O PRAZER DA INVENÇÃO:
UMA
CONVERSA COM NUNO JÚDICE
Por Maria João Cantinho
Nuno Júdice nasceu na Mexilhoeira Grande (Portugal), em
1949.
Poeta, ficcionista e professor universitário, com inúmeros
ensaios publicados, tem uma obra vasta e diversificada. É
atualmente professor da
Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou
(1989), apresentando uma dissertação sobre Literatura
Medieval.
Exerceu ainda as funções de conselheiro cultural da Embaixada
de Portugal e de director do
Instituto Camões em
Paris.
É nessa época que também se inicia a tradução da sua obra em
França, pela mão do editor e tradutor Michel Chandeigne. Tem,
também, a sua obra traduzida em
Espanha,
Itália,
Venezuela,
Inglaterra e
França.
No Brasil, tem obra publicada sob a chancela da editora
Escrituras.
Divulgador
da Literatura Portuguesa do século XX, publicou
em
França
Voyage dans un siècle de Littérature Portugaise
(1993), reeditado e revisto na edição portuguesa
Viagem por Um Século de Literatura
(1997). Colaborou em acções de divulgação cultural, como as
Letras Francesas (1989), com uma apresentação de
autores franceses contemporâneos, e organizou a Semana
Européia da Poesia, no âmbito da Lisboa 94 - Capital Européia
da Cultura.
Poeta e ficcionista, publicou o primeiro livro de poesia em
1972,
A Noção de Poema
(Publicações
Dom Quixote). Recebeu importantes prêmios da poesia
portuguesa: o Prêmio
Pen
Clube (1985), Prêmio D. Dinis da
Fundação da Casa de Mateus (1990), Prêmio da
Associação Portuguesa de Escritores (1994), este
último com o livro
Meditação Sobre Ruínas,
que foi também finalista do Prêmio Europeu de Literatura
Aristeion. Recebeu também o Prêmio Fernando Namora da
Sociedade Estoril Sol com o romance
O anjo da tempestade. Publicou diversos estudos sobre
Teoria
da Literatura e
Literatura Portuguesa, antologias, edições
críticas, e tem uma colaboração regular em jornais e revistas
como cronista. Como dramaturgo, produziu obras para teatro e
traduziu autores como Corneille, Shakespeare e
Emily
Dickinson.
Foi diretor da revista literária
Tabacaria,
editada pela
Casa
Fernando Pessoa, e comissário para a área da
Literatura da representação portuguesa à 49ª
Feira
do Livro de Frankfurt. Com o seu último livro de
poesia,
As coisas mais simples, acaba de receber o Prêmio António
Ramos Rosa.
Zunái
- Uma das coisas que mais me impressionam na sua obra é, além
da grande qualidade que lhe assiste, a sua vastidão, o que faz
de si um dos casos raros na literatura portuguesa. Com uma
atividade intensa, como consegue conciliar a vida com a
escrita?
Nuno Júdice -
Sem vida não haveria escrita. Mas essa conciliação decorre de
uma disciplina que me obriga, diariamente ou quase, a
escrever. E também a ler, embora essa leitura seja quase
sempre uma releitura dos autores que me acompanham desde
sempre, e que estão ao meu lado na estante: Herberto, Ruy
Belo, Jorge de Sena, Drummond, Vinicius, Rilke, Ashberry,
Eliot. e os que vou descobrindo, sobretudo da poesia
anglo-americana, que é aquela de que me sinto mais próximo,
depois da portuguesa. O último foi Robert Nye, com um poema
delicioso publicado no TLS de 21 de dezembro sobre o milagre
de Canaã.
Quanto à conciliação com outras actividades, neste momento o
que me empenha sobretudo é o ensino, e gosto de o fazer porque
é complementar da minha criação, embora o contrário também
pudesse ser verdade. Podia dizer que isto me obriga a uma
reduzida vida chamada social, a participações em atos
culturais ou literários que todos os dias têm lugar nesta
cidade de Lisboa, mas devo dizer, por outro lado, que ainda
bem que assim é, o que me mantém afastado dos faits divers
desse quotidiano que é, quase sempre, muito empobrecedor da
criatividade.
Zunái
- Sei que é muito metódico na sua escrita, creio que falamos
nisso um dia. Mas qual a função da inspiração, para si? Ela
tem muita importância ou considera-se mais um artesão?
NJ -
A inspiração é a parte menor da criação. O poema nasce em
geral de um objeto, uma memória, uma imagem - e é a partir daí
que a sua construção vai sendo desenvolvida. Pode ser um
quadro ou uma escultura, como pode ser uma fotografia, ou uma
simples cena do quotidiano. No entanto, é a palavra que vai
guiar a escrita poética; e por palavra entendo também o lado
fônico, sonoro, que obriga à procura de um ritmo e de uma
respiração que vão buscar à música as suas regras. Mas também
não me considero um artesão dado que não preciso de trabalhar
demasiado o objeto poético: o poema nasce praticamente já
acabado, e se há um trabalho ele dá-se na cabeça, antes de
passar à página o texto.
