ET MUTABILE.
UMA CONVERSA COM HORÁCIO COSTA.
Claudio Daniel
Zunái: Você viveu muitos anos no México, onde lecionou na UNAM e travou conhecimento com autores como Octavio Paz, Manuel Ulacia e Eduardo Milán. O que essa convivência com o ambiente cultural da América Hispânica trouxe para sua poesia e para a sua formação pessoal?
Horácio: A primeira parte da resposta é, sob todos os pontos de vista, previsível: a minha longa estada no México foi importante em todos os aspectos da minha vida, dos literários aos não-literários. Em poucas palavras, estive na iminência de virar mexicano, de solicitar uma segunda nacionalidade. Também nos Estados Unidos, onde vivi antes de ir dar ao México e por um longo período entre as minhas duas permanências no México, senti num dado momento que podia virar americano. Nas duas vezes, nos USA primeiro e no México depois, me deu uma vertigem, uma sensação de estar na frente de um abismo, e nas duas vezes eu literalmente dei para trás: era possível essa experiência, devido aos aspectos eminentemente burocráticos de quem permanece tanto em outro país, porém ela me parecia subjetivamente impossível.
Quando saí do Brasil, em 1981, para estudar em Nova Iorque, queria poder me dar o direito de escrever a minha obra no exterior. Pois bem, pude; e inclusive convivi intelectualmente com muita gente boa. Nos Estados Unidos, com Emír Rodríguez Monegal, quem foi meu professor na USP e que me incentivou a sair do país; ao longo da minha permanência fora, com o Manuel Ulacia, com quem estive casado por dezessete anos, e no México, claro, estava o Paz, uma figura solar, que me recebeu muito bem e com quem por anos convivi cordialmente, até que deixei de fazê-lo, pouco antes de sua morte e do meu regresso ao Brasil. Ao redor de Vuelta reunia-se um grupo de jovens intelectuais de várias origens e idiossincrasias, foi assim que desenvolvi uma amizade literária profunda com o Milán, que era estrangeiro e sul-americano como eu, e que ironizava a organização um tanto piramidal da vida literária mexicana, mas também com outros mexicanos e hispano-americanos. Mas isso tudo você já sabe, é parte da minha biografia pública, digamos.
A segunda parte da resposta é menos previsível porque o mundo mudou e quase não nos lembramos mais de como as coisas eram nos anos setenta. Eu fui para o México porque tive uma formação latino-americanista na USP, na FAU principalmente — sim, eu estudei arquitetura e urbanismo e trabalhei no Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo antes de sair do Brasil. Lá tive aulas com Aracy Amaral e Renina Katz, que falavam entusiasticamente do México, e com Irlemar Chiampi e Jorge Schwartz, na Letras, bem como com o filósofo mexicano Leopoldo Zea, na História. Nos anos 70, a América Latina era um espaço imaginário de contestação política e cultural; sob os nossos militares, sonhávamos com a integração continental. Lembro-me que o Milton Hatoum e eu, numa casinha que compartilhávamos na rua Isabel de Castela — o nome sempre nos pareceu emblemático — compramos uma biblioteca de escritores hispano-americanos, e líamos Borges e Paz, Carpentier e Cortázar, e historiadores da América Hispânica. Foi muito bonito.
Pois bem, nos Estados Unidos eu me dei conta de que sim, eu poderia tornar-me um norte-americano se quisesse, mas nunca seria um americano completo se a experiência hispânica não se realizasse; parece simples como enunciado, mas foi um problemão logístico poder realizar este insight. Nos anos 70 ia-se via de regra estudar em Paris, no mais das vezes, no máximo nos USA, mas ninguém pensava em ir estudar e viver e escrever no México; isso era coisa de exilados políticos à la Francisco Julião, mas não de um jovem intelectual burguês ainda em formação. Então, ter ido ao México para ficar tem um sabor de realização de um projeto geracional para mim, que eu nunca olvidei e que ainda norteia a minha vida intelectual e a minha produção poética. Cresci intelectualmente under the volcano, foi lá que vi o Brasil à distância, e foi de lá que eu resolvi voltar para cá.
Zunái: Em Satori (1989), você apresenta poemas narrativos com fortes imagens metafóricas, que se aproximam de um barroco alucinado. Nestas peças, que dissolvem os limites entre prosa e poesia, há uma mescla de diferentes repertórios simbólicos e culturais. Essa lírica mestiça corresponde à visão de um mundo multipolar, sem fronteiras?
Horácio: O livro Satori tem um prólogo de Severo Sarduy, o grande teórico do barroco no universo hispano-americano contemporâneo. Este é um detalhe que convém frisar. O Severo foi generoso comigo, mas para que esta generosidade se desse, havia um terreno comum, o do sentimento do barroco, entre nós dois. Além de, claro está, o fato de ambos levarmos nossa homossexualidade muito a sério, e de que gostávamos — digo isso, porque já faz tempo que ele morreu — de ir a bares e cafés, em resumo, de estar na cidade. O "barroco alucinado" — gosto muito da expressão com que você fala de Satori —, sim, se dá. É um livro de abertura, de poeta-que-viaja, de homo viator. Mas que barrocamente vive em labirintos, que não vê o mundo pelo qual passa como uma sucessão de "fenômenos culturais", mas de "estações labirínticas". Uma coisa teria sido eu me encantar pela sucessão de países e culturas nas quais sucessivamente me perdia e me achava; outra foi o ter desenvolvido, ou procurado desenvolver, uma ótica própria sobre o homem e a história, que dá a pedra-de-toque à operação poética. Não saí por aí consumindo o mundo, mas observando-o.
Zunái: Você cria paisagens verbais com veia taumatúrgica, explorando o poder encantatório da palavra. No poema O Bar da Senhora Olvido, lemos: “ossos de ar esqueleto inflável em álcool / aquarelas noturnas dolorosas olhares anfíbios / a cidade é um mapa do céu”. Essa busca de novas realidades semânticas vem de uma leitura pessoal da tradição surrealista?
