ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

GALERIA

ELIDA TESSLER

UMA RECOLHA DE ENTRES, E GESTOS

 

por Manoel Ricardo de Lima [1]

 

A frase: mas perto não se fica a quem não se conhece as mãos. Frase que veio de uma outra – Algumas vezes é impossível ficar acordado, ou dormir [2] . E foi pensando numa brecha, numa dobra, numa interdição provocada por uma vinca, como as que são desenhadas por um rio denso, caudaloso, forte e de correnteza prenhe de impasses, como uma avenida de gente em abandono, espremidas por um leito de prédio e sombra, que muito lentamente poderia fixar incertezas de um  cotidiano: nem amor nem ódio, nem tristeza nem alegria, nem proximidade nem distância, nem gesto nem pausa, nem olhar nem cegueira, nem dentro nem fora. Era como dizer de um estar no mundo que passasse, simples, feito uma oração ao nada, mas uma oração, que apenas dissesse sem pedir ou oferecer: isso também é estar no mundo e isso pode ser um escopo para tornar a vida possível: o entre e os gestos, todos os que nos aumentam e nos diminuem, feito a vertigem do registro de uma passagem do tempo.

São essas coisas todas, e mais algumas, anotadas à revelia do que as mãos conseguem numa possibilidade de encontro, que também penso quando imagino o acordo entre a Elida e uma manicura de sua vizinhança da casa: na vida que se dá lenta e simultaneamente aos nossos olhos e como dizer dela é difícil, e como dizer dela pode  instar num tatear de vidros de esmalte endurecido, que não servem mais para fazer as mãos e que são – numa rotina – todos jogados fora. E aí, serenamente, a pergunta que se estabelece no acordo: Dá para fazer as mãos? Desta, o por onde surgem alguns dos outros pontos do acordo, objetos mas também e muito mais, gestos: o corte, a lixa, o polir e o pintar as unhas, o retirar das cutículas, o uso da base incolor. Tudo isso feito durante um procedimento de tempo, o que vem no interior da pergunta: “Dá tempo fazer as mãos?”.

Este fazer da pergunta, que seria estranho não fizesse parte do hábito de pintar as unhas, é que dá material para o trabalho da Elida: fazer a mão, as mãos que se fazem e entre as mãos, algum contato. Uma mesa de três metros de comprimento, com trinta centímetros de largura e um metro de altura, revestida com fórmica branca e vários, firmes, vidrinhos com restos de esmalte coloridos, que iriam compor o lixo da rua, dispostos sobre a mesa sem nenhuma arrumação prévia, pensada, organizada ou mesmo intuída, se não, e apenas, a partir do despojar da alma no gesto preciso e precioso da inteireza da mão.

Vistos de perto, os vidrinhos tomam vida e são pequenos esboços, marcas, vestígios, sobras de um sem-tempo, mas com uma duração que se registra na recolha, no colecionar à toa, no guardar objetos desprovidos de lugar e função – os imprestáveis – neste mundo de um a serviço de, sempre, um a serviço de. É uma afetividade que se dá a construir, um estar afetivo proposto pela tênue, mas fundamental, experiência da duração desta temporalidade de entres e de gestos mínimos: Elida, a manicura e os vidrinhos coloridos.

Bergson disse que os seres e as coisas não são senão duração, e que a duração é aquilo que há de mais íntimo em cada ser, em cada coisa. E talvez possamos, a partir do trabalho da Elida, pensar uma outra pergunta: como perdemos o tempo?. Adiante, se vistos de longe, os vidrinhos tomam o sentido de uma fratura no tempo, as perdas. Da busca incansável, mas muito em silêncio, de um específico, do que transita de um imediato agora para um imediato seguinte. São as nossas incertezas nesse cotidiano, na vida mesmo, nesses desmesurados estados de abandono que parecem dispostos ali, sobre a mesa de fórmica branca, em cor, endurecidos, vidro e tinta seca, num acordo atávico de mãos: uma recolha de entres, e de gestos. Como o mover numa folha de panurgo: uma escrita tão sutil que nada se vê escrito nela.


[1] Escritor, professor de Literatura Portuguesa, UFSC. Autor de As Mãos e Embrulho (editora 7Letras, RJ), Falas InacabadasObjetos e um Poema (com Elida Tessler – Tomo Editorial, RS), Entre Percurso e Vanguarda – alguma poesia de P. Leminski (Annablume, SP) e As Mãos / The Hands (trad. Sergio Bessa – Lumme Editor, SP).

[2] Frase de Jorge Viveiros de Castro retirada de uma pequena narrativa Noturno, publicada em De todas as únicas Maneiras & Outras (RJ; 7Letras, 2002).

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[REVISTA ZUNÁI- ANO III - Edição XII - MAIO 2007 ]