Zunái
- - Fala nesse empobrecimento da atividade criadora, quando o
poeta vive mergulhado no quotidiano. Mas a sua vida, em grande
parte, foi dedicada a uma atividade cultural e social que o
retirava a esse espaço silencioso. Lembro-me da sua estadia em
Paris, por exemplo. Como conseguiu sobreviver a isso?
NJ -
Não creio que se possa falar de um quotidiano pobre quando
existe uma dimensão poética da vida que o procura transformar
em matéria poética - e muito menos quando esse quotidiano
decorre em Paris, onde existe uma presença constante da arte -
do teatro à música, às exposições, à própria arquitetura da
cidade. Mas é também no lado menos «nobre» ou elevado desse
quotidiano que, muitas vezes, o poema vai buscar a sua fonte:
os pobres, as cenas de café ou do amanhecer de uma cidade, a
solidão, tudo vão ao encontro dessa procura de uma realidade
capaz de encontrar na linguagem poética uma transfiguração que
talvez não lhe retire a tragédia, mas que lhe poderá
acrescentar uma imagem coleciva.
Zunái
- A sua estadia em Paris e o contacto com o meio literário
francês contribuiu largamente para a sua divulgação fora de
Portugal. Pode-se afirmar que o Nuno Júdice é dos primeiros
casos de autores portugueses a ser conhecidos em Paris ou,
quando chegou, já havia o trabalho de Chandeigne e de Vital,
na edição de obras portuguesas?
NJ -
Havia já algum trabalho de tradução mas sobretudo no plano da
ficção. O que mudou radicalmente o panorama do conhecimento da
poesia portuguesa em França foi a descoberta da importância de
Fernando Pessoa que teve lugar a partir da década de 1980.
Pessoa estava traduzido desde os anos cinquenta, mas a verdade
é que lhe faltava um reconhecimento canônico. Lembro-me de ter
visitado a casa-museu de Aragon, nos arredores de Paris, onde
está a sua biblioteca: e o volume de poemas de Pessoa estava
incólume, nem fora aberto. O que sucedeu com a minha poesia
foi ter tido a sorte de encontrar um excelente tradutor e
amigo, o Michel Chandeigne, e a colecção Poésie/Gallimard ter
aceite a proposta de editar Um canto na espessura do tempo
e Meditação sobre ruínas. Sendo uma colecção de
referência no mundo, foi a partir daí que a minha poesia
chegou a países como a Turquia, a Albânia, Israel, Vietnã,
Bulgária etc. Fui o primeira poeta vivo a ser publicado nessa
colecção (em língua portuguesa havia apenas o Pessoa); depois
de mim foram publicados Eugénio de Andrade e António Ramos
Rosa, para além de uma excelente antologia da poesia
portuguesa feita pelo Michel Chandeigne. Terá sido a boa
recepção do meu livro que abriu o campo para essa
continuidade, dado que a primeira edição de quatro mil
exemplares esgotou, e saiu uma segunda, o que em França - e
sobretudo para a poesia - é um caso raro.
Zunái
- Tem obra traduzida em vários países, o que eu considero um
privilégio. O que acha que falta à obra de poetas portugueses
(como sabemos, alguns de extraordinária qualidade) para que
possam chegar a outras línguas, a outros países? Uma política
acertada, uma vontade de conhecer a poesia portuguesa?
NJ -
Falta hoje, sem dúvida, essa política. Uma das áreas
em que Portugal
pode afirmar a sua diferença, originalidade e qualidade em
relação a outras culturas, é a poesia; e, do ponto de vista de
orçamento, o apoio a viagens e edição é ridículo, se
compararmos com a música, o teatro, a pintura etc. O problema,
por outro lado, é que essa divulgação passa também pela
personalidade dos poetas e pela sua capacidade de encontrarem
os canais próprios para a sua comunicação. Não havendo agentes
literários para a poesia, o poeta - e a sua obra - é o grande
agente de si próprio. Foi isso que aconteceu com a minha
poesia: foi através de leituras em encontros internacionais, e
em festivais importantes como o de Roterdão, o de Durban ou o
de Medellin, que tradutores e editores se interessaram em
publicá-la. Essa
capacidade de comunicação talvez falte a alguns poetas; os
outros, será a dificuldade em traduzir a especificidade da sua
linguagem. A minha poesia, sem abdicar de uma exigência formal
que sempre mantive, fala de temas universais que interessam a
qualquer leitor.