Horácio: O poema O Bar da Senhora Olvido foi escrito em Barcelona, em 1980, e o fato de, diante da magnificência da cultura espanhola que eu descobria — e da abundância que eu notava na sociedade catalã —, eu ter preferido escrever sobre os bêbados do Bairro Gótico, quer dizer algo. Aliás, o bar existia mesmo, e já não existe mais. No ano passado voltei àquele canto do Bairro Gótico, e àquela zona medieval, sórdida e lírica, que era um cruzamento de pessoas do mar do mundo todo, tinha dado origem a uma simpática, anódina pracinha pós-moderna. Eu ia às noites beber com os bêbados, com o meu amigo Rafael Bernis, um fotógrafo catalão. Muitos dos versos se referem às falas alucinadas daquelas personagens que desapareceram do mapa, na burguesíssima Barcelona de hoje. Foi um pouco procurar preservar aquelas falas o que dá este tom que parece surrealista ao poema.
Eu morava no bairro de Gracia, num grande apartamento sem mobília, e forrei todas as paredes de papel kraft e escrevia em pedaços de papel, frases, versos, montagens, e ia fazendo colagens pelo corredor, pela sala, etc. numa atitude própria de um ex-arquiteto, não? Senti freqüentes epifanias enquanto escrevia, sempre de noite. Por isso o poema é muito fragmentário. Eu tinha começado a escrevê-lo em São Paulo, mas foi nesse período barcelonês que ele veio à luz, e te garanto que foi em Barcelona, em 1980, aos 25 anos, que de mim para mim mesmo me assumi como poeta. Em resumo. O livro não tem nada que ver com surrealismo. Tem a ver com a postura documentacional do escritor naturalista, se você quiser, com o catador de papéis ou de palavras, com o filólogo itinerante que juntava lendas e fonemas em Trás-os-Montes ou Minas Gerais, com um Guerra Junqueiro ou um Guimarães Rosa, não com um surrealista de salão, e ainda por cima de segunda mão, que alguém afeto ao surrealismo necessariamente seria em 1980, a cinqüenta anos da fundação do movimento. Aliás, eu não gosto do surrealismo. Tenho bronca dele porque falseia o delírio e porque Breton nunca acreditou no amor homossexual. E bem, já que estou falando nisso, pois os hispano-americanos e os brasileiros aqui temos uma de nossas maiores diferenças, já que muitos hispanos adoram o surrealismo, e nós somos mais dadaístas, ou como dizia o Oswald, et pour cause, "concretistas".
Zunái: O Livro dos Fracta (1990) é um monólogo em fragmentos onde notamos a forte visualidade dos versos, que recordam planos de cinema, e a busca de sonoridades pela insólita associação de palavras (“veste-me a tua presença ao íbis bisonte jaguar”), com um humor sutil, mais próximo da ironia que da sátira. Como foi o processo de criação deste poemário?
Horácio: O Livro dos Fracta nasceu de uma inquietação minha diante do computador e da ciência contemporânea, especialmente a cosmologia. Ainda aqui, a presença de Severo: ele foi quem me ensinou que literatura e cosmologia se tocam na pós-modernidade. Por isso o livro está dedicado a ele e a François Wahl, o seu marido. Pois bem, eu tinha comprado um Apple Macintosh Classic e estava apaixonado pela máquina, e sempre fui um leitor amador de revistas científicas. Foi através delas que eu estabeleci contacto com a teoria da geometria fractal, de Benoît Mandelbrot, então resolvi duas coisas: uma, que ia me inventar uma "métrica" nova, isto é, uma regra perfeitamente informática para contar uma história, e que ia observar certas relações de simpatia para com a teoria de Mandelbrot. Então, resolvi comprimir os fragmentos a três linhas do visor do computador Apple, utilizando-se do tipo Times New Roman, e que ia repetir aleatoriamente os títulos de alguns dos fragmentos, para recordar o leitor que havia uma história que estava sendo descontada lá. Acresce-se a isso o fato de que eu inventei uma personagem, o Legionário, um romano que atravessa os tempos e os espaços, e mesmo o cosmos, do Big Bang até hoje, e vê, no sentido de "ver" como alucinar ou de presenciar, coisas, relativas ou não ao mim, ao Brasil e ao mundo do final do século XX. Então, também há um narrador, que diz que a natureza e a história obedecem a um princípio de similaridade, de homotetia ("O alvéolo imita a árvore, / em Bangui, Bokassa a Napoleão. / Isto é uma novela", diz o Fracta nº I), e o resto, pois, o resto é bem fragmentado mesmo, irrecuperável, não tem uma "maquete" à qual se remeter, não tem como reconstruir a "verdadeira" — final, precisa, certa, teleologicamente única e uma — história de O Livro dos Fracta.
O título parodia muitos outros, a começar pelo Livro dos Provérbios da Bíblia. Eu avanço milimetricamente, e sim, com um milimétrico uso da ironia, botando (quase) tudo no avesso. A operação retórica central dos fracta e das Very Short Stories é a alegoria sem fim, a alegorésis, um termo que eu tomei a liberdade de tomar emprestado e mutado aos estudos da retórica. Não se esqueça de que em Yale eu tive aulas ou estive próximo a gente muito boa, em termos literário-críticos: Bloom, Derrida, Hillis Miller. Pois bem, algorésis, como o meu alter ego Ernesto de León fala nas VSS. Para dar conta deste recado literário-crítico, inventei uma palavra invariável —"fracta"— que não tem plural nem gênero. Um pouco, em resumo, como o poeta.
Zunái: The Very Short Stories (1991) apresenta um conjunto de poemas em prosa ou contos permeados de música metálica e metáforas do absurdo da existência humana. Na apresentação a esse volume, Ernesto de León comenta o uso da alegoria e da “multiplicação instável” de conteúdos, que aponta para um caminho textual além do óbvio do sentido literal das palavras. Esse tumulto semântico indica uma perda de significados (filosóficos, éticos, espirituais) na cultura contemporânea?
