ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

Traços ou vestígios da luz

 

Maria João Cantinho

 

Já se tornou um hábito, no nosso país, ignorarmos os criadores nacionais de qualidade, para celebrar a mediocridade alheia. Múltiplos (e enigmáticos) factores permitem explicar essa ocorrência. E a surpresa instala-se no momento em que os vemos reconhecidos fora do país. É o que acontece com João Francisco Vilhena, jovem fotógrafo que tem uma obra espantosa e assinalável, tanto na sua qualidade intrínseca quanto no longo e vasto percurso, pautado por uma capacidade criativa notável.

Nascido em 1965, João Francisco Vilhena iniciou a sua carreira aos 22 anos, numa exposição colectiva e, desde aí, o percurso da sua obra é vastíssimo, colaborando, ainda, com vários escritores portugueses, entre eles José Saramago, Luísa Costa Gomes, Clara Pinto Correia, Pedro Rosa Mendes.

Gosto de relembrar a reflexão de Walter Benjamin, na sua Pequena História sobre a Fotografia, sobre o conceito de aura, o qual se tornou fundamental para explicar o coração da imagem fotográfica, nesse duplo olhar, isto é, enquanto conexão e ruptura, em simultâneo, distância e proximidade: O que é exactamente a aura? Uma trama singular de espaço e de tempo: a aparição única de um longínquo, por mais próximo que esteja[1]. Trata-se de uma estranha e misteriosa clivagem que nos faz pressentir o que de mais autêntico nos trazem as coisas, apelando ao encontro dos sentidos, imaginação e intelecto. Com frequência, João Francisco Vilhena afirma o seu afastamento das abordagens demasiadamente formais e estilizadas e invoca a importância das experiências místicas de despojamento, onde o essencial se transforma na matriz da sua obra. Essa experiência tornou-se marcante em Atlântico, onde a nostalgia era o alimento essencial e João Francisco Vilhena soube trabalhá-lo de um modo espantoso. Rostos, fragmentos, pegadas e vestígios, atestando a vida do que foi, contêm em si a secreta chama da vida, o mais fugidio dos traços na sua metamorfose inapreensível.

Philipe Dubois, na sua obra O Acto Fotográfico, fala desse exercício petrificador: O tempo passa. O que fotografou desapareceu irremediavelmente. Aliás, falando em termos estritamente temporais, é no próprio instante em que a fotografia é tirada que o objecto desaparece[2]. É essa mágica conversão que se opera no interior da imagem fotográfica, o derradeiro gesto que dá morte ao objecto e o salva numa ordem outra: a do conhecimento, através da sua construção na memória.

Ao olhar a baliza abandonada ao vento marítimo, evoco uma estranha e irredutível experiência perdida, do mesmo modo que um rosto permanece, na sua aura, para lá da vida, e interrogo-me comovidamente sobre o estanho litígio entre a arte e a vida, de que a imagem e a representação nos dá conta. Fale-se, ainda, dessa impaciência, condição e marca de toda a arte, distinguindo-a da ciência, a impaciência da conversão da dispersão e do movimento na unidade do simultâneo. A impaciência, também, da conversão do que se apresenta desmembrado em fogo vivo e cristal puro. "A carne, a cinza, a areia" como elementos mortos, em Atlântico, que se convertem em imagem incandescente. Neste sentido, a impaciência, não apenas cabe em sorte àquele que vive e sabe da condição de mortalidade, destinado à entrega à cinza e à terra, como também a do ser que aspira à unidade da terra e dos elementos dispersos, que aspira à autenticidade da experiência mística.

Pressente-se este ofício no modo como João Francisco Vilhena foge ao estereotipo e opta pela imagem - às vezes crua - que espelha essa ligação sagrada. Na sua mais recente produção, imagens de corpos que se fundem com a terra e a argila, corpos sujos, conspurcados pela terra, reaparece esse apelo à criação enquanto magma e fonte poética. Terra, água, mar, flores, corpos desamparados e solitários, frequentemente nus, exprimindo o desamparo e o despojamento, exprimindo também essa brevidade conveniente à vida, são apenas alguns dos elementos de uma conversão alqímica que o fotógrafo procura levar a cabo.

