ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

POESIA E CINEMA: ANOTAÇÕES DE BLOG

 

 

 

Claudio Daniel

 

 

03/02/08

 

Meu caro, se eu não fosse poeta, com certeza seria cineasta ou assassino. Sempre chego a esta conclusão quando revejo Terra em Transe, do Glauber Rocha, ou Acossado, de Godard, ou O Sétimo Selo, de Bergman, ou M, O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang, ou... a lista seria longa. Acho fascinante a possibilidade de combinar palavras, imagens, sons e movimento numa única estrutura... coordenar cada seqüência, nos mínimos detalhes, pensando no efeito do conjunto... filmar um objeto de diferentes ângulos... criar metáforas visuais... intercalar ritmos e pausas na narrativa, como se fosse uma composição musical... Gostaria de escrever um livro de poemas que tivesse concepção similar à da linguagem cinematográfica.  Aliás, reli outro dia a biografia de Maiakovski, escrita por Fernando Peixoto, e lá na página 86 encontrei esta frase do poeta russo: "Para vocês, o cinema é um espetáculo. Para mim, é quase uma concepção do mundo". O autor de A Plenos Pulmões escreveu um artigo em 1922 onde exaltou o cinema como "veículo do movimento, o inovador das literaturas, um esporte, o divulgador de idéias, o destruidor da estética", acreditando que a nova arte libertaria também o teatro do realismo de Gorki e Tchecov. Nessa época, claro, Eisenstein fazia experiências com a montagem, inspirado pelos ideogramas chineses, e o resultado foram algumas das cenas mais impactantes da história do cinema, em filmes como Outubro, O Encouraçado Potemkin, Que Viva México

 

Alguns de meus amigos escreveram poemas que dialogam com as técnicas cinematográficas. Ademir Assunção, por exemplo, publicou em 1998 um livro de poemas em prosa com o título de Cinemitologias. No prefácio, ele diz o seguinte: "O que busquei nesta pequena aventura literária foi um fluxo vertiginoso de imagens, como os processos oníricos, reciclados e transformados em linguagem escrita. Como um cinema do inconsciente. Glauber Rocha comparava a estrutura de montagem da linguagem cinematográfica com a estrutura dos sonhos.Os surrealistas chegaram a produzir vários filmes influenciados diretamente por sonhos, como Um Chien Andalou, de Salvador Dali e Luís Buñuel. Cinemitologias nada tem a ver, no entanto, com automatismos de escrita. Em meu trabalho, procurei sempre desautomatizar a escrita". Outro comparsa, Ricardo Corona, publicou em 1999 um livro de poemas chamado Cinemaginário. No texto de "orelha", um estudioso americano, David William Foster, diz o seguinte: "O repertório léxico / semântico deste livro é, indubitavelmente, o tema do olhar: como olhar o mundo, como ser olhado pelo mundo, ao mesmo tempo que imaginamos o mundo sendo olhado por nós, e como transmitir verbalmente o processo do olhar. O olho edita imagens (cinema), fragmentando-as, vertendo-as: o poema é a visão do olho-câmera da imaginação".

 

Voltarei ao assunto (que dá pano para manga), sem deixar de mencionar as razões (ou sem-razões) porque eu seria, além de cineasta, assassino. 


 

04/02/08

 

O que há de fascinante no crime, em minha opinião, é seu caráter imaginativo, ou seja, a maneira original de execução da vítima; pouco interesse há nas motivações ou em quaisquer circunstâncias acidentais. Porém, voltemos a falar de poesia e cinema. Quando li pela primeira vez as Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, ficou claro para mim como a escrita poderia incorporar os recursos da linguagem cinematográfica: a justaposição de palavras funcionava como a montagem, as elipses, como cortes de cena, as metonímias como closes, descrições fragmentárias como seqüências, a própria estrutura rítmica do texto (acentuada pelo "estilo telegráfico", que omitia preposições, conjunções etc.) simulava a velocidade narrativa do filme. Como recriar, porém, os claro-escuros e a geometria irregular de O Gabinete do Dr. Caligari, ou a fotografia escultórica dos filmes de Bergman? A linguagem verbal não pode dar conta de tudo, mas a combinação de palavras breves e longas, a variação de sílabas fracas e fortes, a concisão imagética e a fragmentação podem criar um "clima" sugestivo, próximo ao do expressionismo fílmico. A poesia de Rilke, por exemplo (os "poemas-coisas" traduzidos por José Paulo Paes e Augusto de Campos) têm elementos cinematográficos. Cesário Verde, em suas descrições de cenas urbanas (Contrariedades, Sentimento dum Ocidental etc.), é puro "cinema em prosa", para roubar a frase de Pound. Drummond, em seus momentos de acerto. E sobretudo Oswald de Andrade, a poesia pau-brasil ("-  Qué apanhá sordado? / - O quê? - Qué apanhá? / - Pernas e cabeças na calçada", diz o poema o capoeira). Entre os poetas mais jovens, Virna Teixeira tem realizado coisas interessantes nesse campo, como este breve e notável poema composto de apenas onze palavras (sendo três artigos): "pequeno, o / frágil / corpo / soluça / vermelha, / a flor / entre os / dedos". A temática urbana é especialmente adequada ao diálogo com o cinema, arte da era industrial. Porém, acredito que ainda há muito mais para se investigar nessa relação entre palavra e imagem, que está longe de ter esgotado suas possibilidades criativas. Bem, essa conversa ainda vai longe, caro Claudio, sendo assim, voltarei a escrever mañana. Abraço do