Horácio: The Very Short Stories é um jogo entre produção criativa e crítica; não há nada inocente nesse livro, se os fracta apresentam um acúmulo de reverberação intertextual multiplicante, com a sua álacre selva de citações, roubos (ou empréstimos) literários, as histórias verdadeiramente curtas representam uma vertente mais crítica ainda, se possível, do poeta dentro do "arquivo" da literatura, frente ao paideuma, como se diz. Os dois livros se complementam, e valha dizer que as VSS foram escritas antes dos fracta, e publicadas depois devido a uma decisão do editor Samuel León, da Iluminuras, que achou, com razão, que o aspecto novidadeiro dos fracta era maior que o das VSS; elas não são exatamente os meus aforismos desencantados, nietzscheanos, mas são as minhas parábolas no sentido em que se praticava um pouco na pré e na alta modernidade, por assim dizer. Sim, há o "tumulto semântico" que você menciona nas VSS, levados com maior grau de melancolia, lavados numa espécie de sentimento antilírico, ou cínico, ou estóico, que nos fracta. Estes são melhor humorados, são como se eu tivesse me despido do tom blasé, um pouco finissecular, que perpassa as VSS.
Agora, a invenção de Ernesto de León, meu "heterônimo" crítico em espanhol, foi instrumental para que eu desse uma carnavalizada nas histórias, nas antiparábolas que escrevia. Eu estava em Buenos Aires e não sabia quem me apresentaria as VSS, depois que o Sarduy fizera com Satori e Milán com O Livro dos Fracta; e o "espírito" de Borges desceu e me perguntou: por que não inventar um Ménard sob medida para as VSS? Depois da publicação do livro, me convidaram a Porto Rico, e eu falei sobre Ernesto de León com pessoas de lá, e lhe dediquei uma leitura pública, e terminei por inventar-lhe uma biografia etc. Na época das VSS, o Ernesto começou a escrever (má) poesia em espanhol, que eu nunca quis publicar no México e por aí tenho ainda guardada, que era a minha vingança contra os traços mais insuportavelmente canastrões que alguns poetas mexicanos e centro-americanos têm, como um certo tom altissonante que vem de uma má digestão de Neruda, entende? Então o Ernesto de León começou a escrever como se estivesse plantado desde o topo de uma pirâmide asteca, etc. Os mexicanos riam dos poemetos burlescos, mas acho que não gostavam deles. Ficavam demasiado próximos à pele deles, então resolvi silenciá-los, por temor ou elegância.
Zunái: O Menino e o Travesseiro (1998) é um poema longo que parte da tradição de Jorge de Lima, intentando uma épica pessoal que incorpora a narração, a história e o relato vivencial, mescladas a passagens que se aproximam da abstração e da alegoria (“cristal também pergaminho / e hieróglifo olhar, estende / sobre a paisagem que imanta / o fio invisível que usam as parcas”). O que este livro representa dentro de sua obra?
Horácio: O Menino e o Travesseiro é um fracta descomprimido, isto é, parte da visão infinitesimal, fractal, já que tudo se passa na trama do tecido de um travesseiro de linho, a história inteira de uma família e uma comunidade, mas agora o fragmento é narrado em detalhe, em camadas sucessivas de significação. Quem notou isso foi o Manuel Ulacia, ao escrever um dos melhores textos que já se escreveram sobre a minha obra, justamente sobre O menino e o travesseiro. Eu escrevi o poema numa espécie de rapto que durou alguns dias, aquele poema morava na minha mandíbula e tinha se liberado numa sessão de massagem profunda, de rolfing; o Manuel esteve perto quando da escritura e notou que todo o esforço de concisão dos fracta se desfazia nele, sem que a escritura perdesse o importante intertexto científico. O menino e o travesseiro afirma, paralelamente a certos avanços das ciências biológicas, que alguns traços não-materiais, ou mesmo imateriais, também são herdados, ou pelo menos herdáveis, no código do DNA. No caso, um olhar preciso; assim, o poema traça a épica de um olhar herdado que, como diz o Saramago em seu prólogo ao livro, responde à busca de sentido do narrador do poema. Nesta busca de sentido, acho que nomeei — para mim, ao menos, e ninguém é obrigado a adotar o que fala um poeta — o maior motor da pequena história da minha família, que na origem se confunde com a da colônia de São Vicente.
São Paulo é fruto de um olhar compartilhado por gerações, sobre a Serra do Mar; fale-se e demonstre-se o que se quiser, em termos de economia e história, mas sem este olhar que o menino herda e revive e identifica em vigília ao observar as dobras de seu travesseiro, para mim não haveria a cidade que nós somos, e eu por conseqüência não existiria. Não é fazer o elogio dos bandeirantes, numa posição cara à direita local e ao que se chamava, no caso do Camilo Pessanha, o "espírito caraveleiro", por exemplo. É uma resposta a uma pergunta interessante, e que faz sentido, sobre a origem do ser, por que sou como sou? Ora, alguma coisa aconteceu em São Paulo, que justificou que nos acumulássemos, recebendo gente do mundo inteiro, até nos transformarmos nesta anti-meca de dezoito milhões de seres humanos. Algumas cidades têm mitos de origem, Roma nasceu dos goles de leite lupino na garganta de Rômulo e Remo, Lisboa terá sido fundada nem mais nem menos que por Ulisses, Constantinopla tem a sua saga, bem como Moscou, o México etc. Washington, Brasília, Madri, nascem de uma determinação de um poder central. Cidades como São Paulo não tem origem, por assim dizer, além da geografia, da história factual, comprovável, e do acaso. Pois bem, eu ofereço um certo olhar, um olhar fundador, e me satisfaço com ele. Talvez haja algo taumatúrgico nisso, como você disse antes. E daí? A poesia é um lugar de total risco, total liberdade. É fruto da responsabilidade plena do poeta diante da linguagem, como nos ensinaram os poetas do movimento da Poesia Concreta, mas exclui a necessidade da comprovação "racional", que fundamenta a atividade acadêmica e que vira o monstro de falsa razão que, por exemplo, justifica as maiores atrocidades na atividade política. Pois bem, corri o risco de ser mal-interpretado, mas enfim, o poema continua me parecendo bom. O Saramago bem avaliou a minha posição no prólogo que teve a bondade de me escrever.
