In memoriam Maria Aparecida Santilli
Horácio Costa
Há quase cem anos, São Paulo recebeu um de seus primeiros visitantes distinguidos, o premier francês Georges Clemenceau. Suas impressões sobre a cidade que então se desenvolvia rapidamente encantaram os seus habitantes, sedentos, então como agora, por ter o seu caráter moderno reconhecido: com um à-vontade gaulês, declarou-se surpreendido pela aparência da cidade que, em sua opinião, parecia-se com uma tête-de-département , uma cidade-capital da província francesa; esta opinião sugeriu, passados alguns anos, a Mário de Andrade o tratar de definir poeticamente a sua cidade como um “galicismo a berrar nos desertos da América”, quando começava a sua cruzada particular para modernizar as artes no Brasil. Sim, há mais ou menos cem anos os velhos prédios caiados, cujos tetos protuberantes protegiam os viandantes das freqüentes chuvas devidas à vizinhança da Serra do Mar, eram impiedosamente destruídos para dar lugar a edifícios de aparência “européia” –no mais das vezes, francesa-, que os novos paulistas, um punhado de gente nascida no lugar mais uma enxurrada de imigrantes provenientes dos quarto cantos do mundo, consideravam mais aptos para simbolizar o etos cosmopolita e industrial do centro de negócios que estavam (re) construindo.
Tudo isso já recebeu atenção crítica volumosa da parte de historiadores e urbanistas e é já memória. Um século correu e São Paulo parece-se hoje a qualquer coisa, menos a uma cidade francesa. Poucos edifícios “europeus” ainda estão de pé, e pouquíssimos exemplos de arquitetura colonial sobrevivem, espalhados pela zona central; entretanto, a impressão mais usual que os viajantes de hoje têm da enorme área metropolitana relaciona-a antes com Tóquio ou Nova Iorque ou Los Angeles ou à Cidade do México, que não a nenhuma paisagem urbana européia. Por décadas considerado um ambiente incaracterístico e “falto de harmonia”, como qualquer megalópole São Paulo extrai hoje o seu caráter de sua ausência de uniformidade; é uma cidade de cidades e, como no famoso ensaio de Venturi e Rauch, que definiram o pós-modernismo em arquitetura, a complexidade e a contradição são o seu motto.
A esta altura, é importante dizer porque começo este ensaio sobre a lusofonia focalizando no aspecto geral da minha cidade. Deveras, em poucos lugares no mundo a importância da língua portuguesa como um instrumento comunicacional é mais agudamente sentido do que em São Paulo. O português, como todo mundo sabe, é falado nos cinco continentes por uma enorme gama de gentes. Porém no meu bairro, no prédio onde vivo, é a língua com a qual a minha vizinha do andar de baixo, a Sra. Eva, nascida em Timisoara, Romênia, usa para comunicar-se com a minha vizinha do andar de cima, a milanesa Sra. Isabella, e com os habitantes franceses do décimo andar, Monsieur Bertrand de Estrasburgo, e com a sua vizinha, a química Madalena, nascida na Galícia; na universidade onde ensino, é a língua que uso com os meus estudantes provenientes de todo o Brasil, mas também do Iraque, e de Israel, e da China. Em poucas palavras, do ponto de vista de São Paulo, é a língua de um dos centros do sistema internacional, cujas instituições e técnicas de mercado cada vez menos conhecem fronteiras políticas ou econômicas nos macro-espaços que constituem a sua região de expansão territorial, i.e., a totalidade do Brasil e, além dele, a parte sul da América do Sul, senão o todo do continente americano austral.
