ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A LUZ PRETA

 

Sylvio Back

 

O poeta João da Cruz e Sousa é um estigma literalmente escuso da litera­tura brasileira. Por ser uma exceção na então sociedade escravocrata do sé­culo XIX, sua soberba negritude acabou por matá-lo aos trinta e seis anos. Sua "igualdade" era demais.

 

O preto no branco, preto-e-branco. Desde o início ele soube, como se uma película de nitrato fora, que seria "incendiado". E não incensado - simbó­lico expediente comum na alvorada do cinema (que lhe foi vizinha), quando as salas eram perfumadas durante a exibição de filmes místicos. Como o personagem de "Le Petit Soldat", de Godard, Cruz e Sousa  tentava abarcar a tela, entrar na cena, assumir a visibilidade da ilusão. Inutilmente. Sua ambição e obra ficaram na penumbra do mainstream da poesia do seu tempo. A exemplo do então "bizarro" cinematógrafo, o "Assinalado" ("... A Terra é sempre a tua negra algema...") sobreviveu à madrastice dos con­temporâneos. Antes de vitimá-lo, a posteridade reservou-lhe o portal da glória.

 

Fragmentariamente biografado, sua trajetória em Nossa Senhora do Des­terro (nome original de Florianópolis (SC) - do nascimento em 1861 à sua vivência e morte no Rio de Janeiro entre 1890 e 1898), assemelha-se a um filme velado. Sobram vácuos e contornos anímicos que mais confundem do que decifram. Mesmo que se queira desideologizar o personagem, desenraizá-lo d'África ou des­paisá-lo do Sul do Brasil, aproximar-se dele através de sua órfica e lunar poesia será sempre uma metáfora sobre a tragédia que é ser negro no Brasil - em todos os tempos.

 

Essas reflexões vêm a propósito do meu filme, "Cruz e Sousa - O Po­eta do Desterro", em cujo roteiro investi não "apenas" no mote "quem é", mas "o que é" João da Cruz e Sousa, filho de escravos, poeta, "ponto" de teatro, abolicionista, jornalista, amanuense.

 

Um negro de "alma branca" - segundo o torpe perfil que a lenda chancelou? Um preto apaixonado por loiras germânicas, flertando com um vocabulário, digamos, valquiriano, e cuja poesia tem induzido críticos a disfarçadamente até "nazificá-lo" avant la lettre (ao ponto de, como Roger Bastide, contar os fonemas que "trairiam" sua etnia)? ou "o negro que não conhecia seu lu­gar", um "preto estrangeiro" (na expressão do amigo e testamenteiro Nestor Vítor)? Então um negro culto e abusado, sempre elegante e galante, na busca por uma auto-arianização como atalho para ascender, fugir da casta (talvez espelhando-se no seu igual-desigual Machado de Assis - um "mu­lato à inglesa", como se dizia numa época em que ninguém queria ser negro ou cafuso)? Ou o pânico letal do crioulo gênio crente que basta o talento para ser reconhecido - sem desconfiar que para além do racismo mais vil germina o cancro da inveja.

 

Nem a desgraça cotidiana notória e a morte de Cruz e Sousa redimiram os seus algozes das redações, dos suplementos literários, das editoras, da re­partição pública, das rodinhas e tertúlias literárias. Nem o negro bem-suce­dido José do Patrocínio, de olho na história ao pagar seu enterro, inconsci­entemente sobre o caixão deitou em forma de coroa o alívio e escárnio de toda uma geração. A pessoalmente ciclópica obra de Cruz e Sousa, única em toda a língua portuguesa, é a maior vingança.  

 

Estes os quadros do movie sobre Cruz e Sousa - a contrapelo da perversa mitologia - que percorreram como um insólito bólido o Brasil, a Europa e os Estados Unidos, deixando um rastro de indignação moral:

 

 

Cruz e Sousa é o vagão de gado, o cadáver tísico, batom de sangue fresco nos lábios - ao colo grávido da amada Gavita, a "preta doida" do Encantado.

 

Cruz e Sousa é o andor que alegre carrega as paixões pela atrizinha branca Julieta dos Santos e pela adolescente Pedra Antióquia, negra "... deidade linda..." - sua noiva-donzela por oito anos.

 

Cruz e Sousa é o tantã da musa atávica "... Vozes veladas, veludosas vo­zes/Volúpias dos violões.../... Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas".

 

Cruz e Sousa é a sombra chinesa que passa incógnita pela sofisticada rua do Ouvidor, empobrecido, adoecido e tão "enegrecido" quanto todos os exilados pela cor.

 

Cruz e Sousa é o seu próprio rio "... amargamente sepulcral, lutuoso, amar­gamente rio" - nele suicidando-se em sonhos de grandeza literária e nobreza social.

 

Cruz e Sousa é a fome de Gavita e dos filhos, "... indigência terrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada...", que ele inerme assiste de um palco mambembe.

 

Cruz e Sousa é a solitária vela acesa no altar - encimado com sua última foto - onde os parcos e fiéis simbolistas lhe "rezam" os poemas em uníssono.

 

Cruz e Sousa é a pomba-gira que baixou à revelia no terreiro da poesia bra­sileira, desossando-a de toda e qualquer possibilidade de um duplo.

 

Cruz e Sousa é o excitado Eros ("... Carnais, sejam carnais tantos dese­jos...") a banhar-se nas areias desérticas da lagoa da Conceição, em Nossa Senhora do Desterro.

 

Cruz e Sousa é o voyeur impertinente da vaziez provinciana que o expele como depois a ex-corte o tritura.

 

Cruz e Sousa é a abolição das senzalas, das tribunas e guerrilhas literárias, "... escravocratas eu quero castrar-vos como um touro - ouvindo-vos urrar!"

 

Cruz e Sousa é o "emparedado", - a atroz rejeição e desqualificação inclu­sive entre os seus, para quem sempre foi "branco demais".

 

Cruz e Sousa é a efígie do olhar ebúrneo no túmulo do cemitério São Fran­cisco Xavier do Rio de Janeiro, testemunhando a própria ressurreição.

 

 

FIM

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