Zunái: Quadragésimo (1999), sua coletânea poética mais recente, traz peças inspiradas em episódios da revolução francesa, da cultura chinesa e de sua própria saga familiar. Nestas composições, habitadas por personagens como Marat e Wang Wei, há um sentimento de desconforto em relação à história, certa melancolia ou ceticismo em relação aos projetos utópicos. Ao mesmo tempo, celebra-se o corpo, a dimensão física do amor humano. Esta é a epifania possível, numa era de sombras?
Horácio: Sim, a história nos pesa com muito mais freqüência do que o corpo, que nos permite escapar dela, vê-la, na explosão sensória dele, como um processo perfeitamente labiríntico. Na era das utopias, a história era não apenas redimível, mas também epifanável: caminhávamos para um mundo de liberdade, de felicidade universais, só que ele estava no futuro, e todos trabalhando sob a égide dos escolhidos — no mais das vezes, auto-escolhidos — para nos guiarem, pois, chegaríamos lá apesar dos tropeços. Esta narração ou este projeto, de origem fundamentalmente religiosa, ruiu aos poucos, e ainda está ruindo sob os nossos olhos. Hoje, funciona como catalisador de certos discursos para a, ou de, massa, sejam eles expressamente políticos ou não, e que têm o seu lugar no concerto da realidade tão difícil que vivemos para que, enfim, as coisas não descarrilhem de repente, como um tsunami de barbárie insalvável, o que pode parecer por certo algo imoral dizer, mas é fato. Não creio, entretanto, que a poesia contemporânea seja o melhor lugar para dar-lhes guarida. Pessoalmente tenho uma boa exposição a ruínas: sempre me senti congenial a elas, e de novo, se esta sensibilidade já existia para mim antes de sair do Brasil, que dizer do fato de ter vivido aos pés de civilizações desaparecidas ou mutadas?
Uma anedota: na primeira vez que fui a Nova Iorque, cheguei desde a Guatemala, horas depois de haver visitado Tikal, na selva do Petén. Em 1978. Quando vi pela primeira vez o skyline novaiorquino pensei: que belas ruínas não darão estes arranha-céus. Não quero parecer agoureiro, mas ao que tudo indica a nossa civilização, da qual Manhattan é, em muitos sentidos, o ícone máximo, está ferida de morte, porque somos muitos, porque não nos queremos, porque nossos recursos não são infinitos e porque o homem talvez não consiga não repetir grandes desastres periodicamente, para depois passar para uma melhor construção e percepção da realidade. Não prego o apocalipse, nem tenho certeza de que o que virá será apocalíptico no sentido bíblico ou no que se imaginava sucederia no contexto tão fantasmagórico da Guerra Fria; talvez simplesmente comecemos de fato a desacelerar globalmente e a entropia conquiste novos espaços, contra o projeto de um mundo organizado pela razão capitalista triunfante, que hoje está armada de uma arrogância totalmente descabida, se não francamente tanática.
Pois bem, o amor corpóreo, não o consumo do corpo alheio como produto de mercado mas o encontro físico e também espiritual entre os seres humanos, ainda oferece um bálsamo, mesmo que cercado das ameaças virais contemporâneas, contra esta erosão constante da realidade sob o império de um imaginário vinculado a valores de mercado. Nos últimos anos passei a valorizar cada vez mais o amor espiritual, e creio que devo dizer isso porque eu desconfiei dele por muito tempo, erroneamente considerando-o como um subproduto da cultura. Neste sentido, foi um crescimento, que veio com a experiência de mortes próximas, e talvez do amadurecimento que sofri em função do regresso ao Brasil. Mas a sensação de melancolia, tão própria da civilização ocidental, não pode abandonar a ninguém que observe o que está acontecendo nos mais diferentes quadrantes e culturas, dificultando a permanência da fé na capacidade da nossa civilização responder aos problemas que ela mesma criou. Agora, crer na vida é maior do que crer no humano e na nossa civilização precisa; esta é uma das certezas do, digamos, pós-humanismo atual. A vida não é nossa; nós somos dela, e ela é muito maior do que nós imaginamos, com as nossas meta-narrações encolhendo sobre nossos corpos como se roupas de aluguel debaixo da chuva e depois da festa. O corpo — e o espírito do corpo — ficará maravilhosamente exposto ao air-du-temps quando os ilhoses por fim arrebentarem.
Zunái: Você teceu reflexões sobre o ofício poético em diversas composições, como Os Jardins e os Poetas . Em sua opinião, qual é o sentido da criação literária numa época que cultua o monoteísmo do mercado (Garaudy), a tecnologia e os meios de comunicação de massa? Pintar quadros, escrever poemas serão ofícios inúteis, míticos ou semilendários como a falcoaria, a heráldica ou a edificação de câmaras mortuárias piramidais?
Horácio: Não se pode pedir ao poeta que não poetize, ao escritor que não escreva, ao pintor que não pinte, ao escultor que não esculpa, ao artista visual que se cegue, ao realizador de filmes que não filme, ao bailarino que não dance, ao ator que não represente, ao arquiteto que não projete etc. O sentido de produzir arte é o próprio do fazê-lo, não o de agregar sentido a este fazer. Veja bem, não se trata da defesa da arte pela arte dos simbolistas, distante do vulgo e perto de umas musas que hoje estão contando os centavos e os minutos para cobrar o seu cachê. Não se trata de defender, por outro lado, o fazer mecânico, alienado e alienante. Nem do elogio do fazer por mero descarrego hormonal. A arte é um assunto sério, que se justifica sozinho e que acontece há muito tempo, e que não se faz para o futuro nem para um tempo histórico qualquer; é mesmo fora do tempo que se faz dentro dele e para ele, como se para oferecer-lhe um seu trasunto, um seu equivalente, paradoxal: ars longa vita brevis, vaya. Por outro lado, o fragílimo jogo narcísico da produção da arte no mundo monoteísta de mercado, como você diz, é um risco que apenas algum artista que não conheça nada de psicanálise pode cair: hoje em dia, na arte séria, o narcisismo acabou, foi substituído pela crítica, e isto não quer dizer que a exploração da subjetividade, por tanto tempo satanizada, tenha se obnubilado, ela me parece objetivamente mais importante do que nunca. Só os realmente pior preparados diante da linguagem crêem que o Deus-Mercado é algo mais do que um tigre de papel. Acho que até ele, o tão decantado deus de pés de bode, ou o bezerro de ouro, sabe disso, mesmo que odiando esta consciência. Por isso ainda se produz e se recebe e se analisa arte.
