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FLORES DE CEREJEIRA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O HAIKAI NO BRASIL

 

 


IMAGEMORE Co., Ltd.

 

 

Gustavo Felicíssimo

 


O Kasato Maru, primeiro navio a aportar no Brasil com imigrantes japoneses, segunda a historiografia oficial em 18 de junho de 1908, trouxe consigo 165 famílias que vinham trabalhar nas fazendas de café no oeste paulista, mas não há registros que confirmem que tenham trazido para o Brasil a pedra fundamental do haikai em português.


É sabido que o haikai é uma forma poética tipicamente japonesa muito cultivada no mundo todo. O haijin (poeta que escreve haikai) mais conhecido é Matsuo Bashô (1644 – 1694), ou simplesmente Bashô. Foi ele quem codificou e estabeleceu os cânones do tradicional haikai japonês. Mas como veremos, a influência sofrida pelo primeiro escritor brasileiro a fazer referência ao haikai não foi de origem japonesa.


H. Masuda Goga[1] , haikaísta e pesquisador japonês radicado no Brasil, afirma que a primeira publicação sobre haikai na literatura brasileira ocorreu em 1919, no prefácio do livro Trovas Populares, onde Afrânio Peixoto, poeta, romancista, crítico literário, ensaísta e historiador baiano, natural de Lençóis, Chapada Diamantina, além de apresentar o haikai comenta[2] :


Os japoneses possuem uma forma elementar de arte, mais simples ainda que a nossa trova popular: é o haikai, palavra que nós ocidentais não sabemos traduzir senão com ênfase, é o epigrama lírico. São tercetos breves, versos de cinco, sete e cinco pés, ao todo dezessete sílabas. Nesses moldes vazam, entretanto, emoções, imagens, comparações, sugestões, suspiros, desejos, sonhos... de encanto intraduzível.


No citado texto Afrânio Peixoto faz referência direta ao escritor P. L. Couchoud[3] , por isso Goga toma por esclarecida a influência de origem francesa sobre o primeiro autor a fazer referência ao haikai no Brasil. Nele, Afrânio Peixoto ainda traz alguns exemplos para a melhor compreensão do leitor. Vejamos dois:


Deste lado só

Está batendo o pulso

O ramo floriu!


***

Pensei que nevava

Lírios... Minha branca amada

Vinha aparecendo...


A importância de Afrânio é tão grande para o nosso haikai que a capa de O Haicai no Brasil traz uma imagem sua, reproduzida por Marcos Morita, a partir de um retrato do autor baiano. Mas ela não cessa aí, pois Afrânio, como veremos mais adiante, também pode ser considerado o primeiro escritor brasileiro a publicar um livro de haikai.


Em que pese esses apontamentos históricos, não podemos deixar de reconhecer que o empenho de Guilherme de Almeida foi muito importante para se conseguir popularizar o haikai no Brasil. Seu ensaio Os meus haicais, publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 28 de fevereiro de 1937, onde o poeta procura defender sua formulação poética é bastante conhecido entre os estudiosos e cultores brasileiros de haikai. Propositalmente, em seu livro Poesia Vária[4] , um dos capítulos, o segundo, que é de haikai, traz o mesmo título do artigo.


Vale lembrar que para muitos estudiosos do haikai a forma proposta por Guilherme de Almeida, que veremos a seguir, é tratada por uma série de aspectos como parnasiana.


Para efeito de discussão e análise, o haikaísta e estudioso Paulo Franccheti afirma[5] que no Brasil o haikai só vai ter importância teórica para a reflexão sobre a nossa literatura a partir do movimento de Poesia Concreta. (...) quando Augusto de Campos utiliza o termo ideograma para definir o inovador processo de composição que caracteriza a nova poesia.


Como se pode perceber o haikai não foi assimilado pelo mundo literário brasileiro diretamente da literatura japonesa. Entretanto, sua forma original teve como introdutores os imigrantes japoneses. Transcrevemos abaixo algumas passagens relevantes do livro O haicai no Brasil, de Masuda Goda, onde o autor discorre com clareza sobre o assunto[6] . Diz ele:


essa introdução começou juntamente com a chegada da primeira leva de imigrantes. Temos o registro de que Shuhei Uetsuka (1876-1935) – encarregado de conduzir os primeiros imigrantes pelo hoje histórico Kasato Maru, chegado ao porto de Santos em 18 de junho de 1908 – foi um bom poeta de haiku. Ele usava o haimei[7] (nome literário de poeta de haiku) de Hyôkotsu.


