A POESIA COMO JOGO,
CELEBRAÇÃO E MEMÓRIA:
UMA CONVERSA COM REYNALDO JIMÉNEZ
Foto: Gabriela Giusti
Por Claudio
Daniel
Zunái - Você
nasceu em Lima, no Peru, mas reside na Argentina desde a infância.
Quais são as recordações de tua terra
natal? O que significa viver e escrever em um país
estrangeiro?
RJ - Não
tenho lembranças definitivas sobre esse primeiro ano
e alguns meses de vida que passei em Lima, antes de viajar
para Nova York com meus pais (onde meu velho queria
estudar pintura), salvo a impregnação posterior
de fotografias espiadas cem mil vezes, como na reinvenção
de uma memória, mais que outra coisa. Sei que vivemos
em Los Angeles (no Peru, nota do editor), no que foi
um antigo hotel, ao lado do rio Rímac, que desce tempestuoso
dos Andes, perto de Chosica, e que Javier Sologuren, além
de ser primo de meu pai, era nosso vizinho (ali mantinha sua
gráfica e editora artesanal, La Rama Florida). Meus
pais me contaram de um almoço que aconteceu ali com
a presença de Allen Ginsberg, que, ao que parece, ante
meu choro insistente, me sentou em seu colo e me deu de comer:
iniciação simbólica. O que, sim, posso
confirmar, é que desde a adolescência viajei
várias vezes ao Peru, passando algumas temporadas com
minha família paterna; sobretudo, nunca deixei de estar
em contato com a poesia peruana, que me marcou e que conheço
bem. Inclusive a dos mais jovens. Hoje mesmo, participo, quando
as circunstâncias permitem, de suas publicações,
sobretudo em Lima. Conheço relativamente bem, por haver
caminhado nesses lugares, Cuzco (várias vezes), parte
da Amazônia (Iquitos), o norte trujillano (memórias
de Vallejo
), Arequipa, Huancayo e o vale do rio Mantaro
e outras belísimas zonas do Peru; sou devoto da paisagem
costeira, que César Moro retratou tão bem em
alguma de suas prosas: os enormes areais, dunas que são
colinas de areia junto ao deserto, e as praias mutáveis,
minimalistas, cheias de um sabor pré-natal, pré-mítico.
Diria que esse território está em minhas entrevisões,
que me acompanha com seu deslumbramento enigmático.
Viver em um país
estrangeiro (e fazendo água por todos os lados: embora
minha mãe seja argentina, ela e sua família
são provenientes da Europa Oriental, e sempre se sentiram
mais húngaros do que outra coisa. Seu falar era esdrúxulo;
nunca me foi ensinado, nem decifrei nada além da sonoridade,
que sem dúvida é uma marca de ouvido no que
escrevo) me colocou frente a frente com a noção
(formativa, em sentido autoritário) de Fronteira.
Assim como a noção
de Identidade, este é um dos tópicos básicos
que revisamos nas páginas da revista tsé_tsé,
pois da mão da poesia derivamos, muitas vezes, e em
atenção ao continente americano violentamente
atomizado até o mar de fundo de uma cultura adquirida
ou montada em panóptico. Nesse panorama,
o trabalho material sobre a língua adquire uma força
em sua própria escala transformadora.
No plano da língua, no entanto, esta situação
desterritorializada proporciona uma grande dinâmica
criativa, uma certa sensação de observação
e escuta contínua da estranheza, de não cessar
nunca de reconhecer-se. Estou muito interesado na gestação
de um castelhano mutante (poético) que
não se limite ao registro localista, aferrado à
verossimilhança das falas locais, autocentradas (geralmente
atadas ao projeto realista que, em especial no Rio da Prata,
vem sustentando-se desde os anos 60 em tanta poética
canônica). Isto acontece especificamente no básico:
no campo da sintaxe e da prosódia, da constante revisão
e estudo da tradição (do Século de Ouro
em diante), mas a partir de uma ampliação da
consciência (uma leitura sempre em vias de desaprendizagem)
em favor dos micropontos conotativos e das rítmicas
associativas.