O Mercado, que continuamente tenta conspurcá-la para afirmar-se, constantemente termina por respaldá-la, por homenageá-la, por puxar o saco dela, que continuamente lhe diz, você lá eu aqui, eu sei bem qual é a tua, você não me engana, sacana. Claro que seria melhor ter ideias mais assentes, como até há algumas décadas, um corpus cuja centralidade e autoridade fossem referenciais para um grande número de agentes sociais, entre eles os artistas, e melhor seria, em poucas palavras, não ter que lidar com a ameaça ou o fantasma constante do mercado e com a melancolia que isso necessariamente gera, e não ter sequer que continuamente afirmar o óbvio, como o faço agora, e simplesmente esquecer essa bem infeliz conjunção. Mas não é assim. Então, faz-se arte porque sim, e se ela virar ruína, que pena, mas tanto dá; a Biblioteca de Alexandria queimou-se, Pequim foi incendiada por Gêngis Khan, os maias regrediram misteriosamente para a selva, mas nós sabemos de Hipatia e Plotino, e o mundo dos mandarins virou tema para Marco Polo e Matteo Ricci, e hoje já se podem ler as estupendas estelas comemorativas na América Central. Talvez essa empreitada decodificadora não possa continuar indefinidamente devido ao quadro que nos encontramos, mas não temos saída: do bisonte grafado em Lascaux ao livro deixado na Lua, sempre apostamos contra Mammon e suas aparições e tentações. A poesia, pois, tem um lugar e uma dignidade específicos nesta estratégia milenar de resistência, nesta aposta cega. A arte do vento, como a chamo, sempre deu um jeito de ecoar. E segue ecoando. E se depender de nós, pois seguirá enquanto der, não? Se tudo virar pó, enfim, a poesia não sofrerá nada, porque não é material, e uns extraterrestres avançadíssimos e com cabeças parecidas a abóboras de água e com antenas cor-de-rosa, gelatinosamente identificarão nossos sussurros pelas dobras do universo através de seus sensores sensibilíssimos, e como serão tão superiores, saberão como separar o joio da palavra mamônica do trigo da poesia, e talvez venham a dizer que uma surpreendente forma de vida se desenvolveu num planeta polvorento e escasso, uma forma de vida que sabia expressar-se poeticamente.
Zunái: Em ensaio publicado na revista Coyote, Eduardo Milán comenta o descompasso entre linguagem e realidade. As palavras são insuficientes para a representação do mundo? Cabe ao poeta insistir na tentativa da mímese ou buscar a criação de novas realidades, quer dizer, realidades estéticas (e através delas influir na mudança do mundo atual)?
Horácio: As palavras nunca cobriram a realidade, elas inventam outra, ou outras, que está, ou estão, em contato com a realidade dita tangível pelos nossos pobres e insuficientes sentidos. A correspondência entre realidade e linguagem nunca foi direta, nem simples. Derrida fala disso bem em La Mythologie Blanche, no famoso ensaio La Pharmacie de Platon. Thot pode matar ou curar; depende da dose e do acerto. Não há muitas regras, de fato, para estabelecer a distância entre a criação de linguagem e sua recepção, ou melhor dito: o seu cabimento, num determinado momento histórico. O que pensaram os contemporâneos de Dante sobre a Divina Commedia? Nunca se saberá. Dante era antipático aos gibelinos, foi expulso de Florença, tinha um imaginário pedófilo e seria um criptofascista, em termos da ideologia que circulava há cinqüenta anos — preferia o imperador germânico a seus fellow citizens. Mas escreveu, ou melhor: fez, no sentido de realizar, a maquete mais acabada de uma forma mentis, que hoje nós chamamos de medieval. Quantos de seus contemporâneos se reconheceram nela, à época da sua escritura? Nunca se saberá. Então vejamos: há, sim, hoje, uma grande aceleração na superfície do lago, uma turbulência que parece digna de um macroliquidificador de tudo, menos de si mesmo, mas eu quero crer que é só aparencial, embora nós a vivamos como Realidade, ou pelo contrário, essa turbulência é tão estrutural que só a podemos perceber como aparência, por que a nós humanos não é dado o entendimento completo (e por que seria?).
Michio Kaku, um matemático japonês, fala de dez dimensões detectáveis e que quiçá venham a ser mensuráveis (quando?). A turbulência da nossa realidade se somará às de todas as demais, potencializada? E se o "natural" da ordem for a desordem, no sentido da turbulência? Então, se for assim tudo sempre foi e será eminentemente turbulento. O melhor é não se assustar com isso, começar a encarar o caos como fator condicionante daquilo que pensávamos ser ordem, e condicionante para a criação de outras utopias futuras, e tratar de viver a nossa dimensão turbulenta como se fosse — e parece ser — o normal das coisas, ainda que tenhamos momentos de suspensão, alguns deles induzidos pela poesia, ou pela linguagem em função artística, que criam uma outra vertigem, a da arte, que podemos crer ou não que nos compensam desta sina cósmica. Também é importante que incorporemos de vez que só na aparência algumas obras de arte que nos parecem "monumentos", no sentido anterior da palavra, parecem-nos estáveis, uma vez que a crítica já faz tempo que se encarregou de dissecar essas brilhantes superfícies canônicas que eram as obras de arte até o século passado, e hoje a inteligência crítica ensina ao leitor, ao espectador, ao aluno médio que a instabilidade é talvez um dos condimentos mais importantes para a artisticidade da obra de arte, que só pode viver quando recebida por alguém preciso, individual, e daí instável, e não simplesmente fechada por uma interpretação, um valor, um sentido únicos, que almejam à estabilidade, à autoridade, à morte, em resumo.