Zunái
- Num poema do seu último livro, As coisas mais simples,
diz: "Hoje, prefiro cantar as coisas simples, as
que/crescem depressa, como os ciprestes, ou as/que se enrolam
a tudo o que aparece nos muros (.)". É um regresso? Sente que
algo mudou no seu olhar?
NJ -
Há aqui sem dúvida uma referência aos grandes temas da
literatura - a morte, a vida, o amor, o sagrado - que
percorrem toda a minha poesia; e a constatação de que há
outras coisas para além deles, que se encontram nestes
pequenos aspectos da natureza ou do quotidiano. Não substituo
umas coisas por outras: tudo tem o seu tempo e a sua
atualidade para quem escreve; mas há uma opção por me
debruçar, neste momento, sobre o que se poderia considerar o
efémero, seja do mundo humano seja do espaço natural e
cósmico, para descobrir uma lógica que sobrevive à queda e ao
fim a que estamos condenados. Não o faço, no entanto, com uma
simpatia melancólica, mas com esse «desejo de durar» que
encontrei algures num livro e que faz parte da nossa essência,
contrariando as pulsões negativas que nos empurram para o seu
oposto.
Zunái
- Curioso quando diz que existem os grandes temas da
literatura. Refere-se aos grandes temas clássicos. Acha que
essa afirmação é válida para os jovens poetas atuais que se
afastam desses temas "duráveis"?
NJ -
Se eles se afastam, afastam-se também daquilo que é a grande
poesia, e estão condenados a essa mediocridade que os irá
engolir. Devo dizer que é o grande problema de alguns desses
jovens poetas: a incapacidade de encontrarem uma referência
que possa funcionar como um terreno fértil para a sua
linguagem. Sem isso, os poemas podem ser bem feitos, limpinhos
do ponto de vista técnico, mas falta-lhes a alma e, sem isso,
o que é durável na poesia, que é a capacidade de comunicar um
ser que, em dado momento, sentiu e pensou uma relação com a
vida e o real de um dado momento. Admito que não tenham essa
ambição: ninguém é obrigado nem a ter alma nem a ter ambição.
Mas não pode exigir grande coisa depois dessa abdicação.
Zunái
- A maior parte desses jovens poetas segue uma poética dos
anos 70. Refiro-me nomeadamente ao caso de Joaquim Manuel
Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge que começaram a
publicar na mesma geração. Como foi essa época turbulenta,
atravessada por uma poesia altamente comprometida
politicamente? Como era possível resistir?
NJ -
A poesia sobrevive de forma natural porque não está tão
dependente da edição e do grande público como sucede com o
romance. Os poetas que começam a publicar nos anos 70, como
foi o meu caso, o do Joaquim Manuel Magalhães e o do João
Miguel Fernandes Jorge, tinham um horizonte cosmopolita e uma
abertura para zonas de interesse que iam além das fronteiras
portuguesas - e falo das fronteiras políticas e culturais
dessa época de ditadura. Curiosamente, isso permitia uma
escrita mais livre e plena do que se tivéssemos sido
condicionados por essa situação. Foi, por outro lado, um
período de descoberta dos grandes caminhos de compreensão da
própria linguagem poética: as novas teorias da literatura, a
relação com a música e o cinema, ou a pintura, foram
possibilidades inovadoras que permitiram que a mudança de
linguagem, de formas e de temas se desse e um modo
revolucionário, na linha do que um Herberto Helder, um Ruy
Belo e um Jorge de Sena tinham iniciado na década de sessenta.
Zunái
- Sente que o 25 de Abril e os anos que se seguiram a essa
época vieram destruir a grande qualidade da poesia que se
havia feito anteriormente?
NJ -
Não falarei em destruição, dado que esse pós-25 de Abril não
foi um deserto poético. Houve uma necessidade de adaptação às
novas condições da criação, libertas já de imposições não
tanto exteriores como interiores de censura; e não foi fácil
ir ao encontro de uma poética em que a verdade e a exigência
do ser se manifestassem abertamente. Um Al Berto terá sido o
primeiro a consegui-lo plenamente. O que sucede é que não
voltou a haver um sentido de «geração» - por muito discutível
que a palavra seja - como sucedeu na poesia portuguesa até aos
anos 60 e 70. As afirmações de poéticas são sobretudo
individuais e individualistas, o que torna mais difícil uma
proposta consequente de compreensão de uma emergência de novas
poéticas. Por outro lado, fenômenos de tribalismo e de seita
vêm complicar o êxito dessa compreensão, sendo irrisório o que
se tem passado com a crítica de poesia nos últimos anos num
jornal como o «Expresso», onde a venda de banha da cobra tem
livre curso sem qualquer pudor.