Zunái
- O que é
a poesia, para você? Qual é o sentido de escrever
poemas numa época regida pelo culto ao mercado e aos
meios de comunicação?
RJ - A poesia é
minha vida. É o fogo sagrado que realiza o sentido
de tudo o que faço. Quase todos os meus amigos vieram
pela mão da poesia, em um sentido ou outro. Essa rede
humana, essa permanência na conversação
policentrada, múltipla, é precisamente parte
essencial de seu sentido: a multiplicação de
interlocutores, de pessoa a pessoa, de intimidade a intimidade,
diria. Nessa medida é que a poesia continua sendo realidade
inspiradora, não limitada a códigos epocais
originais ou defensivos zonais,
além dos quais apostam por estéticas à
la page segundo os critérios da crítica
teórica. Como também sou editor de revistas
e livros, e participo em diversos projetos editoriais desde
inícios dos anos 80, obviamente o mercado,
enquanto conjunto de regras de conduta, enquanto feitiçaria
(fantasma) do consenso, afeta minha atividade, como a de qualquer
um, embora em essência não toque a poesia. Ou
melhor, fortalece essa obstinada devoção. Mas
tampouco se trata de uma militância poética,
no sentido de uma mera resistência, já que considero
a poesia um fator sutil de sensibilização, capaz
de participar a seu modo e em sua dimensão (de todas
maneiras, não linear nem fixa) nas mudanças
de paradigma. Não escapa de mim a acusação,
tantas vezes nem velada, de que a poesia é uma arte
elitista ou para minorias; a isto anteponho a idéia
de que cada pessoa é real e intensa minoria, e que
a poesia não participa da construção
de nenhum consenso. Escrevi nos anos 80 (sempre nos
inícios) alguns textos panfletários (por
mais vanguardisticamente antiquado que possa soar) neste sentido,
e basicamente sustento, todavia, a possibilidade de seguir
lendo seguir aprendendo a ler o que a poesia
oferece. É, desde logo, da ordem do dom e não
do domínio: o que a torna, para mim, tão necessária.
A poesia fala ao ouvido interno, remete a uma intimidade em
qualquer nível, e sobretudo: ler poesia é ver-se
desmentido. A poesia é sincronicidade e articulação,
é colocar e colocar-se em relação, é
perder-se na desmemória ancestral que arrasta o fluxo
da linguagem, é buscar a palavra e perguntar-se novamente,
em ato contínuo, o para quê.
Zunái
- O que você
busca realizar com os teus poemas?
RJ - Cantar, celebrar.
Acompanhar. Precisar e participar, pela matéria verbal,
facetas semoventes do incondicionado. Indagar ressonâncias.
Jogar.
Zunái - Você
viajou para a Índia, e muitos de teus poemas fazem
referências à antiga cultura védica e
budista. O que o contato com a cultura oriental trouxe para
a tua vida e obra?
RJ - Desde os
quinze anos sou um devorador amateur de tudo o que
tem a ver com a Índia, não só o que se
refere às tradições espirituais, mas
também a todo tipo de aspectos de sua ampla e democrática
cultura. A leitura de livros de viagem, inclusive os guias
turísticos, confesso, me fascinam. As imagens
da Índia constituem um caleidoscópio de contrastes
e no fundo um decolar até a mandala que circula no
interior da experiência na terra. País mandálico
(percorrê-lo é aventurar-se nos detalhes) e ultraconcreto
(os sons da Índia, os odores da Índia, sua proliferação
por momentos angustiante, dolorosa, mas sempre surpreendente).
