UMA CONVERSA COM DAVID TOSCANA
Claudio Daniel
Escritor mexicano, autor do romance alegórico Santa Maria do Circo, conversa com a Zunái sobre o seu universo ficcional, suas referências, processo criativo e a sua visão ácida sobre as sociedades latino-americanas, “que excluem a maioria de seus habitantes”.
Zunái: David, como surgiu o seu interesse pela literatura?
David Toscana: Em minha casa nunca houve livros, não venho de uma família de leitores, mas quando tinha onze ou doze anos, um mercado começou a oferecer clássicos da literatura (na compra de cinquenta pesos de mercadorias). Minha mãe chegava com as compras da semana e um livro de capa dura.
Zunái: Por que decidiu ser escritor?
David Toscana: Não foi uma decisão. Estava para completar 30 anos e li um conto de Juan Carlos Onetti, Bem-vindo, Bob. Comecei a ferver por dentro, me golpeou e me fez ver a beleza no terrível. De imediato senti a necessidade de escrever.
Zunái: Quais autores foram essenciais em tua formação?
David Toscana: Cervantes, Kafka, Onetti, Rulfo, Donoso, García Márquez, Dostoievski.
Zunái: Como surgiu a idéia para escrever o romance Santa Maria do Circo?
David Toscana: Visitei uma cidade mineira abandonada enquanto lia a história de um circo familiar muito pequeno: o circo Mantecón. As histórias são distintas: o circo Mantecón acabou quando a caravana cruzava a via da estrada de ferro e um trem matou quase toda a família; mas nessa cidade me peguntei o que aconteceria se aqui chegasse um circo? O romance foi a resposta.
Zunái: Como foi o processo de criação da cidade imaginária? Alguma coisa foi excluída do projeto inicial? O quê? Qual foi o critério adotado para a exclusão? O que significou para você criar esse mundo paralelo?
David Toscana: Imaginei o mínimo que uma cidade possa ter no México: praça, igreja e algumas poucas casas. A imaginação me trouxe depois que na praça devia existir a estátua de um herói desconhecido. Me perguntei se queria algum outro edifício como escola, hospital, algum comércio ou fábrica, e disse a mim mesmo que não. Preferi manter tudo o mais simples possível. No primeiro romance ocupei-me de uma cidade que no final ficou abandonada; agora quis o processo inverso: uma cidade abandonada é povoada.
Zunái: Personagens como o anão Nataniel e Barbarela, a mulher barbada, representam, de certo modo, os excluídos da sociedade?
David Toscana: Têm esta imagem, pois são artistas ou fenômenos, a gente os vê como algo diferente. Além disso costumam ser itinerantes, como nômades. Porém não é condição exclusiva dos circenses. As sociedades latino-americanas excluem a maioria de seus habitantes.
Zunái: Por que escolheu o acaso como elemento para definir as profissões dos habitantes da nova cidade?
David Toscana: Porque é o que define quase todas as vidas. São muito poucos os que decidem. Abrir um papelote do chapéu de um mágico e abrir as páginas do jornal para buscar trabalho são coisas muito parecidas.
Zunái: O anão cria antepassados ilustres para si, inventa um passado glorioso, ainda que irreal. Os nomes dos integrantes do circo são inventados, as suas profissões são definidas ao acaso, após a criação da cidade de Santa Maria do Circo. Tudo isso funciona como uma ampla metáfora da realidade como algo criado pela imaginação humana?
David Toscana: Os nossos nomes também são inventados, e com pouca imaginação. A mim me chamaram David, porque assim se chamou um rei, o nome mais comum dos anos sessenta; você, Claudio, porque assim se chamou um imperador. Os cubanos são mais hábeis para inventar nomes. O acaso faz com que um taxista dirija um táxi, posto que quando criança não dizia "Quando crescer quero ser taxista". E no final a vida se parece un pouco com o circo. Pensemos por exemplo na política; aí temos palhaços, prestidigitadores, mágicos, cães dançarinos, equilibristas, domadores, malabaristas e um enorme público que paga mito caro pelo bilhete, ainda que o espetáculo seja péssimo.
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David Toscana (Monterrey, 1961), escritor contemporâneo mexicano, publicou vários livros de ficção, entre os quais As bicicletas, de 1992, Estación Tula, de 1995, Santa Maria do Circo, de 1998, Duelo por Miguel Pruneda, de 2002 e O último leitor, de 2005). No Brasil, foram publicadas traduções de O último leitor em 2005 e de Santa Maria do Circo em 2006.
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