GALERIA
ELIDA
TESSLER
UMA
RECOLHA DE ENTRES, E GESTOS
por Manoel Ricardo de Lima
A frase: mas perto não se fica a quem não se conhece as
mãos. Frase que veio de uma outra – Algumas vezes é
impossível ficar acordado, ou dormir.
E foi pensando numa brecha, numa dobra, numa interdição provocada
por uma vinca, como as que são desenhadas por um rio denso,
caudaloso, forte e de correnteza prenhe de impasses, como
uma avenida de gente em abandono, espremidas por um leito
de prédio e sombra, que muito lentamente poderia fixar incertezas
de um cotidiano: nem amor nem ódio, nem tristeza nem
alegria, nem proximidade nem distância, nem gesto nem pausa,
nem olhar nem cegueira, nem dentro nem fora. Era como dizer
de um estar no mundo que passasse, simples, feito uma oração
ao nada, mas uma oração, que apenas dissesse sem pedir ou
oferecer: isso também é estar no mundo e isso pode ser um
escopo para tornar a vida possível: o entre e os gestos, todos
os que nos aumentam e nos diminuem, feito a vertigem do registro
de uma passagem do tempo.
São essas coisas todas, e mais algumas, anotadas à revelia do
que as mãos conseguem numa possibilidade de encontro, que
também penso quando imagino o acordo entre a Elida e
uma manicura de sua vizinhança da casa: na vida que se dá
lenta e simultaneamente aos nossos olhos e como dizer dela é
difícil, e como dizer dela pode instar num tatear de vidros
de esmalte endurecido, que não servem mais para fazer as mãos
e que são – numa rotina – todos jogados fora. E aí,
serenamente, a pergunta que se estabelece no acordo: Dá
para fazer as mãos? Desta, o por onde surgem alguns dos
outros pontos do acordo, objetos mas também e muito mais,
gestos: o corte, a lixa, o polir e o pintar as unhas, o
retirar das cutículas, o uso da base incolor. Tudo isso feito
durante um procedimento de tempo, o que vem no interior da
pergunta: “Dá tempo fazer as mãos?”.
Este fazer da pergunta, que seria estranho não fizesse
parte do hábito de pintar as unhas, é que dá material para o
trabalho da Elida: fazer a mão, as mãos que se fazem e
entre as mãos, algum contato. Uma mesa de três metros de
comprimento, com trinta centímetros de largura e um metro de
altura, revestida com fórmica branca e vários, firmes,
vidrinhos com restos de esmalte coloridos, que iriam compor o
lixo da rua, dispostos sobre a mesa sem nenhuma arrumação
prévia, pensada, organizada ou mesmo intuída, se não, e apenas,
a partir do despojar da alma no gesto preciso e precioso da
inteireza da mão.
Vistos de perto, os vidrinhos tomam vida e são pequenos
esboços, marcas, vestígios, sobras de um sem-tempo, mas com
uma duração que se registra na recolha, no colecionar à toa,
no guardar objetos desprovidos de lugar e função – os
imprestáveis – neste mundo de um a serviço de, sempre,
um a serviço de. É uma afetividade que se dá a
construir, um estar afetivo proposto pela tênue, mas
fundamental, experiência da duração desta temporalidade de
entres e de gestos mínimos: Elida, a manicura e os vidrinhos
coloridos.
Bergson disse que os seres e as coisas não são senão duração,
e que a duração é aquilo que há de mais íntimo em cada ser, em
cada coisa. E talvez possamos, a partir do trabalho da Elida,
pensar uma outra pergunta: como perdemos o tempo?.
Adiante, se vistos de longe, os vidrinhos tomam o sentido de
uma fratura no tempo, as perdas. Da busca incansável, mas
muito em silêncio, de um específico, do que transita de um
imediato agora para um imediato seguinte. São as nossas
incertezas nesse cotidiano, na vida mesmo, nesses desmesurados
estados de abandono que parecem dispostos ali, sobre a mesa de
fórmica branca, em cor, endurecidos, vidro e tinta seca, num
acordo atávico de mãos: uma recolha de entres, e de gestos.
Como o mover numa folha de panurgo: uma escrita tão sutil
que nada se vê escrito nela.
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