A Índia é inagarrável, pelo pouco que
pude constatar: sobrepõe e multiplica sem cessar todas
as épocas culturais e estratos ou estágios humanos,
animais, moleculares, sensoriais, simbólicos. Embora
na Índia também se assista à violenta
opereta destes tempos globalizados, desde logo o que mais
me interessa nela é a vertente de sua tradição
espiritual (desde a poesia devocional até as miniaturas
sobre papel, desde os templos-cavernas até o kitsch
das santerías na porta dos templos, desde o
raga até a leitura da arte como um yoga), que
por desgraça não é a veia mais visível
na atualidade mas que encarna nas figuras de seus mestres
espirituais, antigos e contemporâneos.
Zunái - Como
surgiu a revista tsé_tsé, editada por
você em Buenos Aires, junto com Carlos Riccardo e Gabriela
Giusti? Qual é a proposta da revista? O que significa
manter essa publicação em meio à grave
crise econômica do país?
RJ - A revista
surgiu, junto com Gabriela (pintora muito receptiva à
poesia), como parte de Lábio, uma experiência
primitiva: vínhamos fazendo pequenas edições
artesanais que tomávamos como ação
e com as quais logo presenteávamos, em vagas sucessivas,
a pessoas amigas ou escolhidas ao acaso em determinadas circunstâncias,
onde reproduzíamos textos ou fragmentos que nos interessavam
naquele momento. A ação era a gratuidade do
gesto, precisamente. Porém, isso se ampliou, por sua
própria força, na forma da revista propiamente
dita, que, em seus primeiros quatro números, foi totalmente
artesanal nós a imprimíamos na forma
de folhas soltas com a impressora laser e a encadernavamos,
durante dias inteiros, dentro de umas caixinhas feitas em
casa, chegando cada número apenas a uns 150 exemplares
mais ou menos. Porém, a qualidade do material e o constante
estímulo de amigos e poetas que nos apoiavam desde
diferentes lugares do continente levaram a um projeto mais
amplo ou ambicioso e, a partir do número 5 (em 1998,
precisamente de modo paralelo à até agora única
breve, insuficiente viagem à Índia
que fizemos, Gabriela e eu) decidimos convocar um conselho
editorial e editar mais exemplares, já em uma gráfica,
com simultânea embora sempre precária distribuição
em livrarias e outros locais de possível circulação.
Processo que se foi fazendo lentamente e que teve, com os
anos, diversas encarnações. Cada número
é uma aventura em si mesma, devido ao volume da revista
em si, como também pelo problema dos custos de edição
na Argentina, passando por múltiplos processos pessoais
e grupais. Não casualmente, por esses dias o
número 12 na gráfica , no início
do que poderia chamar-se uma terceira etapa de tsé_tsé,
incluindo uma mudança drástica de formato e
ao mesmo tempo uma acentuação mais rigorosa
do que a feita até agora de certas preocupações
recorrentes, voltamos à formação editorial
original, pois continuamos ambos com Carlos Riccardo, que
tem sido um dos apoiadores de tsé_tsé
desde o ciclo mais artesanal.
Zunái - Em
sua sétima edição, tsé_tsé
publicou a antologia Pindorama, 30 Poetas do Brasil,
uma das melhores (se não a melhor) mostra de nossa
poesia mais recente. Como você entrou em contato com
os autores brasileiros mais jovens e qual é a sua opinião
sobre nossa literatura contemporânea?
RJ - Grato por
tua opinião positiva sobre a mostra pindorâmica.
