GALERIA
MARIA
ANGELA BISCAIA
MAPAS
IMAGINÁRIOS SOBRE PEDRA D'ÁGUA
Francisco
Faria e Josely Vianna Baptista
A visão
de Pedra d’água, o recente trabalho de Maria Angela
Biscaia que é a base para a construção imagética do livro
Mapas imaginários (Mirabilia, 2004), imediatamente nos traz à lembrança o episódio
da morte de Ofélia, tal como descrito pela Rainha Gertrude
no Hamlet de William Shakespeare. Talvez a artista
não tenha tido a intenção de aludir a essa passagem, mas é
curioso perceber como a arte, sendo uma linguagem de construção
universal, tece suas próprias teias, envolvendo um trabalho
e dando-lhe uma ambiência na qual seu reflexo se amplia e
consolida seus sentidos.
Por outro
lado, não seria casual se Pedra d’água tivesse emanado
de uma imagem dessa peça em que Shakespeare constrói uma profunda
reflexão sobre o equilíbrio entre o real e o imaginário. Pois
essa tragédia procede de um distúrbio desse equilíbrio, de
uma clivagem nesse balanço da atenção que se dá aos objetos
que nos são revelados pelos sentidos e àqueles que nos são
revelados por nossas meditações, nos meticulosos afazeres
da mente.
Índice
de uma outra clivagem, essa na vida contemporânea, em que
o virtual e o real se mesclam sem que possamos apontar onde
termina um e onde começa o outro,
Pedra d’água, o trabalho visual, ele mesmo,
articula-se por meio de sua própria clivagem – sucessivas
fragmentações de uma imagem produzida pelo movimento da observação
–, que causa um efeito visual mirífico, quase uma miragem.
Não é
sem motivo, também, que a imagem do corpo nu da artista, envolto
numa fina mortalha de tecido translúcido e num objeto diáfano,
seja aqui “afogado” não pelo encharcamento de pesadas vestes
palacianas como na Ofélia de Shakespeare, mas pelo “encharcamento”
das inúmeras imagens que se lhe sobrepõem e se multiplicam,
dele e por sobre ele, no empilhamento de sucessivas camadas
de acrílico transparente. Essa mudança de “vestes” (que passam
de pesadas convenções de época e de costumes para uma pesada
carga de multiplicação de sua auto-imagem, com a conseqüente
dificuldade de defini-la segundo um parâmetro) aponta para
uma consistência tão expressiva e simbólica quanto a da imagem
indicial, a da Ofélia de Shakespeare.
É surpreendente,
ainda, que as flores – flores também tão simbólicas e significantes
para a Ofélia shakespeariana, e que a levam à morte pelo encantamento,
quando ela, ao tentar pendurar sua grinalda de margaridas
e urtigas e outros flóridos rebentos púrpura num galho de
salgueiro que se quebra, cai numa ribeira cristalina, onde
se afoga entoando suaves canções antigas – também estejam
presentes em Pedra
d’água, evocando e finalmente criando, pelo acúmulo de
diferentes estratos, uma inequívoca atmosfera lisérgica, que
hoje nos leva novamente, por meio de outros reflexos, ao mundo
de recusas dos anos 60, ao ponto em que as utopias de uma
nova coletividade foram envoltas em sonhos que se afastaram
das “promessas” do capitalismo tecnológico e da Razão.
Esse instante
de várias epifanias que é Pedra d’água, múltiplos espaços
imantados pela visão, encontra em “Acerca do Instante e do
Espaço (ou do Ser entendido como transparência)”, poema de
Rogelio Saunders, um diálogo com a imagem verbal, por sua
vez tensionada pela margem visual. Os espaços se cruzam, sem
fronteiras. Pode ser uma pintura renascentista flamenga, ou
a mais inefável das mulheres de Shakespeare. Pode ser a luz,
espectral, mental, daquela pintura sonhada fora do tempo e
do espaço, afundando entre canções antigas, entre flores e
cristais, água e argila. Os sentidos trafegam nesse oco, nesse
vazio (e, pergunta Saunders, “esse corpo absolutamente vazio
/ não é, afinal, a imagem?”), que nos alcança no instante
em que apreendemos as lições da transparência. Lições meteorizadas, sem nenhuma
reverência à cronologia da História.
*
Josely Vianna Baptista, poeta e tradutora, publicou, entre outros títulos,
Ar (1991), Corpografia
(1992) e Outro (2001),
este último em colaboração com Arnaldo Antunes, com arte visual
de Maria Angela Biscaia.
Francisco Faria é artista plástico e ensaísta.
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