Zunái: Você publicou no México um volume de ensaios, Mar Abierto, que saiu há pouco no Brasil pela Lumme Editor. Comente a organização desta obra. Ela reúne a tua produção ensaística em geral ou os textos que a compõem foram escritos especialmente para o livro, conforme um plano prévio?
Horácio: No fim da minha estada no México eu queria deixar um testemunho de tudo o que tinha escrito em termos de crítica literária, nas maioria das vezes em terras mexicanas, e um pouco em função de situações –ensaios para simpósios, conferências, etc- que tinham se apresentado lá, e das aulas e dos cursos que eu ensinei na Universidade Nacional do México (UNAM) -foi por isso que montei o livro da maneira como ele está. O título foi roubado, com o consentimento, é claro, de Saramago, que o tinha bolado mas não o utilizou em A Jangada de Pedra. Na verdade, nos Estados Unidos e no México eu passei por um período prolongado no qual eu via a literatura latino-americana, a brasileira inclusive, como um todo, todas as literaturas ibéricas e ibero-americanas como uma extensa família, como um "mar aberto" de equivalências e possibilidades interpretativas; daí, no momento seguinte eu comecei a mapear, por assim dizer, a nossa diferença e os possíveis diálogos entre as literaturas escritas em português e em castelhano neste macrocontexto, e este mapeamento é a outra moeda do livro. Assim, não há por assim dizer um "foco ensaístico" único nele; os ensaios vão se sucedendo tal e como são, ensaios de interpretação –ou seja, não são mini "teses" no sentido acadêmico da palavra, são coberturas setoriais, e visam tanto à informação do público leitor –o hispano-americano por excelência- como a um tanto sub-repticiamente deixar claro por onde, por quais páramos o poeta que os escreve se deteve. Acho que nós já passamos da fase de escrevermos précis de literaturas ou o que seja; finalmente hoje em dia, e devido ao labor de várias gerações de tradutores , já conhecemos muito melhor a literatura hispano-americana no Brasil e a brasileira em terras hispanas, e já podemos escrever sobre as nossas literaturas mútuas sem tanta distância ou temor. E depois, a respeitável intenção de oferecer ao estimável público histórias gerais do que seja, bem, meio que ficou no século passado, não? Com o avanço do comparatismo, há uma crescente e fecunda tendência a diálogos setoriais entre línguas, autores, setores, tendências, etc. O pensamento totalizador sofre recortes todos os dias. Eu não posso escrever ensaios como um Toynbee ou um Cantù, esporões de Spencer. Sim posso ensaiar. E o faço, em mar aberto.
Zunái: Uma faceta notável de sua atividade literária é a tradução de autores como Octavio Paz e Xavier Villaurrutia, bem como os estudos sobre poesia latino-americana. A seu ver, como está hoje o intercâmbio entre os autores de língua portuguesa e os de língua espanhola no continente? Alguma coisa mudou desde o evento A Palavra Poética na América Latina, que você organizou em São Paulo, em 1990?
Horácio: Aprendi com o Haroldo de Campos e o João Alexandre Barbosa que tradução é re-invenção, re-escritura, e um ótimo exercício poético, para os poetas. Cada autor traduzido é um tesouro incorporado objetivamente, não através da leitura silenciosa. A este fato, some-se o de que muitos autores que foram importantes para mim e que me parecem bons não são conhecidos nossos, não foram ainda incorporados pela cultura brasileira contemporânea, e o fato que eu considero que um dos meus deveres é seguir enriquecendo a nossa língua com boas traduções. Traduzir alguém canônico como o Octavio Paz, que eu fiz com freqüência, ou alguém lastreado por uma aura próxima ao Brasil, como a Elizabeth Bishop, que eu fiz na década de oitenta, ou ainda um nome de referiencia para a vanguarda internacional, como o César Vallejo, que fiz há quinze anos, se desculpa por si só; já prosseguir com outros autores mexicanos pouco ou não conhecidos significa colocar na mesa do jogo tradutório as minhas opções individuais. O Villaurrutia, que eu traduzi há alguns anos, foi um dos mentores de Paz, junto com o José Gorostiza, que eu traduzi no ano passado. Ambos pertenceram a uma interessante geração de poetas mexicanos, a de "Contemporáneos", que na verdade não tem correspondência no Brasil, por que não são filhos e arautos da vanguarda como os nossos modernistas, mas são contemporâneos deles. A geração de "Contemporáneos" me interessa por que sempre me perguntei por que o Brasil é tão marcado pelo espírito da vanguarda e a América Hispânica, pois, menos, salvo algumas exceções. A literatura brasileira é filha da vanguarda, mas por exemplo, no caso mexicano a Revolução –e outros fatores culturais, antropológicos mesmo- impediu que algo semelhante se desse. Mas não houve, por outro lado, uma pregação reacionarista na poesia mexicana, mas sim uma filtragem da vanguarda e alguns projetos poéticos individuais, como os de Villaurrutia e o de Gorostiza- vingaram de um modo estupendo. Então, resolvi traduzi-los; minha tradução do Villaurrutia foi publicada em Portugal e a de Gorostiza está por sair pela EDUSP, e creio que ambos poetas permitem levantar algumas questões críticas para a nossa avaliação da nossa feliz tradição vanguardista, e o digo sem ironia. Por exemplo, como é que os poetas homossexuais mexicanos desde os anos vinte fizeram da afirmação da sua condição sexual uma de suas bandeiras, e que aqui nunca houve nada disso, até bem recentemente? E como se deu, no período da nossa segunda geração modernista, i.e. nos anos 30, um texto como o de Gorostiza, tão barroco que parece estar à frente de muito o que se escreve recentemente