade? Gullar de Dentro da noite veloz, Cabral de Morte e vida severina. Para uma dialética de ambas as coisas? Toda a obra de Cabral. Mas há dois problemas com estas fugas. O primeiro é que elas acabam colocando outro ponto de transcendência no lugar da analogia, outro sagrado. No caso da poesia concreta é a linguagem, a estruturação da linguagem. No caso da poesia social é a historicidade, as formações históricas. Elas na verdade não mudam o regime poético, mas, dentro do mesmo regime, erguem novas polaridades, novas estruturas (a linguagem, a sociedade) a serem representadas pela estrutura da poesia: não se sai do jogo das estruturas. Por isto elas ainda continuam estranhamente metafísicas, quando seu desejo era escapar à metafísica. O segundo é que estas fugas se fazem por meio de alijamentos, da rejeição de certos conteúdos e procedimentos poéticos. Por exemplo, afeto não pode, é coisa de sujeito, é psicologia, é idealismo, a poesia tem que ser impassível, se concentrar na construção da linguagem, que é a matéria sensível do poema. Transe, inspiração também não, é dádiva divina, metafísica, o negócio é estudo, talento, trabalho, geometria. Percepção mágica, vislumbre de mistérios são coisas das esferas celestiais, vetado, perceba o mundo como um cientista, melhor, como um engenheiro. É muito cerceamento, muita limitação. Tudo bem, para poetas como Cabral, como os concretistas está tudo bem, é por aí que eles são fecundos, mas para alguém como o Gullar e o Leminski, não. Eles são poetas do afeto, do transe, da magia, veem o mundo atravessado de magias de ponta a ponta, têm uma sensibilidade mágica das coisas. Como fazer então para que esta magia não caia no sagrado, para que os afetos não se abismem em psicologia e o transe não seja dádiva de deus? Como evitar a visão analógica do mundo, como escapar da metafísica subjetiva fazendo uma poesia povoada com estes elementos que parecem ser a constituição mesma da analogia e da subjetividade?
O surrealismo seria uma saída...
Talvez. Mas talvez o surrealismo reponha a metafísica por linhas tortas, talvez não seja imanente o suficiente e o seu anarquismo onírico ainda remeta indiretamente às profundezas, a uma alquimia que busca a pedra filosofal do desejo e do inconsciente, ao cosmo espelhado da analogia. Cabral sempre desconfiou do surrealismo, com o qual flertou no início sob a influência de Murilo Mendes. O Leminski parece que não gostava, colocava no saco da poesia profunda, os concretistas perdoavam, se a linguagem fosse rigorosa, como sempre. O Gullar parece que gostava dos surrealistas ou, pelo menos, do seu comportamento anárquico, mas sua poesia não caminha por aí, talvez um pequeno flerte em A luta corporal. O surrealismo, no mínimo, guarda uma certa tentação de retomada metafísica.
Como fazer, então? Como poetas do mágico e do transe, poetas líricos enfim, poderiam fugir das profundezas subjetivas?