 

 

 

05/02/08

 

Caro Claudio, refletindo sobre as diferentes modalidades de assassinato, cheguei à conclusão de que o uso de um processo bem conhecido e assimilado, de maneira mecânica e rotineira (por exemplo, a morte por asfixia ou pela incisão com objetos perfurocortantes), priva o ato violento da informação nova que poderia transformá-lo em arte. Emergir o corpo anestesiado da vítima num tanque de madrepérola com tubarões vindos do mar  da ilha de Java seria um crime barroco; estrangulá-la  com luvas de ferro de uma armadura romena do século 18 seria um crime gótico, com laivos simbolistas; dar-lhe dois tiros de revólver na testa ou vinte e duas facadas no estômago seria um prosaísmo intolerável, adequado talvez a um criminoso que gostasse de ler Bandeira e Drummond, ou ainda a um estudante de Letras da USP que seguisse com cego fanatismo o método sociológico de Antonio Candido. Para o nosso gosto refinado, no entanto, tal crime não mereceria a menor consideração, e o assassino que o cometesse receberia apenas o nosso profundo desprezo. Mas voltemos a conversar sobre cinema! No livro Reflexões de um cineasta, Sergei Eisenstein diz o seguinte:  

 

"A montagem cinematográfica é apenas uma aplicação particular do princípio geral da montagem, princípio que, assim compreendido, ultrapassa de longe os limites da simples junção de fragmentos de películas. Quadros semelhantes, conseqüência de uma seleção rigorosa e reduzidos ao laconismo-limite de dois ou três detalhes, encontraremos em profusão nos melhores exemplos da literatura. (...) Tomemos a Poltava, de Pushkin, e detenhamo-nos na cena do suplício de Kotchubei. (...) Dificilmente encontrar-se-ia um conjunto de detalhes mais fortes para oferecer, em todo o seu horror, a sensação da imagem da morte. (...) E aí atinge uma incrível realidade na descrição, graças à sutil combinação de aspectos variados (quer dizer de ângulos de tomadas de cena) e de elementos diversos (isto é, de fragmentos de objetos que o enquadramento faz ressaltar). O personagem surge no verso pushkiniano com um relevo quase palpável. (...) O ritmo de sua montagem, fundado na alternância de frases longas e de outras reduzidas a uma palavra, inclui então, além do mais, a característica dinâmica do personagem. (...) O ritmo e a característica dos gestos são aqui 'cortados', reduzidos a frases curtas que se chocam. (...) E, depois, porque a própria ordem das palavras define, com uma exatidão total, a ordem em que se encadeia a visão dos elementos que se conjugam finalmente na imagem do personagem, que o 'isolam' plasticamente. (...) A obra de Maiakovski constitui, como vemos, uma notável lição de coisas com referência à montagem. Mas a de Pushkin apresenta ainda mais interesse, levando-se em conta que naquela época não se cogitava ainda dessa questão de montagem. (...) Em resumo, nas combinações de imagens, de sons ou de imagens-sons, assim como na criação de um personagem e de uma situação ou na evocação 'mágica' de um herói literário, quer se trate de Pushkin, quer de Maiakovski, em toda parte encontramos o método da montagem. Qual a conclusão que tiramos daí? Que não existe contradição entre o método do poeta, o método do ator materializando esse poeta dentro de si mesmo, o método do mesmo ator interpretando dentro de uma seqüência e o método pelo qual seus gestos e suas atitudes (...) vão espelhar, brilhar (...) graças aos processos de montagem e, em geral, de composição do filme."