Aqui conectamos com o sujet deste ensaio. A “interioridade”, digamo-lo assim, de São Paulo, é o seu traço mais notável, tanto sob o ponto de vista geográfico como histórico. Nos tempos coloniais, o resto da colônia portuguesa relacionava-se com Lisboa diretamente e por mar, e os diferentes focos de colonização tinham contatos tênues uns com os outros, mas todos tinham uma relação constante com a capital do império. São Paulo, por outro lado, ainda que muito próximo da costa, era difícil de alcançar, devido às vertentes da Serra: os jesuítas que fundaram a cidade no século XVI sabiam que ela poderia funcionar como um pólo para a ocupação de uma parte considerável da parte sul da América do Sul. Antes do tratados de San Ildefonso e Madri, o Império Espanhol começava a menos de cem milhas a oeste de São Paulo, ao menos em princípio, considerando o Tratado de Tordesilhas; como é do conhecimento geral, foi dela que as fronteiras entre Portugal e Espanha na América do Sul assumiram a sua presente configuração. Em resumo, o que quero enfatizar aqui é que, desde o seu primórdio, a “interioridade” de São Paulo e a cultura que se desenvolveu em sua região, tiveram que “conversar” com os seus vizinhos hispânicos. No começo desse relacionamento complicado, os paulistas reduziram à servidão os índios vassalos do Rei da Espanha, e perseguiram e mataram os seus catequizadores. Hoje, contudo, a última leva de imigrantes à cidade são os andinos indocumentados que, em algumas áreas, tornam-se vítimas de outros imigrantes, particularmente coreanos, que os mantêm em estado de semi-servidão, para assemblar bens trazidos da Ásia para o mercado brasileiro, ambos grupos que, lembremo-nos, comunicam-se entre si em português quebrado. Se isso é lamentável, por outro lado os paulistanos cada vez mais acostumam os seus ouvidos aos líquidos sons das flautas andinas nos mercados, nas praças e no metrô, como um recordatório do lugar da cidade, longe de Tóquio, Nova Iorque ou Roma, porém mais próximo de Buenos Aires e La Paz do que de Manaus e Recife. Se quando Clemenceau a visitou a cidade se parecia com uma capital da província francesa, no começo deste século XXI ela recorda cada vez mais uma ville tentaculaire latino-americana.
Portanto, tal é a nossa condição. Sem embargo, os intercâmbios culturais com los vecinos não receberam grande atenção, seja por parte do Estado, enquanto uma política continuada para lá do fantástico reino dos acordos culturais ineficazes, ou mesmo, o que é mais sério, pela mesma intelligentsia brasileira. Na América do Sul, o Brasil e os seus vizinhos, por mais de um século depois de sua independência política no primeiro quartel do século XIX, emularam o antagonismo ibérico entre os seus dois povos mais protagônicos, o castelhano e o português. A indiferença mútua começou a mudar na época das vanguardas, quando Mário de Andrade e Jorge Luís Borges e Cecília Meireles e Gabriela Mistral, por exemplo, se corresponderam; por outro lado, Manuel Bandeira ensinou literatura hispano-americana na então Universidade do Brasil, e tanto João Cabral como Murilo Mendes desenvolveram uma rede de relações na Espanha que incluía nomes como os de Brossa e Guillén, que puseram em circulação no Brasil.
Não foi senão na metade do século passado, entretanto, que os contatos entre os dois blocos de latino-americanos deixou de ser descontínuo e passou a ser perceptível como um padrão dialógico. Nos anos 1960, Haroldo de Campos, o dinâmico co-fundador da Poesia Concreta de São Paulo, estabeleceu uma longa correspondência com Octavio Paz, que o levou a traduzir a sua obra. Paz, quem naquele então começara, por sua vez, a traduzir Fernando Pessoa ao espanhol –primeiro do francês, depois diretamente do português-, e Haroldo estabeleceram um diálogo sobre tópicos da poética da Modernidade, cada quem defendendo o seu conceito desta expressão baseando-se em suas tradições e dicções lingüísticas.
O momento seguinte é aquele que vivemos, e no qual tive algumas iniciativas. Em 1990, eu vivia, ensinava e publicava na Cidade do México; tais experiências fizeram-me sentir agudamente a ignorância mútua entre os poetas que se expressam em português e espanhol, nas Américas e na minha geração, nascida na década de 1950. Assim, seguindo o processo de redemocratização no Brasil, apresentei um projeto ao recém fundado “Memorial da América Latina”, uma instituição do governo do Estado de São Paulo. “A palavra poética na América Latina: Avaliação de uma Geração” foi o primeiro encontro a colocar em contato direto poetas do Brasil e da América Hispânica; como resultado, o livro publicado com os ensaios e uma seleção de poemas dos 17 poetas participantes foi bem recebido e esse evento tornou-se referência para os muitos que o seguiram.
Os conceitos que assistiram o meu projeto eram três e bem simples: primeiro, assumia que a América Latina oferece um lugar político e cultural comum ao Brasil e aos seus vizinhos, independentemente da língua em que se fala ao longo desses mais de dez mil quilômetros lineares de fronteira que inclui, nunca é demais recordá-lo, dezenas de línguas indígenas; segundo, que a “palavra poética” existe como uma forma de expressão reconhecível a poetas e escritores que experienciam estratos culturais semelhantes nos dois lados dessa fronteira; terceiro, que a geração à qual eu pertenço tinha que encarar não apenas esses traços gerais, mas também o muito ponderável que a era das vanguardas e do Modernismo tinha-se esmaecido e que a Pós-Modernidade, ou nomeie-se-a como se queira, havia-se tornado uma figura familiar a todos nós. Um quarto aspecto tinha em mente, de viés político e lingüístico: o desejo de trazer tal reflexão a São Paulo, a maior concentração de usuários de português do mundo e um caldeiro de culturas destinado a comunicar-se cada vez mais com los vecinos.