Magia, transe, afetos não remetem obrigatoriamente à analogia, à metafísica, à subjetividade. Este é um engano crítico, tanto dos partidários da poesia profunda, quanto dos defensores do engajamento e da estruturação. As profundezas não são sinônimo do mágico, do afetivo e do transe, como se a simples presença destes elementos no texto poético implicasse na sondagem profunda de um ser ou de uma subjetividade, ou seja, implicasse em poesia metafísica. Emil Staiger nos mostra como o lirismo não significa a expressão da subjetividade, mas de um estado em que não se é possível discernir sujeito e objeto, aquém do estabelecimento destas estruturas, aquém da significância e até mesmo da referência. O poema como expressão da subjetividade, como sondagem das profundezas subjetivas é um trabalho posterior ao lirismo (que pode ser intrínseco ao desenvolvimento do poema ou exterior a ele, como trabalho interpretativo) e consiste exatamente em fazer estes movimentos incessantes e proliferativos do lírico se depositarem num abismo que dê a eles unidade, limites, imobilidade, o abismo do ser, do sujeito. A profundidade implica em fazer a magia transcender no sagrado, o transe se elevar em contemplação e os afetos se tornarem sentimentos do eu ou de deus. Somente depois deste trabalho de conversão (nos dois sentidos da palavra) é que o lirismo será a representação dessas profundidades, que a sua magia plural será a expressão de um sagrado universal, os seus transes serão os vislumbres da contemplação das verdades profundas e os afetos se tornarão manifestações dos sentimentos subjetivos ou divinos. Mesmo que as profundezas estejam em crise, que sua identidade esteja perdida e sua unidade fragmentada, elas estão lá, como o horizonte perdido ou por recuperar, é a analogia que não se tem mais num mundo descrente e que a poesia repõe como nostalgia, mesmo que seja como uma impossibilidade: o mundo analógico onde tudo a tudo se assemelha e com tudo comunga está lá, no horizonte quimérico da poesia moderna. No fim das contas, há uma estrutura, a das profundezas. A estrutura da poesia tem que exprimir a forma de conteúdo das profundezas, onde repousa (ou repousaria, pois a dúvida é o veneno moderno contra as certezas analógicas) a verdade. O que a poesia da estruturação da linguagem faz em resposta à esta sacralização? Recusa as profundezas e diz: a poesia é imanente, a imanência da poesia é a forma da linguagem em perpétua invenção porque a linguagem é a concreção do poema, é sua única matéria palpável e a invenção é o antídoto à estática que leva à sacralização. É curioso, pois parece realmente a fórmula revolucionária da imanência, a poesia só deve explicações a si mesma, só se diz a si mesma, não exprime, não representa nada exterior, não cai em nenhum abismo fora dela. E ainda por cima é uma constante invenção de linguagem, uma estruturação sem fim. É estranho porque esta solução de dobrar a poesia sobre si mesma, a linguagem sobre a linguagem (a função poética como fim último do texto) em movimento contínuo, esta solução é como se fosse um movimento de duplicação de sua própria estrutura. Ao contrário do que se desejou com isto, não há aí uma fuga da representação, uma substituição efetiva da representação pela produção ou pela construção, mas sim uma auto-representação, uma dinâmica auto-representativa: o poema representa o seu duplo, que é ele mesmo enquanto estruturação de linguagem. Daí o infindável jogo de citação e erudição, o narcisismo da literatura, aprisionada pela sedução do espelho que só lhe mostra a própria face, a transcendência vazia do texto no si mesmo de sua estrutura. Há movimento, invenção, labirintos, metamorfoses, sim, mas no interior da linguagem e quando o fora (a sociedade, o sujeito) entra no movimento é mediado por relações estruturais. O que a poesia engajada faz? Recusa as profundezas e diz: a imanência da poesia é a história, a materialidade da vida dos homens que fazem e leem poesia. Tudo é irremediavelmente chão histórico. Não há afirmação mais verdadeira que esta: a poesia realmente é histórica. Então a forma poética se relaciona de alguma maneira (refletindo, refratando, negando, dialogando) com as formações sociais. Nada mais justo, sempre há de se achar tais correspondências entre texto e contexto. Eis, então, a fórmula da imanência, a estrutura da poesia representa de algum modo, mesmo que construindo alguma coisa contra, as estruturas sociais, que são, por sua vez formações históricas que nada devem ao divino. O problema, novamente, é esta relação entre estruturas (texto e sociedade, ambas ateias, veja só), esta insistência na representação, esta busca pela verdade do texto que vai estar, agora, nas formações sociais. Do ponto de vista da história e das ciências humanas pode até ser um bom caminho, mas de uma perspectiva crítica que obrigatoriamente deve partir do texto poético, é uma transcendência, o estabelecimento de uma verdade fora do texto e que será expressa por ele, mesmo que o sentido desta expressão seja a negação e o confronto.
Como fazer então?