Creio que sua principal virtude é a estreita participação
(nas traduções, inclusive) da maioria dos poetas
ali representados. Também é certo que é
incompleta pelo meu desconhecimento pessoal, no momento em
que a configurei, de certas poéticas (faltam Waly Salomão,
Carlos Ávila, entre outros), mas não deixa de
ser um itinerário aberto, em relação
direta com a vontade editorial da revista. Não faltou,
com certeza, o poeta que escrevesse, exacerbado, reclamando
uma lista de autores a antologizar em substituição
a grande parte de minhas escolhas; recordo haver respondido
a ele que em nenhum momento propusemos uma antologia, mas
que seguíamos o critério de mostra,
quer dizer, de sublinhado e assumido caráter provisório,
e que, em todo caso, todos temos direito ao mapa de nossa
própria ignorância ao menos como gesto
fundador, como ato de partida em busca de um diálogo
que, me alegra constatá-lo, seguiu multiplicando-se
por estes anos desde o lado argentino. Por exemplo, apareceu
nos últimos meses, em Buenos Aires, a revista Grumo,
totalmente dedicada ao intercâmbio literário
entre Brasil e Argentina. Isto é muito importante,
uma vez que, por tradição, a Argentina permaneceu
refratária aos influxos literários (e de toda
índole) além de suas tão cacarejadas
fronteiras (a geografia enquanto traço que afirma o
preconceito e o temor à mescla exogéna).
Quanto a Pindorama
em si, se deu naturalmente, a partir de nosso interesse em
Paulo Leminski, de quem fizemos (com Ignacio Vázquez
e Carlos Riccardo, mais a participação de Elson
Fróes e Régis Bonvicino) um dossier no
número 6. Quando apresentamos esse número, nos
demos conta da sincronicidade em datas com o aniversário
de seu falecimento, coincidindo com múltiplas homenagens
a Leminski que nos chegavam do Brasil. Foi daí que
derivamos, a princípio pela Internet e já em
seguida pelo correio postal, ao conhecimento imediato
quase diria: urgente, dado o entusiasmo que nos suscitou esse
choque com uma plêiade de poéticas em ação
dos autores que aparecem na mostra. O conjunto me pareceu
tão surpreendente dada, em contraposição,
a pobreza inventiva da poesia argentina atual que considerei
necessário cobrir com a maior extensão possível
(100 páginas, 30 poetas) esse desconhecimento. Sem
dúvida creio que a poesia brasileira (com seu constante
compromisso expressivo com as outras artes), é uma
das maiores fontes de invenção poética
do continente americano: sua vitalidade reside, precisamente,
em sua assumida tradição antropofágica.
Desde os trabalhos de tradução, básicamente
dos poetas modernistas brasileiros, nos primeiros anos 80,
por Santiago Kovadloff e Rodolfo Alonso, não se havia
voltado a difundir panoramicamente a poesia brasileira, ao
menos em Buenos Aires (nesse sentido, é notável
a ignorância de boa parte dos poetas argentinos sobre
um movimento poético e teórico incontornável
dos anos 50 como o Concretismo).
A poesia brasileira me
interessa desde sempre, e tsé_tsé não
deixou, desde o número 5, de dedicar dossiers
especiais a poetas de língua brasileira
(Cabral, o mencionado Leminski, Piva, Glauco Mattoso, Wilson
Bueno, Bonvicino, Horácio Costa) e de publicar poetas
de diversas procedências e idades, inclusive fora da
mostra pindorâmica (algo que pensamos continuar fazendo,
já que o panorama brasileiro é multifacetado).
No sentido mais pessoal, este interesse pela poesia brasileira
atual tem proliferado em traduções que encarei,
sozinho ou em parceria, de autores que admiro (é uma
forma, também, de lê-los melhor),
como Josely Vianna Baptista ou Arnaldo Antunes, entre outros.
Quanto à literatura brasileira em geral, a conheço
tão mal quanto a argentina ou a peruana. Confesso minha
unilateralidade: só me interessa a poesia, que considero
nas margens da literatura, mas em absoluto limitada aos estritos
regimes e pactos de leitura desta.
Zunái
- Você
participou de Medusario, coletânea de poesia
neobarroca latino-americana organizada por José Kozer,
Roberto Echavarren e Jacobo Sefamí. O que significa,
para você, esse movimento? Trata-se de uma estética,
de uma visão de mundo ou de ambas as coisas?