Consta que Shuhei Uetsuka compôs o seguinte haiku momentos antes da atracação no Porto de Santos[8] :


A nau imigrante

chegando: vê-se lá do alto

a cascata seca[9] .


Goga ainda justifica o fato de o intercâmbio entre haikaístas japoneses e brasileiros não ter acontecido desde o primeiro momento da chegado dos imigrantes, dizendo:


Entretanto, os homens que migravam na condição de trabalhadores contratados levavam vida apertadíssima, não tinham tempo “sequer de pensar em haiku”. Era essa a realidade dos primeiros dos imigrantes. Posteriormente, quando a vida do imigrante começa a apresentar alguma folga, mais precisamente em 1926, ingressa no núcleo colonial Aliança, Estado de São Paulo, Kan-ichiro Kimura, cujo nome haicaístico era Keiseki ( 1867-1938) e no ano seguinte Kenjiro Sato, de nome haikaístico Nempuku (1898-1979). Eles lideraram o movimento de cultivo e de difusão do haiku tradicional, construindo os alicerces do atual “mundo haikuísta” da colônia que conta com cerca de mil aficcionados.


E na década de 30 começa o intercâmbio entre os discípulos destacados dos mestres citados e os haicaístas brasileiros.


Dessa maneira, através dos imigrantes japoneses, paralelamente ao caminho ocidental, é aberto um novo caminho por onde ingressam informações acerca do haikai no Brasil.



As quatro formas de haikai praticadas no Brasil


As transformações havidas no Japão e no mundo ampliaram o horizonte do haikai, tornando sua estrutura adaptável. Como veremos, o haikai foi utilizado à maneira que melhor se adequou à necessidade de cada autor e lugar.


Todavia, teorizar demais sobre o haikai é ao mesmo tempo perdê-lo, sendo suficiente dizer que a ele devemos nos amalgamar, como se acompanhássemos naturalmente o fluir do tempo, o curso de um rio que se transforma em algo diverso quando encontra o mar. Assim também é o haikai quando buscamos capturar um instante, uma ação, e representá-la com palavras. Entretanto se faz necessário registrar as formas de haikai produzidas no Brasil ao longo do tempo, que são quatro no total.

 


O modelo trazido por Afrânio Peixoto


Para Carlos Verçosa[10] , autor de Oku: viajando com Bashô[11] , coube a Afrânio Peixoto não apenas o mérito pioneiro de introduzir e divulgar o haikai no Brasil, em 1919, apresentando o haikai como “epigrama lírico”, em Trovas Brasileiras. Peixoto também teria sido o nosso primeiro poeta a publicar um livro de haikai.


Em Missangas[12] , no capítulo X[13] , após o ensaio O haikai japonês ou epigrama lírico, Peixoto traz 52 haikais de sua autoria. Diz Verçosa que se trata de um autêntico livro inserido em um outro livro. Desse modo, o poeta baiano não só pode ser considerado o precursor do haikai no Brasil, como também o primeiro poeta a publicar um livro de haikai no nosso país. São 52 haikais com título e métrica (5/7/5 sílabas), como os que seguem:



COMO OS CÃES DA RUA


Na lata de lixo,

Coitadinho, procurava

Um naco de pão...



COMPARAÇÃO

Um aeroplano

Em busca de combustível...

Oh! é um mosquito.



A BELEZA ETERNA


O sabiá canta,

Sempre uma mesma canção:

O belo não cansa.



O haikai guilhermino


Guilherme de Almeida, no início do período de desenvolvimento do haikai no Brasil, procurando nacionalizá-lo, dotou-o de uma estrutura formal rígida. Além do título e da métrica que já haviam, ele utiliza a rima. No esquema proposto o primeiro verso rima com o terceiro, ambos possuem cinco sílabas métricas. No segundo verso, que possui sete sílabas, há uma rima interna que acontece entre a segunda e a sétima sílaba, como nestes:


VENTO DE MAIO


Risco branco e teso

que eu traço a giz, quando passo.

