ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

TORDESILHAS: UM BREVE GUIA DE VIAGEM

 

Claudio Daniel

 

Boa noite!

Hoje, iniciamos o encontro Tordesilhas, Festival Ibero-Americano de Poesia Contemporânea, que conta com a presença de mais de 50 poetas convidados do Brasil, Portugal, Espanha e América Latina, que estarão conosco até o dia 04 de novembro participando de debates, performances e recitais poéticos.

Estão na mesa conosco o poeta brasileiro Horácio Costa, o cubano Efrain Rodríguez Santana e os uruguaios Roberto Echavarren e Victor Sosa para debaterem a questão Nosotros latinoamericanos, sobre as relações entre a poesia brasileira e a latino-americana de língua espanhola. Antes de nossos convidados iniciarem suas falas, gostaria de fazer uma pequena introdução.

Em 1943, Oswald de Andrade escreveu, após encontrar-se com o poeta argentino Oliverio Girondo: "outro seria o panorama americano se conhecêssemos melhor as letras que produzimos". Até aquela época, o intercâmbio entre as literaturas brasileira e latino-americana era escasso, apesar de que Manuel Bandeira e Mário de Andrade estavam muito bem-informados sobre o que acontecia no continente - Mário de Andrade, por exemplo, escreveu uma série de artigos sobre a poesia argentina, destacando o trabalho de Jorge Luis Borges.

Esta situação começou a mudar de maneira decisiva na segunda metade do século passado. Um dos precursores dessa jornada de redescoberta foi Haroldo de Campos, que manteve desde 1968 correspondência com o mexicano Octavio Paz, de quem traduziu o poema Blanco, além de divulgar entre nós autores como os cubanos Lezama Lima e Severo Sarduy. Coube ao poeta brasileiro também a primeira formulação teórica do barroco moderno, ou neobarroco, como alternativa para a invenção poética.

Em 1990 foi realizado um evento de crucial importância, A Palavra Poética na América Latina, organizado por Horácio Costa, que reuniu autores como os uruguaios Eduardo Milán e Roberto Echavarren, o chileno Raul Zurita, o mexicano Manuel Ulacia e o argentino Nestor Perlongher para um ciclo de conferências no Memorial da América Latina, em São Paulo.

No ano seguinte, foi publicada a antologia Caribe Transplatino, organizada por Perlongher e traduzida por Josely Vianna Baptista, que trouxe aos leitores de poesia no Brasil autores como o cubano José Kozer e a argentina Tamara Kamenszain. A partir desses marcos, o encantamento de uma América pela outra cresceu e muito, o que pode ser mapeado pela publicação, em nosso idioma, de algumas obras essenciais da literatura latino-americana do século XX, como o romance Paradiso, de Lezama Lima, o Concerto barroco de Alejo Carpentier, Cobra, de Sarduy, e antologias poéticas de César Vallejo, Vicente Huidobro e Oliverio Girondo, em edições por vezes de pequena tiragem e circulação restrita.

Essa divulgação foi possível graças ao trabalho paciente e meticuloso de tradutores como Josely Vianna Baptista, Antonio Risério e Amálio Pinheiro, entre outros admiráveis insensatos. No âmbito da pesquisa universitária, é preciso destacar as obras de estudiosos como Irlemar Chiampi, Maria Esther Maciel, Horácio Costa e Jorge Schwartz, entre outros, que se dedicaram ao estudo do neobarroco e das vanguardas literárias em língua espanhola (no caso específico do surrealismo, seu divulgador entre nós foi Floriano Martins).

Com a facilidade de comunicação oferecida pela internet, um novo avanço foi dado no final da década de 1990 com o diálogo entre os poetas brasileiros e latino-americanos mais jovens, que começaram a ampliar a rede de contatos entre os dois espaços idiomáticos. Desse intercâmbio surgiu, em 2001, a antologia Pindorama, 30 Poetas de Brasil, organizada por Reynaldo Jiménez e publicada no n. 7 da revista argentina Tsé Tsé, que já havia publicado um dossiê dedicado a Paulo Leminski.

Outras antologias de poesia brasileira, estas organizadas por mim, foram publicadas em 2004 no México (Perfeitos estranhos: seis poetas brasileiros, na revista El poeta y su trabajo n. 15, editada por Hugo Gola) e no Peru (O arco-íris de Oxumaré, no n. 3 da revista Homúnculus, editada por Gladys Flores e seus amigos), entre outras amostras de nossa poesia mais recente, inclusive a organizada por Floriano Martins para a revista mexicana Alforja e Moradas provisórias: alguna poesía brasileña actual, esta última de responsabilidade de Josely Vianna Baptista, editada também no México.

Esse intercâmbio teve continuidade com os dossiês dedicados a José Kozer, Víctor Sosa, Arturo Carrera e Reina Maria Rodríguez, publicados em algumas das principais revistas literárias brasileiras, como Coyote, Et Cetera, Zunái e Oroboro, que sempre dedicaram especial atenção à poesia latino-americana.

A passo mais lento começou a acontecer também a edição de livros de autores brasileiros em países de língua espanhola: Reynaldo Jiménez traduziu livros de Arnaldo Antunes e Carlito Azevedo, publicados na Argentina, e de Josely Vianna Baptista, editado no México. Wilson Bueno, por sua vez, teve sua obra Mar Paraguayo (novela poética escrita numa língua híbrida, mesclando português, espanhol e guarani) editada no Chile e na Argentina.

Hoje, com certeza, já não somos tão distantes de nossos comparsas do outro lado da fronteira: felizmente, vivemos numa situação inversa à de 1943, quando Oswald de Andrade lamentava o mútuo desconhecimento e apenas pressentia a extraordinária riqueza que poderia advir de um intercâmbio criativo entre as literaturas dos dois idiomas. Basta abrirmos as mais recentes revistas de poesia surgidas nos dois lados do continente, como a brasileira Gazua, editada no Ceará por Eduardo Jorge, e a chilena El Navegante, editada por Santiago Aránguiz Pinto, para constatarmos a nova realidade.

De minha parte, publiquei coletâneas de José Kozer, Eduardo Milán e León Félix Batista, e em 2004 a antologia Jardim de Camaleões, A Poesia Neobarroca na América Latina, reunindo 24 autores da República Dominicana ao México, do Brasil ao Chile, de Peru a Cuba, traçando um breve quadro da irradiação da "pérola irregular" em nosso continente (trabalho precedido por três outras antologias: Transplatinos, de 1990, organizada por Roberto Echavarren; a já citada Caribe Transplatino, de 1991; e Medusário,  de 1996, organizada por Kozer, Echavarren e Jacobo Sefamí).

Como conseqüência de todo esse processo translinguístico e transgeográfico, a editora Lumme teve a feliz idéia de organizar o encontro Galáxia Barroca, reunindo na Casa das Rosas, em São Paulo, em 2006, os poetas Reynaldo Jiménez e Víctor Sosa, por ocasião do lançamento de seus livros no Brasil.

Esta semente frutificou, e hoje conseguimos realizar um encontro de maior vulto, trazendo para o Brasil um número significativo de poetas, desde autores estabelecidos e já reconhecidos no plano internacional, até autores jovens, que começam a se destacar pela qualidade de seus trabalhos. Vale a pena acrescentar que a idéia desse festival é da poeta brasileira Virna Teixeira, que participou de encontros similares realizados no México e no Chile.

Para finalizar, tenho a dizer que o Tordesilhas é um evento propício à discussão de idéias, mas também um momento festivo, de celebração, um ritual de passagem para os camaleões que se reúnem no jardim.

 

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Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é um dos editores da Zunái.

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