RJ - A palavra-chave
e a espada de Dâmocles tem sido até
agora: Neobarroco. Há toda uma fundamentação
teórica que parte de Haroldo de Campos, passa por um
Gôngora lezamiano e Severo Sarduy, mais a contribuição
posterior de alguns teóricos italianos e franceses,
e infiltra-se na experimentação de poetas como
os reunidos em Medusario. Este livro prossegue a idéia
de mostra, precisamente, e neste sentido não
pretende, creio, a afirmação de uma escola (nada
mais distante que isso) ou uma estratégia para obter
não se sabe qual poder acadêmico ou de outro
signo, como várias vezes se acusou o neobarroco. Talvez
o problema esteja no prefixo, simplesmente. Também
é certo que no Rio da Prata, como bem assinalou várias
vezes Perlongher, existe uma tradição hostil
ao barroco, somada à incomprensão cultural estabelecida
a respeito do termo em si, facilmente detectável na
mera recorrência em quase qualquer dicionário
na entrada barroco: aí se desdobram os
preconceitos exatos da época. Não é este,
no entanto, o espaço para que me ponha a caracterizar
o que entendo por neobarroco, além dos eventos poéticos
que me interessam e com os quais sinto afinidade, como certos
poetas peruanos que releio constantemente (Emilio Adolfo Westphalen,
o já mencionado Moro, Martín Adán, Jorge
Eduardo Eielson, Carlos Germán Belli).
Realmente, desejo, a médio
prazo, conforme avanço em minhas leituras e conhecimento
de obras contemporâneas, armar uma espécie de
mostra panorâmica que contemple em sua praxis os vínculos
entre, por exemplo, neobarrocos e neoconcretos, sem menosprezar
a marca da tradição fundacional surrealizante
latino-americana e outras correntes poéticas. Algo
assim como uma ampliação talvez até
o excesso, não sei do aberto por livros como
Caribe Transplatino (Perlongher) ou Medusario.
Cito, de passagem, apenas alguns dos autores que incluiria
nesse volume de reunião de continuadores e ampliadores
(não meramente epígonos) desta heterodoxia,
que tem o neobarroco como uma fonte possibilitadora para a
invenção poética, integrada já
em sua essência, como parte de sua estrutura espiritual
(o que, insisto, não implica ater-se a uma linha formal,
ou a um formalismo de fundo fundamentalista, senão
a uma pluralidade tal é o signo que representa
esta época de uniformidades): Víctor Sosa (uruguaio),
Josely Vianna Baptista, Jussara Salazar, Régis Bonvicino,
Horácio Costa, Claudia Roquette-Pinto, Claudio Daniel,
Lenora de Barros, Arnaldo Antunes, João Bandeira, entre
os brasileiros; Vladimir Herrera, Carlos López Degregori,
Mario Montalbetti (entre os peruanos); os mexicanos Alfonso
Daquino, Gabriel Bernal Granados, Ana Rosa González
Matute; os chilenos Cecilia Vicuña, Andrés Ajens,
Elvira Hernández (sem esquecer desse grande esquecido
pela divulgação poética, Juan Luis Martínez);
os argentinos Liliana Ponce, Héctor Piccoli, Carlos
Riccardo, nákar Elliff-ce ou Mario Arteca; os cubanos
de Diáspora(s) (Rolando Sánchez Mejías,
Rogelio Saunders, Carlos Aguilera etc); os dominicanos León
Félix Batista e o recentemente falecido Carlos Rodríguez.
Há um mais ou menos longo etc. que agregar a essa lista
que agora comento de passagem, e que seguramente resultará
excessiva, justamente devido a sua (convulsiva) solidaridade
com o impacto múltiplo que nutre à atual escritura
poética, segundo vejo. Pois também se incluiriam
ali muitos autores que trabalham a escansão ou a respiração
do evento tonal mesclados ao que é oferecido pela narrativa,
ensaio, entrevista, diário ou pelo transbordamento
de letras em ligas metálicas com formas performáticas,
visuais ou musicais.