Organizei dois encontros mais, extensões do primeiro. Em 1998, um de revistas de poesia latino-americanos, aos que se juntaram poetas e editores de fala inglesa, dos Estados Unidos e do Canadá, e alguns espanhóis; em 2007, foi a vez de “Em mar aberto: poesia em português e nas línguas da Espanha: um diálogo histórico, uma futura aliança?”, no qual enfatizei as possibilidades dialógicas entre os poetas brasileiros, de Portugal e da África lusófona (o que não se pôde dar, por falta de apoio oficial português), e aqueles que escrevem nas quatro línguas majoritárias da Espanha: catalão, basco e galego, além de castelhano, claro está, na Europa e nas Américas, inclusive nos Estados Unidos. O título do evento fala por si só. A idéia é muito ambiciosa e, penso, merece ser explorada: deveríamos conhecer-nos melhor para articular uma reflexão combinada, na era da globalização que coincide, como sabemos, com o ápice do inglês, transformado numa espécie de patois internacional. Não será necessário dizer que este projeto preocupa-se particularmente com as fronteiras dos blocos lingüísticos, e considera não apenas aquela entre brasileiros e hispano-americanos, mas também a dos hispânicos na America do Norte e a dos moçambicanos na África austral, ou seja: a dinâmica que as duas maiores línguas ibéricas estão imersas em partes de sua cobertura territorial. Tampouco é necessário apontar que a hermenêutica que aqui abraço não é purista, porque ideologicamente estou a favor de validar formas de hibridização, tais como a poética do portunhol que alguns poetas brasileiros, paraguaios e argentinos estão desenvolvendo na bacia do Prata, que não apenas apresenta alguns experimentos lingüísticos interessantes, mas que também pode oferecer formas de expressão a gerações futuras.
Não surpreendentemente, as autoridades culturais espanholas receberam bem esse projeto, que se realizou no Instituto Cervantes, no Centro Cultural da Espanha no Brasil e na Casa das Rosas –uma velha mansão “francesa” na Avenida Paulista que abriga a biblioteca de Haroldo de Campos-. Mas foi uma surpresa observar a intensidade do antagonismo entre os poetas não-castelhano falantes devido ao que sentem ser o predomínio dos que se expressam nessa língua, e particularmente, observar que se sentem periféricos, em termos culturais, em seu próprio país, assinalando uma situação alheia aos brasileiros acostumados a serem uma multidão de indivíduos que usam o mesmo código lingüístico numa grande porção de terra.
Sim, no Brasil uma língua que teria podido correr o risco de ser mantida perifericamente na Europa, não tivessem sabido os portugueses sobreviver como uma entidade política independente, agora encara o destino, de uma vez por todas, de tratar frente a frente com los vecinos. Continuo a cavilar pontos para esta imperiosa agenda, a ser realizada neste século de uma forma ou de outra. São Paulo sabe disso porque sua força centrípeta fala português. Os poetas têm o que manifestar nesse processo porque a poesia, ou melhor: a palavra poética, é tão velha e resistente quanto a humanidade, e seus poderes não conhecem fronteiras.
No processo ao qual me refiro, a antiga e belíssima poética do mar, levada a cabo por gerações de poetas portugueses, das cantigas a Camões a Pessoa, como um dos esteios civilizacionais basilares e traço de união entre as sucessivas estéticas, modos de dizer e circunstâncias políticas e culturais do povo português, está a ser sucedida por uma poética da terra, ou ao menos: da continentalidade, do Macunaíma ao Grande Sertão aos experimentos dialógicos, entre muitos, que acabo de mencionar, passando pela minha própria vis poetica. Provavelmente, assim tinha que ser e assim, de fato, é. Caberá aos portugueses reconhecerem que nesta sucessão não há negação nem superação mas sim incorporação e, dessa forma, afirmação implícita.