 

 

 

06/02/08

 

(Após o assassinato brutal do conhecido crítico literário):

 

Mon cher, tirei da gaveta uma resenha do livro Zona Branca, do Ademir Assunção, que publiquei há uns seis anos no Jornal da Tarde; creio que o texto é relevante à nossa discussão sobre poesia e cinema. Segue abaixo um fragmento da matéria:

 

"Os poemas iniciais de Zona Branca são inspirados em sonhos e filmes, com referências simbólicas de um imaginário povoado por obsessões eróticas e divindades indígenas e africanas. O autor utiliza, de maneira pessoal e criativa, recursos do cinema para a construção dos versos, como as técnicas de planos e closes. Assim, por exemplo, em O Sacrifício, uma das peças mais belas do volume: 'doce aroma de tâmaras / apodrecidas / : borboletas de vidro / asas-navalha / no ar pesado / da câmara mortuária'. Aqui, a elipse funciona como um corte de câmera, e a aglutinação de substantivos, como montagem. A visualidade é reforçada, também, pela espacialização das palavras na página.  Apesar do forte apelo visual, por vezes até com certo brutalismo nas imagens ('unicórnio / de chifre amputado', 'musas sádicas me acariciam / com unhas de gilete', 'strippers que após a roupa / arrancam a própria pele'), a poesia de Ademir, desde o seu livro de estréia, LSD Nô, caracteriza-se por uma configuração sonora que mistura elementos da canção popular e da fala coloquial urbana, sem cair nas armadilhas da dicção publicitária. É uma ópera-rock de ruas e avenidas, de neons e fios de alta tensão, de flashes imprevistos, precisos e cortantes como a lâmina da navalha. A fabulação está presente em pequenas narrativas, que mesclam a agilidade do videoclipe e da história em quadrinhos à densidade e força expressiva de sua própria mitologia." 

 

 

07/02/08

 

Caro Claudio, antes de fazer uma viagem súbita à Austrália, envio a você algumas passagens do ensaio Poesia à Flor da Tela, de Maria Esther Maciel, que aliás foi publicado na Zunái (e depois incluído no brilhante volume de ensaios A Memória das Coisas, publicado em 2004 pela Lamparina). Besos, CD.

 

"Descontente com a relação mimética que o cinema de seu tempo mantinha com as estórias que o século XIX fartara-se de contar, Luis Buñuel - em conferência proferida no México em 1958 - defendeu a prática de um cinema que se configurasse como instrumento de poesia. Um cinema no qual as imagens do desejo, os desvios da ordem cronológica, os espaços do sonho, o caráter insólito das coisas ordinárias encontrassem a expressão concreta de sua liberdade. O próprio Buñuel, algumas décadas antes, já havia exercitado esses princípios em filmes como O Cão Andaluz e A Idade de Ouro, considerados por Octavio Paz, em ensaio de 1951, como aqueles que 'assinalam a primeira irrupção deliberada da poesia na arte cinematográfica' .

 

Inegável que Buñuel, ao conjugar poesia e cinema, lançava, à feição do próprio Paz, um olhar surrealista sobre essa conjunção. Um olhar que, resguardadas suas próprias configurações, não deixava também de trazer ressonâncias dos insights teóricos sobre cinema que, nas primeiras décadas do século XX, Jean Epstein fizera sobre a mesma questão. Epstein, que além de cineasta exercia o ofício de poeta, privilegiou o primeiro plano como a 'alma do cinema', defendendo a proximidade íntima da câmera com o detalhe, de modo a captar suas intensidades imprevistas. Além disso, valorizou as noções de fotogenia e ritmo, considerando que tanto a plasticidade das imagens quanto o movimento da câmera são capazes de extrair das coisas do mundo significados recônditos que sua existência prosaica retém. O poético se manifestaria, assim, no ponto em que o discurso fílmico, decompondo 'um fato em seus elementos fotogênicos', libertar-se-ia da lógica da seqüencialidade do relato e, através dos recursos técnicos de que se constitui, revelaria a essencialidade de um gesto, de um objeto, de um sentimento.

 

Outro cineasta a abordar a questão foi Pasolini que, no manifesto O cinema de poesia,  valeu-se de uma terminologia da semiótica para tratar do que chama de in-signos (segundo ele, próprios da linguagem dos sonhos, da memória e da poesia) como elementos também inerentes à linguagem cinematográfica. Acreditando que 'a língua do cinema é fundamentalmente uma língua da poesia', marcou a importância do que chamou de 'lógica pré-gramatical' das imagens na criação de uma sintaxe fílmica. Dessa forma, contrapõe o 'cinema de poesia' ao 'cinema da prosa', este tributário do texto narrativo, cujo instrumental advém da linguagem dicionarizada e com uma função basicamente comunicativa, referencial, ao contrário do outro cinema, mais metafórico, afinado com o modo de operação da 'lógica' poética e, por isso, mais coerente com sua própria especificidade sígnica."

 

 

(Extraído do blog http://cantarapeledelontra.zip.net)

 

 

 

Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos, o livro Figuras Metálicas: Travessia Poética 1983-2003 (Perspectiva, 2004)

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