CLAUDIO
TRINDADE
POEMAS-OBJETO
Por
Felipe Lins
Um
teclado de computador cujas teclas dão lugar a parafusos com
porcas borboletas. Trata-se de algo que um John Cage pós-pianista
chamaria de "teclado preparado". Intitulado "110 + ou - (Esc)",
este poema-objeto de Cláudio Trindade transforma todas as
110 teclas naquela a que o interior dos parênteses do título
se refere, virtualizando as letras que a compõem (bem como,
por extensão, as letras, números e grafismos das 109 demais)
e concretizando seu sentido à medida que torna inoperante
qualquer digitação pós-esc. E, para compreender isso para
o qual aparentemente falta intuição, nem é preciso ir muito
longe, pois já sabemos, desde nossa própria experiência digital,
que quando esc é tocada, um evento irreversível imediatamente
advém: o teclado sai intransitivo, abandona sua função, decretando,
tal como Beckett, o fim da partida, ou tão-somente sua própria
partida, e passa assim a ostentar de maneira blanchotiana
sua não-relação em relação àquele que até então com ele se
relacionava (ou melhor, acreditava se relacionar). É o que
ocorre com o poema-objeto em questão. Mas nesse caso específico,
é como se o olhar do espectador - cujo olho, tomando o lugar
do dedo, torna-se o responsável pelo toque -, no instante
mesmo em que toca o teclado, tocasse inevitavelmente uma tecla
esc originária, que nunca terá sido vista, dado que ela é
a condição do próprio olhar. Aquela velha e boa sentença:
não se vê o ver. Aliás, diga-se de passagem, "110 + ou - (Esc)"
é muito parecido com Bartleby; tem-se a impressão de que ele
está enunciando repetidamente: "eu preferiria não".
O
que mais intriga no teclado de Cláudio é o fato de que foi
preciso suprimir suas letras para que ele deixasse de ser
um objeto eventualmente construtor de poemas para se tornar
- por meio de bizarros seres híbridos (porcas-borboletas)
que não constam em nenhuma mitologia até então conhecida -
um poema-objeto, sendo imediatamente reconhecido como tal,
isto é, como um ser híbrido, materializando, afirmando na
concretude aquilo que outrora só existia enquanto mera possibilidade:
o devir-poema do teclado. Os parafusos envoltos em porcas
borboletas se dispõem na superfície do teclado como versos,
indicando um ritmo, um movimento que é, por sinal, paradoxal:
sua mobilidade é aludida tão-somente pela mais fixa e apertada
imobilidade.
Das
teclas móveis aos parafusos e porcas que imobilizam: parece
haver aí uma sabotagem ao jogo tecnológico, uma trapaça que
impede, que cesura o funcionamento do sistema pós-industrial
ou de consumo. A ironia (e o caráter contemporâneo deste gesto)
é que o elemento sabotador, ao invés de figurar como o tradicional
boicote às máquinas da indústria, é justamente um dos ícones
da era industrial. Com isso, inverte-se a equação, fazendo
do alvo de outrora a arma do agora. Simultaneamente, questiona-se
a tese já há muito tempo difundida de que há uma clara passagem,
no âmbito do capitalismo, do setor secundário (industrial)
para o setor terciário (de consumo). Dá a impressão de que
a operação realizada por "110 + ou - (Esc)" desvela no mundo
pós-industrial a inextricabilidade da industrialização enquanto
fator inexorável para que possamos usufruir os entes tecnológicos
com que lidamos de maneira acefálica (como se eles tivessem
surgido e continuassem a surgir magicamente, por um toque
de tecla), pois nos esquecemos das suas condições materiais:
o trabalho quase escravo, nas indústrias espalhadas pelo mundo,
de milhões de pessoas, sobretudo crianças, permitindo nosso
gozo virtual globalizado. Nesse caso, o teclado preparado
espanta: não se limitando a rememorar um passado, ele traz
a memória de um agora já esquecido. Noutras palavras, como
uma reiteração diferenciada do Irineo Funes de Borges, o referido
poema-objeto, ao invés de se lembrar de todo passado experimentado,
lembra-se constantemente de um presente que ele mesmo não
experimenta.
Botando
as mãos pelos pés, podemos ler um outro poema-objeto de Cláudio,
que leva o título "41", como formando um díptico com "110
+ ou - (Esc)": trata-se de um par de chuteiras de futebol
em cuja sola reaparece, no lugar dos cravos, algumas daquelas
teclas suprimidas do teclado de computador. Talvez a presença
das teclas na sola da chuteira represente o desejo daquela
criança asiática que fabricou a própria chuteira: participar
do mundo digital-globalizado de que ela foi excluída. E para
que a análise não corra o risco de submeter a arte a algum
imperativo ético ou ideológico, vale assinalar que a chuteira,
em sua impossibilidade de ser subsumida ao bem ou ao mal,
presta-se a interpretações simultaneamente díspares; pode,
por exemplo, servir para um propósito bastante baudelairiano:
como uma moeda falsa, não se exclui a possibilidade de ela
estar repetindo a exortação de Baudelaire: "espanquemos os
pobres!".
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Felipe
Lins é doutorando em Filosofia da Arte pela Universidade
Federal de Santa Catarina.
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