Justamente nestes dias
estamos recompilando com Adrián Cangi para reuni-las
em livro junto a outros testemunhos e textos dispersos
a dezena e meia de entrevistas feitas com Néstor Perlongher,
que com o próprio Kozer, Echavarren e outros integra
o núcleo básico da fase coletivamente autoconsciente
desta tendência, que não poderia catalogar-se
apenas como estilo: quando se publicarem as entrevistas,
ficará claro que Perlongher já sublinhava isto
em meados dos anos 80. (Nota: o livro citado, Papeles
insumisos, compilado por Adrián Cangi e pelo próprio
Jiménez, foi publicado em Buenos Aires, no ano de 2004,
pela Santiago Arcos Editor.) Não vejo no neobarroco,
ou o transplatino, um movimento organizado, imantado a uma
proposta específica, no sentido de operar sob palavras-de-ordem
comuns, mas uma experiência celebrante e sensual da
língua poética. Celebração que
não reprime ao contrário, estimula
a crítica semântica, a recuperação
etimológica ou o experimental. A vitalidade
ou, melhor ainda, a organicidade não programática
do neobarroco se demonstra pelo simples fato de que a maior
parte dos poetas reunidos em Medusario e outros não
incluídos ali mas afins (Lorenzo García Vega,
por exemplo, proveniente do grupo cubano da revista Orígenes,
que rodeava Lezama e manteve-se até agora como um perfeito
outsider do panorama legal das escrituras estabelecidas),
estavam, ao momento de constituir-se a mostra, trabalhando
sem conhecimento uns dos outros, ou quase. Embora seja certo
afirmar que, com o falecimento de Perlongher e o afastamento
da poética neobarroca de parte de alguns de seus representantes
mais destacados (o que estão escrevendo desde alguns
anos Arturo Carrera ou Tamara Kamenszain significaria um reingresso
à corrente mais consensual do coloquialismo rioplatense,
originando muito mais projetos de reconstrução
do referente que novas explorações do desconhecido),
como te comentava há pouco, o neobarroco ramificou
e convive, nas escrituras de muitos contemporâneos,
sob diversas fusões.
De todo modo, quero deixar
claro que penso muito no que denomino guerra entre as
estéticas, que me parece uma característica
retrógrada quanto à aproximação
às poéticas atuais, no geral mais concentradas
na exploração perceptiva e intelectual, artística
quer dizer: insegura, indeterminada que na fixação
de uma competência pela última palavra. Há
fatores de outra ordem em jogo, que pertencem à qualidade
da escuta, da atenção, e que estão aquém
das eventualidades técnicas ou estilísticas com
seus supostos biologemas.
Zunái - Quais
são os teus projetos atuais? Você acredita que
existe futuro para a poesia?
RJ - Continuar
editando a revista, que mantém vivo o entusiasmo próprio
de correr o risco. Seguir com a editora, que se tornou fonte
de trabalho; com os projetos performáticos que
venho encarando, com interrupções, desde os
80. Talvez publicar um volume compilatório que dê
certa perspectiva de um itinerário pessoal, já
que todos os livros que editei apareceram em pequenas tiragens
e portanto tenho a sensação de que quase ninguém
os leu (embora todo o tempo me questione se isto teria sentido,
daí certa indecisão a respeito). Também
gostaria de seguir estudando a imagem que tenho é
a da meditação na palavra. Por outro lado, não
sei se é possível falar do futuro. Creio que
o poema, se prestamos toda a atenção possível
a ele, coloca-se em um presente similar ao da contemplação
ou instância inspiradora. A poesia, no poema, é
uma entonação. Mergulha-nos no a-hora,
muito mais imediato inclusive que o dia de hoje.
Neste sentido, creio em uma intensidade límpida, translucidez
afetuosa, não torturada, que provém do lampejo
significante que atravessa o poema.
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