Nem por acontecer em terras americanas esta sucessão deixa de dizer respeito aos portugueses, e de modo particular, aos poetas portugueses: não é apenas um tectonismo brasileiro, trata-se de um movimento da língua portuguesa. A atriz principal nesse drama tem mais de mil anos de idade, atravessou mares nunca dantes navegados e embrenhou-se em terra fértil. E manda dizer que passa muito bem, obrigadinha, muchas gracias.
Pós-escrito número um: A primeira versão deste ensaio foi escrita em inglês e apresentada no colóquio “Lusofonia in the 21st century”, organizado em 2008 na Universidade Georgetown, de Washington, D.C. Nele, dei-me conta da falta de conexão de parte das autoridades portuguesas com muito do que acima está dito: a um dado momento da extensa exposição do extenso número de leitorados que o Instituto Camões estava a abrir no mundo, inclusive em Alma Ata, Casaquistão, rebelei-me em voz alta -como podia ser isso, se as sedes do mesmo Instituto em São Paulo e no Rio de Janeiro haviam sido recentemente fechadas, ocasionando dificuldades crescentes para quem intenciona incrementar o diálogo com a cultura portuguesa, hoje? A parlenda oficial compunha uma curiosa litania, dir-se-ia que auto-hagiográfica, por parte das autoridades lusas circunstantes, ignorando assim, de maneira frontal e algo despudorada, o fortalecimento de parte considerável da comunidade lusófona objeto do encontro. Como explicá-lo? Dificuldades gerais no trato com as terras que o mar português trouxe há séculos ao cenário global? Hipotrofia e concomitante alucinar, advindos talvez da incompletude daquela “psicanálise mítica” de que fala Eduardo Lourenço? Apenas falta de atenção para com, por exemplo, brasileiros entrões por dobraduras simbólicas que não saberiam ou, pior ainda, não deveriam hipostasiar? Seja como for, o texto acima não seria o mesmo, não fosse aquele momento revelador de uma máquina oficial supinamente pouco proclive ao diálogo.
Pós-escrito número 2: Tenho um companheiro novo, um certo Francisco, carioca da gema, como se diz. Seu conhecimento sobre São Paulo, cidade que teima em reservar os seus encantos, era pequeno: em nossas horas vagas, esforço-me por desvendar-lhe alguns. Numa manhã de sábado, decidi levá-lo a uma igreja que se encontra na Baixada do Glicério, vizinha à nipônica Liberdade e meio perdida entre os viadutos de concreto, e a meio caminho entre o centro histórico e aqueles Brás e Moóca, bairros que foram de imigrantes italianos anarquistas, mas que antes tinham sido zonas de pastoreio das tropas de muares que, provindas do Rio Grande e dos campos de Curitiba, demandavam as Gerais e a Corte. Hoje por lá, e no Pari, e no Canindé, há feiras nas quais se compram os tubérculos chegados da Bolívia e do Peru, e esses produtos da terra se espelham em andinos olhos amendoados que encaram frente a frente aqueles dos migrantes nordestinos.
A Igreja Nossa Senhora da Paz foi mandada construir ao redor de 1940 por três condessas italianas de São Paulo, Matarazzo, Crespi e Castruccio, edificada num estilo fascista que remete àquela “Città EUR” que Mussolini houve por bem estender para lá do Aventino; os afrescos de seu espaçoso interior, de autoria, se bem me recordo, de Fúlvio Penacchi, são notáveis e, claro, “conversam” com a tradição de Giotto. Por eles, lá chegamos Francisco e eu, na manhã encoberta e baixa. Uma surpresa nos esperava: na semi-obscuridade, o que se via eram muitos arcos de bambu no corredor entre os bancos, recobertos de papel de seda colorido, mas com motivos alheios, por exemplo, ao das festas caipiras e próximos, à primeira vista, àqueles aos quais os meus olhos se tinham acostumado no México: tratava-se de uma boda, oficiada em espanhol, de imigrantes dos Andes. Estava no fim, e logo os noivos saíram por debaixo das cores, e entre si os convidados ao redor os saudavam alacremente em quéchua, que não em castelhano. Em minutos, o corredor triunfal havia sido transportado ao adro da igreja, e rebentaram as flautas, e Francisco e eu, olhos marejados, partimos.
Termino este texto no dia 21 de Abril, qüinquagésimo da fundação de Brasília, às nove da noite.
São Paulo cumpre-se: recebemos a todos. Por isso mesmo recebemos, também, los vecinos.
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Horácio Costa, poeta, tradutor e ensaísta, é professor de literatura portuguesa na Universidade de São Paulo (USP).