como neo-barroco? Assim, creio que traduzi esses nomes para tornar mais difícil a nossa às vezes pouco sofisticada tendência de olhar o mundo com excesso de segurança e algo de inocência, e para ajudar-nos a pensar que a complexidade e a contradição são parte estrutural do real. Claro, eu já notava que no "mar aberto" das correspondências literárias intra-ibero-americanas havia muitas marés desconhecidas, mesmo antes de convocar aqueles poetas em 1990 para o encontro do Memorial, que hoje pode ter se convertido num momento importante no processo da poesia latino-americana recente -pelo menos é o que sempre me dizem, eu nunca sei ao certo. Na verdade, aqueles ensaios, aquele livro publicado em 1992 necessitariam receber uma análise crítica para saber o que de fato aconteceu então. Eu tinha uma ideia, que era boa, e a realizei. Parece que muitas, quase todas, das tendências então vigentes na poesia hispano-americana e brasileira da geração nascida entre 1950 e 60 estão contempladas naquele livro. Mas de fato, de lá para cá o que mudou? Em termos de diálogo, acho que muito, pois se intensificou, inclusive devido àquele encontro específico. Em termos de conteúdos, eu não sei. Provavelmente as questões lá presentes se radicalizaram e algumas terão simplesmente deixado de importar. Eu não posso saber; eu sou parte do processo e autor do projeto. O que vejo é que se continua penando que a poesia vive em crise etc. mas nunca se publicaram tantos livros de poesia nem houve tantas revistas nem se lamuriou tanto em seu nome; então tanta lamentação me parece cabotinismo. Os poetas queriam ganhar tanto quanto os jogadores de futebol e ter as suas excelsas individualidades tão perscrutados como as dos astros de telenovela? Esquecem-se de que Platão os tirou da polis por malucos e que a baba maluca do poeta às vezes vira imprescindível para as sociedades sobre as quais babam. Quem quer reconhecimento e poder, dedique-se à política e às artes performáticas. Depois, poeta fala muito mal de poeta, são piores que alcoviteiras; sem um pouco de esprit-de-corps torna-se mais difícil sobreviver na atualidade, que digam todos os lobbies do Planalto, não? De todas maneiras, eu gostaria que eventos como os do Memorial se dessem. Depois daquele evento, organizei em 1998 um outro, de revistas literárias, para a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Foi um desgaste insanável, que me botou frente a frente com o monstro da burocracia oficial. Acho que é necessário ser mais jovem do que eu para encarar barras como essas; já fiz a minha parte. Pensaria várias vezes antes de organizar outro evento como esses, mesmo dadas as circunstâncias.
Zunái: Você tem pesquisado a obra do romancista português José Saramago. Comente a evolução desse trabalho.
Horácio: O Saramago é um excelente romancista e um grande prosador, mas além disso, só começou deveras a escrever prosa de ficção a partir de uma idade pouco usual para escritores que depois caem nas graças da crítica e do público -ao redor dos sessenta anos, diga-se de passagem. Quando comecei a ler a sua obra em Yale em 1985 não havia quase nada crítico sobre ela, afora um estudo da Maria Alzira Seixo e poucas coisas mais. Eu tinha que escolher um tema de doutorado espicaçante, e que me interessasse. Escolhi estudar a parte ainda não estudada da obra de Saramago, aquilo que com razão ou não chamei de o seu "período formativo", tudo o que ele escrevera antes dos romances que então começavam a notabilizá-lo. Corri um risco. Calculei bem: no ano do Nobel, em 1998, a revista Colóquio-Letras organizou um número especial, e o trabalho mais citado foi o meu. E dizer que a minha banca de doutorado me deu a nota mais baixa possível quando apresentei a tese, em Yale! Um membro da banca recomendou de forma específica que eu não a publicasse, por que carecia de interesse, e devido a que o autor era um ilustre desconhecido. Eu menciono esta história aos meus alunos da USP, assim como mencionava aos da UNAM. A academia produz pérolas como essa, há-de desconfiar sistematicamente dela. Digo-o por que sou membro dela. Adoro ensinar e saio revigorado das minhas aulas. Gosto de acompanhar intelectualmente os meus alunos, e de ter que continuar a estudar para ensinar. Mas que o ritual acadêmico muitas vezes é insuperável por insuportável, é.
Zunái: Ravenalas, livro publicado em 2008, tem uma organização cronológica, ou seja, os poemas estão colocados na sequência em que foram escritos. Há mais peças de caráter autobiográfico, assim como nos volumes Homoeróticas e Paulistanas, que saíram em 2007 pela Lumme Editor. A sua poesia caminha num sentido, digamos, mais reflexivo e existencial?
Horácio: Ravenalas é de fato um turning point na minha obra poética. O registro fica mais íntimo e é um processo de grande liberdade interior o que explica o livro. Eu mesmo me surpreendia com os poemas que estava escrevendo. Como não mantenho blogues nem sou membro de redes ditas sociais, pois, essa modalidade meio cronística, que via suceder em Ravenalas (e posteriormente, porque tenho outro livro pronto, Bernini), fazia essa ponte entre a escritura da agoridade, tão em moda hoje, e a reflexão subjetiva, sempre presente, ou ao menos tradicional, na escritura poética. Continuo neste sentido: estou fundamentalmente satisfeito com esse formato e esse discurso.
Zunái: Você organizou em 2007 o evento Em Mar Aberto: Poesia em português e nas línguas da Espanha. Um diálogo histórico, uma futura aliança? Fale a respeito da proposta desse encontro, a começar pela escolha do nome, e de seus resultados, nos anos posteriores, para o intercâmbio internacional.