Zunái
- Na verdade, os jornais e revistas portugueses dão grande
espaço à crítica da ficção. Nalguns casos, até, bastante
duvidosa do ponto de vista da qualidade. Porém, nota-se uma
quase ausência da crítica da poesia nos mídia portugueses.
Concorda? E que razões podem ser encontradas para tal?
NJ -
Há uma boa crítica de poesia na revista Relâmpago, e em
publicações universitárias, para os happy few. É
verdade que nos jornais praticamente desapareceu - tal como a
crítica de ficção portuguesa: os romances recenseados, na sua
esmagadora maioria, são traduções, e são quase sempre obras de
nível muito menor as que são apresentadas, sobretudo quando se
trata de americanos, como obras-primas absolutas. A crítica
dominante está de cócoras perante a banalidade. As razões vêm
do comércio em que a edição literária se transformou, e que
privilegia a publicidade mais do que a compreensão. O que é
interessante é que os critérios que servem para levar aos
píncaros romances feitos na base do best-seller quando
feitos na língua não de Shakespeare mas dos bas-fonds
de Soho são os mesmos que servem para arrasar o mesmo produto
quando traz a marca nacional. Já disse na altura devida o que
tinha a dizer sobre o assunto, e devo dizer que o repito
porque já não tenho condição, como diria o Jô Soares, para ter
medo de ninguém.
Zunái
- Para mim, o Nuno Júdice é, antes de tudo, um poeta. Qual é a
sua opinião, enquanto leitor de poesia, do que se faz de
melhor em poesia, quer em Portugal, quer na Europa?
NJ -
Ultimamente tenho relido mais do lido, o que pode já conduzir
a uma resposta. Julgo que hoje a poesia mais interessante vem
da América Latina - de países como a Argentina, onde um
Diário de poesia é uma referência fundamental na teoria e
crítica poéticas, para além das traduções que publica, a
Colômbia (Piedad Bonnet), a Venezuela (Eugénio Montejo) - da
China, da língua árabe (posso referir Adonis), de países da
zona ex-soviética, onde ainda recentemente descobri alguns
notáveis poetas georgianos. Na Europa, sigo o que se vai
publicando em Espanha, na Irlanda e na Inglaterra, onde me
parece que vão surgindo linguagens novas e de qualidade. Em
Portugal, se essa qualidade também existe, não há vozes
emergentes com o sinal de uma ruptura e de uma inovação em
relação a poéticas anteriores. No entanto, os princípios de
século são sempre períodos complicados, como podemos ver no
princípio do século XIX e do século XX. Pode ser que a segunda
década deste século XXI nos traga outro Orpheu.
Zunái
- Sente-se tão à-vontade na poesia como na ficção e no
teatro? O trabalho, no seu ritmo e na sua respiração, pede-lhe
o mesmo?
NJ -
São trabalhos diferentes, e que exigem disposições diversas.
Claro que a poesia é o meu elemento natural; mas a ficção
tem-se vindo a impor como uma outra forma de expressão em que
encontro um outro universo, que é da minha memória, onde vou
buscar os materiais que me permitem construir um retrato do
país em que nasci, e dos tempos diversos que fui vivendo nas
décadas que vão do fim da ditadura à democracia. Mas é também
a sua história que me interessa, e alguns romances vão buscar
a esse passado o horizonte necessário para construir uma
ficção. No entanto, não enveredo nunca por uma ficção
histórica, académica; é sobretudo o presente, o mundo actual,
contemporâneo, que me interessa olhar e compreender.
Zunái
- Li com atenção O anjo da tempestade, que me fascinou.
Em parte, é um livro em que volta ao passado, mas a estrutura
da obra é absolutamente espiralada, diria barroca, quase.
Desassossega, faz o leitor saltar para espaços/tempos
completamente diferentes, em nada segue a ficção histórica
clássica. A todos os títulos, a técnica narrativa é original.
Deu-lhe prazer esse jogo com o leitor? Diverte-se enquanto
escreve? Ou gosta apenas de contar uma história?
NJ -
Este jogo começou com um livro de que gosto muito, que é
Por todos os séculos, e continuou com O enigma de
Salomé. É uma vertigem de épocas e de personagens que
saltam de um contexto para outro, do passado para o presente,
num movimento que vai ao encontro do que aprendi com a ficção
científica e as máquinas do tempo, embora estes livros nada
tenham a ver com esse género. O que me interessa é
transportar-me para o contacto com situações e sentimentos
vividos em séculos anteriores, e que procuro recriar numa
actualidade que lhes dá outra leitura e outra compreensão. É
isso que me diverte - e se não me divertisse não teria escrito
esses livros, dado que para mim a escrita é acima de tudo o
prazer da invenção.
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Leia também poemas (I
e II)
de Nuno Júdice.
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