Meu cigarro aceso.


CARIDADE

Desfolha-se a rosa:

parece até que floresce

o chão cor-de-rosa.


O HAIKAI


Lava, escorre, agita

a areia. E enfim, na bateia,

fica uma pepita.

 


O haikai de origem japonesa ou tradicional


Podemos definir o haikai japonês, tradicional, como aquele que melhor valoriza os elementos da natureza, que nega o ego humano e procura registrar um acontecimento particular, uma paisagem, referindo-se ao seu agora, de forma simples e com sentido completo. Tudo em apenas três versos, sem título ou rima.


Neste modo de composição deve-se introduzir no haikai um kigo, que nada mais é que um termo (nome de animal, mês, planta) que o escritor inclui para dar ao leitor uma noção da estação do ano em que foi escrito. Nele há um sentido de transitoriedade que simbolicamente reconhecemos no transcurso do tempo. Assim, entre muitos exemplos possíveis, um haikai de primavera deve conter termos como os que indiquem alegria, flores, renovação; os de verão calor, animação, liberdade; os de outono; melancolia, nostalgia, colheita; e inverno, festa junina, reclusão, frio.


Há muita diferença entre o haikai tradicional e o poema como entendemos no ocidente. Um dos motivos, aponta Sato Hiroaki, se deve por sua frequente inabilidade de se sustentar sozinho como algo completo[14] . Talvez por isso não seja raro encontrarmos textos que afirmam não ser o haikai um poema em si, ou que para sua prática não é sequer necessário ser poeta.


Bons exemplos para este exemplo são os haikais de Teruko Oda. Vejamos alguns[15] :

Na beira da estrada

com as abelhas divido

meu caldo de cana.


Chega com o vento

um insistente chamado –

Cigarra de outono.


Um quê de leveza

no roçado ainda seco –

Canta o curió.



Contracultura e haikai


A vertente mais nova do haikai é aquela que coincidentemente mais foi divulgada e cultuada entre nós a partir dos anos 60. Deve-se muito a Millôr Fernandes o seu desenvolvimento a partir das suas tiradas humorísticas nas revistas O Cruzeiro, primeiramente, e depois na Veja. Millôr deu um ar descontraído ao haikai, aproximando-o do poema-piada, eliminando a métrica, título e referências às estações do ano, contribuindo para o aparecimento de jovens poetas. Esse formato foi muito difundido no mundo, inclusive no Japão. Este formato é também conhecido por Senryu por tratar de questões unicamente humanas, em tom irônico ou satírico.


Em seu livro Hai kais[16] , em breve introdução à obra, Millôr afirma ver o haikai como uma forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística. E assim compôs e publicou-os acompanhados por ilustração que acentua o sentido cômico dos seus versos.


Também não se pode descartar a importância de poetas concretistas como Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari que a partir da segunda metade do século passado buscaram traduzir ou transcrever o haikai japonês para o nosso idioma.


Entretanto, quando falamos de haikai no Brasil, o nome de Paulo Leminski surge invariavelmente em primeiro plano. Sabe-se que já no início da década de 60 ele começou a estudar japonês, cujo interesse teria surgido na academia de judô em que treinava. Alinhado aos valores contraculturais e libertários dos anos sessenta, Leminski produziu uma obra tensa, densa e provocadora como sua própria personalidade. E como Millôr, também produziu uma obra livre de amarras, cheia de sacadas, clicks, como ele dizia. São de sua lavra os seguintes haikais[17] :


passa e volta

a cada gole

uma revolta


***

esta vida é uma viagem

pena eu estar

só de passagem


***

nu como um grego

ouço um músico negro

e me desagrego



O título no haikai


Para finalizar, vale ressaltar que aderimos ao pensamento de Paulo Franchetti quando afirma em estudo[18] que os haikais com título parecem fracassar como haicais não pela rima, nem pela métrica, mas pela atitude que se explica quando os lemos com o título. Para exemplificarmos a questão recorremos a uma interpretação de Cid Seixas[19] sobre o assunto. Na página 31 do livro Gravuras ao Vento[20] , de Oldegar Franco Vieira, há um haikai que nos permite dois níveis de interpretação. Vejamos:


Não mais florescentes,

no lixo largadas, são

flores – defloradas.