Horácio: Este evento respondeu a uma curiosidade minha, de ordem puramente intelectual: na Península Ibérica, Portugal foi, até o Iluminismo, um grande receptáculo dos conteúdos literários espanhóis, não se podendo dizer o contrário. Certo: Jorge de Montemor escreveu A Diana e ficou conhecido como Jorge de Montemayor; Gil Vicente é estudado em sua produção teatral em espanhol nos curricula hispanos, e alguns escritores portugueses foram e são muito influentes a partir de sua tradução ao espanhol, na Espanha e na América Latina, e.g. Pessoa e Saramago, na época contemporânea. Entretanto, não se comparam, esses nomes isolados, com o efeito das letras espanholas sobre a literatura portuguesa: aí está, por exemplo, Gôngora, cuja presença chegou a ameaçar a do próprio Camões em Portugal, como eu já escrevi em um ensaio publicado em Mar Aberto. Ora bem, esse padrão atravessou o Atlântico e se instalou no regime de leituras entre hispano-americanos e brasileiros: nós os lemos, no original ou em tradução, bem mais do eles a nós, em termos históricos. Todo mundo já leu Vargas Llosa e García Márquez, por exemplo, mas poucos vizinhos leram Lispector ou Guimarães Rosa, e quando e se, via de regra, que tem as suas exceções, em tradução, embora todo hispano-americano culto já tenha lido o panteão dos nossos poetas modernos.
Entretanto, esse padrão está mudando e responde a uma muito maior presença do Brasil no contexto internacional, regional e inter-ibérico. Há uma muito maior curiosidade sobre o Brasil hoje do que antes, e essa é uma tendência de futuro. Ora bem, com a maior concentração numérica e com a decorrente maior visibilidade da literatura que se escreve em português em terras americanas, como será a nossa convivência com os povos que se expressam em espanhol? O padrão histórico continuará? Foi essa pergunta que me fez pensar em reunir em São Paulo representantes das minorias linguístico-literárias espanholas, para abrir um diálogo com o português que nós cultivamos. Não consegui atrair a atenção de portugueses para que dele participassem. O que me fez pensar que cada vez mais a promoção e a inserção de novos conteúdos na política internacional da língua portuguesa e das literaturas que nela se escrevem, tal como esse diálogo preciso, deverá partir e ser sustentado por nós.
Em Washington, há três anos, apresentei um trabalho sobre esses tópicos, A lusofonia y los vecinos, e o debate com o qual me envolvi com os representantes do governo português corroborou o que acabo de dizer. Continua a parecer-me uma vergonha que nos dias que correm Portugal se dedique a abrir leitorados na Ásia Central, por exemplo, e não se empenhe em procurar uma política unitária com o Brasil e a África de expressão portuguesa, tanto quanto me parece patético que o Brasil não disponha até hoje de um organismo de Estado para promover a nossa cultura no exterior, à imagem do que acontece com a própria Espanha, com o Cervantes, Portugal, com o Camões, a Alemanha, com o Goethe, a França, com a Aliança, e assim por diante. Com a quantidade de tramoias que acontecem em Brasília, como explicar que não tenha havido ninguém que propusesse, no nosso caríssimo e ineficiente Legislativo, ou mesmo como uma iniciativa do Itamaraty, a criação de uma autarquia com esse perfil? isso revela uma mentalidade provinciana e isolacionista, que contradiz o discurso oficial do "Brasil potência".
Essas minhas opiniões e a organização de um evento como o que vc menciona, e que seguem os anteriores, traduzem o viés mais político na minha obra. Cada vez mais creio que a atividade do poeta implica em tomadas de posição que tais, publicamente. Tenho poucos leitores e menos críticos, e sei que minha obra não é exatamente popular, nem aqui nem na Cochinchina. Mas não abdico de tornar públicas as minhas opiniões. Que tenham reflexo sobre a realidade é outra história. Mas eu sou um poeta na e da cidade. Por falar nisso, quero terminar esta nossa re-entrevista com a menção do meu engajamento com a temática da diversidade (homo) sexual. Fui presidente da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura-ABEH, no biênio 2008-10, e o congresso que organizei na USP há dois anos e alguns meses, com quase 500 inscritos, foi excepcional. Recentemente saiu o volume Retratos do Brasil Homossexual, organizado por mim e pelos membros da diretoria naquele biênio, publicado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e pela EDUSP. São quase 1300 páginas de ensaios, um terço dos quais publicadas no livro e dois terços no CD que o acompanha. Para mim, a experiência de militar por uma causa importante, para lá da militância que a escritura de poesia em si implica, tornou-se uma faceta importante de minha obra como poeta-cidadão. Sou membro do comitê intersecretarial para a implantação de políticas públicas para assuntos da diversidade sexual, e tivemos muitas reuniões e fizemos um trabalho conjunto de sugestão de várias medidas ao governador do Estado, muitas das quais já vigoram sob forma de decreto lei do executivo paulista. Em resumo: não acho incompatível essa atividade política com o escrever poesia. Curioso que parece que sou o primeiro poeta assumidamente homossexual na dita alta poesia brasileira a se envolver politicamente nessa luta. O tema homossexualidade ainda é ignorado nos estudos de poesia no Brasil e até o Roberto Piva, ninguém que tivesse assumido a sua voz homossexual em alto e bom som. Vamos com um atraso enorme com relação a países semelhantes ao nosso, como vários dos hispanos e o mesmo Portugal. Militar por esses estudos e escrever com o registro homossexual é um serviço que sinto fazer para a ampliação e a modernização -não gosto da palavra, mas enfim - da palavra poética no Brasil.
Zunái: Quais são os teus projetos atuais? Você está organizando um novo livro de poemas?
Horácio: Continuar escrevendo poesia. Continuar ensinando na USP. Continuar viajando quando convidado. Ser amigo dos meus amigos. Votar pouco e bem. Ter uma existência doméstica em princípio sã. Beber menos e nadar mais. E, se der para publicar, muito bem. Tenho um livro novo de poemas sim, mas está longo demais, devo cortá-lo numa terça parte pelo menos. O que quer dizer que ainda não está pronto. Mas já tem título: Ciclópico Olho.
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Leia também poemas de Horácio Costa (I) e (II) e um ensaio sobre o autor escrito por Contador Borges.
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