ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

GALERIA

ELIANA BORGES

AS LIBERDADES DE ELIANA BORGES

 

Isabel de Castro

 

A exposição Prisões consiste de seis trabalhos nomeados por Livro, Paredão, Fé (Telefone de Deus), Casa, Amor e Trabalho. Como Eliana mesma diz: partiram de interferências externas, as prisões que você cria para você mesma. Sim, esta foi a motivação, este é o tema, mas o que nos interessa é como Eliana nos mostra isso.

O primeiro trabalho é Livro, exposto numa prateleira suspensa, não chegando a ser um balanço, mas que gera instabilidade para um objeto que abriga a solidez e a credibilidade dos registros. Os próprios registros são carimbos de algarismos arábicos azuis em seqüência, até um erro ser notificado por um carimbo em forma de cata-vento vermelho, simbolizando o caos. Aleatoriamente, há flechas vermelhas que indicam direções para lugar nenhum. A gravura em relevo nos remete sempre a gestos primordiais, à necessidade humana da marca, mas o que nasceu para nos destacar, burocraticamente, nos anula. A repetição do ato de estampar números que não significam outra coisa a não ser a passagem do tempo, sem dúvida, banaliza a nossa passagem pela vida e ressalta que se não ocuparmos o lugar certo, seremos marcados. Embora tenhamos direções a seguir, se andarmos sempre para frente, sem olharmos para trás, não teremos uma memória a preservar, sem ela não aprendemos nada e, conseqüentemente, não teremos história alguma para contar. Ao folhearmos o Livro, sufocamos nosso olhar com números, que perderam seu início e seu fim, nos indicando a passagem do tempo de nossas vidas, que podem ser reescritas a qualquer momento.

A seu lado está Paredão, uma tapeçaria de tiros estampados. Os mesmos carimbos são empregados, mas em cores diferentes: preta e vermelha. Números, flechas e cata-ventos em camadas, que se sobrepõem. De novo, a relevância do gesto em relação à dimensão da superfície, 2 m X 2 m, figuras estampadas obsessivamente. Reiteração de atos. Estand(arte) de um surto de carimbos na horizontal, uma relação corpo-a-corpo com o a imagem.

Em Fé (Telefone de Deus), a forma do oratório é ressaltada, mas apenas um é montado como objeto com imagens e patuás de diversas religiões, os outros são recortados em papel de lista telefônica e carimbados com números de uma suposta rede de linhas. Contradição de como podemos lançar mão deste meio da fé, para o nosso conforto no sofrimento ou para o conforto de nossos fracassos, delegando a outro as nossas responsabilidades. Corte, colagem, carimbo, estampa, impressão, todos procedimentos do universo da reprodução de imagem. Focillon(1) descreve com muita propriedade o fazer artístico:

O espírito faz a mão, a mão faz o espírito. O gesto que não cria, o gesto sem amanhã, provoca e define o estado de consciência. O gesto que cria exerce uma ação contínua sobre a vida interior. A mão arranca o tato de sua passividade receptiva, ela o organiza para a experiência e para a ação. Ela ensina o homem a possuir extensão, o peso, a densidade, o número. Criando um universo original, deixa em todo ele sua marca. Mede forças com a matéria que transforma, com a forma que transfigura. Educadora do homem, ela o multiplica no espaço e no tempo. (1998, p.138-139)

Para Eliana, este fazer múltiplo reflete um olhar sempre questionador em todas as áreas da sua vida.

Casa é um conjunto de quatro peças, as peças da casa de todos nós, onde Eliana exercita seu humor e ironia. Sala de não estar é um retângulo de tecido matelassé com o contorno de um sofá de dois lugares. O sofá como o lugar de encontro, também pode ser o lugar da alienação. O lugar fofinho para se receber visitas vira um contorno transparente no cenário do lar, comentando a solução gráfica, o desenho, que nos mostra o vazio. Sala de jantar é um conjunto de três pratos de parafina com carimbos e três guardanapos, com impressões de talheres prensados em placas de parafina. Nos pratos há a presença de uma incômoda barata congelada no material translúcido, como Raul Seixas, Eliana incomoda. Banheiro é constituído de dois rolos de papel higiênico impressos com a figura do vaso sanitário em sua extensão, fixados em duas chapas de parafina carimbadas. O lugar da sujeira e da limpeza. Quarto é o lençol de casal e seus dois travesseiros, suspensos por correntes. O lençol tem as figuras masculina e feminina carimbadas, aqueles mesmos, como as evidências criminais e, nos travesseiros, um cata-vento em cada um. O que poderia ser a união entre duas pessoas, pode se tornar um assassinato ou um suicídio, ao mesmo o tempo, os corpos se mostram relaxados e desarmados.


O conjunto Amor nos mostra onze vidros de compota com tampas e um pedaço de couro tatuado com imagens de corações dentro de cada um. Tatuagens em conserva. Como conservar mais algo que já é para sempre? As múltiplas formas de amor que temos e dedicamos na vida e todas valem a pena. Par de corações, coração partido, coração com fita, coração com espinhos, fogo no coração. Quase cientista, mais taxidermista.


Por fim, Trabalho, de todos o mais maduro, por ser uma síntese de todos os procedimentos e, também, por aproximar arte e vida. Mas, antes, vamos à descrição das peças: são fotografias de seus colegas de trabalho, das funções subalternas às de chefia, marcados com carimbos na testa, nas três posições clássicas do fichamento policial, que receberam camadas de parafina e foram acondicionadas em embalagens plásticas. Eliana destaca a disponibilidade de todos os companheiros de trabalho em participarem da obra. Nos convida à identificação imediata, por nos ser o retrato 3X4 tão familiar, quanto a nossa digital. Nestes retratos impressos em diferentes gamas de cinzas na superfície translúcida da parafina, se vê o registro de cada pessoa que cumpre uma determinada função num determinado lugar. Ao colocar como evidência, esta função, Eliana nos chama atenção para o individual. Conservação da memória, construção de um memorial, onde as pessoas estão vivas no jogo social. Provas de suas existências. Mais do que a interpretação do dia-a-dia, é a construção de um novo universo concretizado por Eliana, que nos convida à reflexão. A parafina e a impressão de retratos já haviam sido utilizadas antes, na mostra Copyright by, realizada no Museu Alfredo Andersen, em 2001. Ocasião em que Eliana abordava a perda da inocência. Quase como uma extensão natural, as convenções sociais nos são lançadas, nesta mostra Prisões. Com uma montagem eficaz (mas não didática), somos tocados pela inquietude, de que na vida, tudo tem sua marca, seu preço a ser pago, para amadurecermos. O que necessariamente não precisa ser encarado de uma forma negativa ou pesada, o trabalho de Eliana nos lembra que temos escolhas e, que podemos dinamizar a criança dentro de nós.

Finalizo com as palavras de Campbell(2):

"...acredito que consciência e energia são a mesma coisa, de algum modo. Onde você vê, de fato, energia de vida, lá está a consciência" (1990, p.15).

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Isabel de Castro é artista plástica e mestre em artes pela ECA (USP). Atualmente, é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na Feevale.

(1) CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

(2) FOCILLON, H. O Elogio das Mãos. In: A vida das formas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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