Parece que o Leminski e o Gullar sentiam (no sentido de intuir, pressentir) que era necessário abandonar estas relações estruturais, de representação ou auto-representação. Era preciso liberar o poema destes abismos, que eram um peso para eles. É como se eles quisessem atingir a natureza selvagem do lirismo, de transe e magia: algo como o espírito dionisíaco da poesia, para recuperar Nietzsche e, ironicamente, os gregos, já que foi lá que ele bebeu para criar o conceito. É o que Metaformose e Poema sujo fazem. Quase se pode dizer que estes textos recusam ser uma estrutura, recusam representar a verdade do que quer que seja. Há neles uma espécie de consciência da imanência se tecendo, que se recusa a ser rebatida em pontos de transcendência, não se querem expressões de um sujeito individual ou coletivo e nem estruturação de linguagem. Eles fazem um mundo, são feitos no mundo, são fluxos no mundo. Sua função é se conectar com outros fluxos e não exprimir algo. Quem diz eu no Poema sujo? O Gullar tem uma explicação curiosa. Ele afirma que o indivíduo concreto, que a personalidade do poeta, é fundamental para a poesia, mas na medida em que ele diz por outros, em que ele se confunde com os outros que não têm voz e que, no entanto, também fazem a história, ou seja, que é preciso dar voz a estes outros, fazer minha vida passar por eles, fazê-los passá-los por minha voz de poeta, por minha vida, pois estes que não têm voz também fazem a história. Mas não se trata de praticar uma espécie de história do cotidiano, pois estamos falando de arte, de poesia. Trata-se, antes de devir. Novamente, é muito parecido com Deleuze & Guattari, com o conceito de devir, que é sempre um devir minoritário, um devir negro, devir criança, devir mulher e até devires inumados, devir animal, celular, devir todo mundo, devir cósmico. E, de fato, o Poema sujo tem todos estes devires, humanos e inumanos, estes transes que vão levar um menino a passar pelos humildes, pelas árvores, pelas ruas de São Luiz, pelos objetos enterrados no quintal e pelas tardes, seres e coisas que, por sua vez, passam por ele e por sua voz de poeta: um historiador jamais faria uma coisa dessas, o devir não concerne à história, embora parta dela ele escapa às formações históricas. Então, o eu do Poema sujo é o José Ribamar criança e adolescente, sim, sem ele não haveria poema nem a vivência de São Luís, recordada no poema. Mas o que importa é que o José Ribamar não fala de sua história particular, pois ela não tem a menor importância pra ninguém, o importante é que esta história particular é uma história, a história de um menino, de um jovem numa cidade. Novamente Deleuze: um menino, um é qualquer um, um qualquer, é muito vagabundo o indefinido. Este artigo indefinido (um) é que faz passar outras pessoas e até mesmo outras coisas, animais, vegetais, afetos, transes, tardes, percepções mágicas, atmosferas, delírios e acontecimentos por este um. O um em que devém/transita o poeta (o um poético) não é mais o sujeito, é um operador de fluxos de passagem, dos fluxos de uma cidade, dos fluxos de memória, da imanência da vida urbana relembrada. Nada aí se abisma em ser, em linguagem e nem mesmo em história, pois o poema não organiza seus fluxos como representação destes transcendentes, mas os fazem circular incessantemente: a relação do poema com o seu fora é de devir, de conexão produtiva: o mundo passa pela linguagem que passa no mundo que passa, por sua vez, nos sujeitos que se precipitam no mundo e na linguagem: tudo devém tudo, há apenas conexões de fluxo. É por isto que o poema nos passa a impressão de um campo energético (como o Metaformose), o movimento não cessa em nenhum abismo: sujeito, linguagem e história são evitados enquanto estrutura e buscados enquanto fluxões, linhas de devir.
Bem, se passássemos o resto da madrugada aqui, ainda não seria suficiente, mas já alongamos esta entrevista para além de todo e qualquer bom senso. Se alguém chegar a este ponto da entrevista já terá sido um ato de heroísmo.
Ou de paciência.
Obrigado.
De nada.
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