Em “Triste Bahia, Oh! Quão dessemelhante[21] ” o crítico observa que na suave tradição oriental de cantar a natureza, este haicai fala apenas em flores arrancadas do jardim que, depois de ornamentar a casa, jazem no lixo, despidas da sua beleza natural. Num outro plano, social, evocando a miséria da nossa terra, ou (universalmente) de qualquer lugar, o poeta em sua síntese retrata o destino das meninas prostituídas. Apesar da sua idade primaveril “não mais florescentes”, mas habitando a boca do lixo da cidade, onde tristes são defloradas.


Dando um título ao haikai tomado como exemplo, o poeta acabaria por determinar o seu entendimento, fazendo com que seu poema perdesse aquilo que no Japão é chamado de haimi, a combinação de elementos como espontaneidade, mistério e leveza, tão necessários ao haikai tradicional.



Considerações finais


Esse texto serve como prólogo para o nosso estudo sobre o haikai na Bahia, Dendê no Haikai, que em breve será publicado pela editora Via Litterarm. Como nosso objetivo é focar atenção maior no haikai produzido na Bahia, sugerimos, para quem quiser maiores informações sobre o haikai no Brasil, consultar os seguintes livros: “Oku – viajando com Bashô”, de Carlos Verçosa, Salvador, 1996 - Secretaria de Cultura e Turismo do Governo do Estado da Bahia - 570 páginas; “HAIKAI”, Paulo Franchetti (org.), Campinas, 1990 - Editora da UNICAMP, 244 páginas; “NATUREZA - BERÇO DO HAICAI”, de H. Masuda Goga e Teruko Oda, São Paulo, 1996 - Empresa Jornalística Diário Nip

 

 

NOTAS:


[1] Autor de O haicai no Brasil, Editora Oriento, 1988
[2] A edição que possuímos é de 1947. Editado por W. M. Jackson, Inc. Editores. O referido texto se encontra entre as páginas 13 e 14.
[3] Autor de “Sages ET Poètes d’Asie”, Paris, 1918
[4] 3ª edição, editora Cultrix, 1977
[5] Haikai, 3ª Edição, Editora da Unicamp, 1996.
[6] O haicai no Brasil, H. Masuda Goga, Editra Oriento, São Paulo, 1988, páginas 30 a 34.
[7] Equivalente ao nosso pseudônimo.
[8] Segundo Shoichi Kodama (1950 apud GOGA, 1988, p. 33)
[9] Trad. Por Masuda Goga
[10] Escritor paranaense radicado na Bahia há mais de 30 anos.
[11] Secretaria de Cultura e turismo do Governo do Estado da Bahia, 1996. Uma das mais importantes obras sobre o haikai no Brasil.
[12] Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1931.
[13] Idem. p. 233 a 248.
[14] Segundo o autor (Franchetti, 1996 apud Observations on Haiku (publicado em Chanoyu – Quaterly (Tea and the Arts of Japan), nº 18, 1977, PP.21-27.
[15] Retirados do livro Flauta de Vento, Escrituras, São Paulo, 2005.
[16] Editora Senzala, 1968
[17] Melhores poemas de Paulo Leminski, Seleção de Fred Góes e Álvaro Martins, 7ª edição, Editora Gaia, 2006
[18] Franchetti, Paulo. O Haicai no Brasil. Alea, Dez 2008, vol.10, no.2, p.256-269.
[19] Crítico literário e poeta baiano.
[20] Massao Ohno Editor, São Paulo, 1994.
[21] Notas sobre a literatura da Bahia, Salvador, EBGE, 1996.

 

 

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Gustavo Felicíssimo. Poeta e ensaísta. Natural de Marília, está radicado na Bahia desde 1993. Trabalha como preparador de textos para editoras e escritores. Publicou, entre outros, o livro Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna. Venceu o Prêmio Bahia de Todas as Letras, edição 2009, em duas categorias: Literatura de Cordel e Poesia.

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