Recolher os fragmentos enquanto "fragmentos do tempo e do espaço", resgatar o que se encontra destinado à morte, desde sempre antecipada, mais do que arte que se embrenha no espaço intermediário entre os objectos, lutando para os conservar na imagem, é igualmente uma tarefa criadora, que permite a ligação das coisas entre as coisas, dos valores entre os valores, para a restituição da sua unidade. É igualmente restituir-lhes o sentido, colocando-os nesse espaço onírico e aurático entre o longínquo (a experiência perdida) e o perto (a sua evocação e irredutível presença do que foi).

Admirável me parece ser esse olhar único, alegórico, que é capaz de restituir o ser às coisas numa ordem imagética que, imediatamente, se converte assim numa poética do espaço e do tempo. E essa poética explode no olhar do espectador, confrontando-se, não apenas com a imagem que se apresenta, mas igualmente com a percepção sensorial dessa íntima e secreta dança do artista com a vida.

Como vestígios de uma luz que ilumina a vida e a funde no espaço do sonho, é nas fotografias de João Francisco Vilhena que "lemos" e sentimos esse impulso salvador por excelência, cabendo na imagem o esplendor da ternura do olhar, na sua duplicidade: o olhar das coisas que nos chamam, o olhar que reconhece a vida íntima do que foi. Por isso a inquietação, também ela digna do que de melhor a arte nos traz. Não existe arte sem inquietação, sem o pressentimento de uma transgressão. Mesmo que a transgressão não se apresente na sua dimensão puramente ostensiva, a inquietação da imagem nasce do reconhecimento de que se chegou atrasado para o encontro com o passado. Esquecemos esse atraso da imagem fotográfica, mas algo em nós é incapaz de esquecer que respiramos e sentimos o corpo, a presença do outro junto a nós, mas esse ser ou objecto que a imagem não partilha a nossa presença nem respira do mesmo modo, olhando-nos do passado, lembrando-nos a vida de permeio e breve interregno. Essa distância é também o mistério da imagem, o seu abismo, como lhe chamou John Berger. E esse "atraso", a maldição do acto fotográfico, é o que ressuma em todas as fotografias de Atlântico. Os papéis onde a escrita sobreviveu ao tempo, as histórias retratadas (e contadas) que assinalam o vestígio do amor romântico entre as personagens, o mar eternamente presente, como a água do sonho. Sempre o mar como expressão metafórica e transcendente do infinito, em pano de fundo. O mar como metáfora do passado ou metáfora da viagem ou, ainda, como metáfora de abertura e de transcendência. Como ponto de partida e de chegada, fechando o círculo da narração e das imagens. Como nome e imagem primordial e arquetípica. Também não é por acaso que Atlântico encerra com a imagem do búzio. Sabemos o que essa imagem transporta consigo, a ideia de que o som do mar ali se guarda e se salva. Essa fotografia resume o que de mais admirável se pode escutar: a secreta música do sonho, esse mar que escoa em toda a obra. E se as imagens do passado quase sempre se estabelecem no contraponto da luz e sombra, traduzindo a incomensurável distância entre o passado e o presente, as imagens do mar sobressaem pela cor e pelo apelo à mais forte sensorialidade, num contraste notável.

Ainda que não recuse o lirismo, e disso é expressão a importância conferida ao onirismo e à atmosfera nostálgica e romântica que perpassa em todas as suas fotografias, o fotógrafo não se deixa resvalar para o puro efeito estético, e isso é bem presente na contaminação entre puro/impuro, nos corpos fotografados, nos elementos materiais que são tomados como objecto, sobretudo a terra, a areia e a água. Elementos naturais, eles estão mais próximos da sensualidade e da sensorialidade do olhar, portadores de um poder que o formalismo desconhece. Cheiros, cores e sons ressumam na imagem e é esta intensidade que imprime a força como marca da fotografia. Longe de uma idealização do real, o acto fotográfico busca o que de mais inacessível existe: a vida e a sua autenticidade. Ao formalismo não lhe é concedido senão o rigor técnico, a perfeição intacta da abstracção. A par desta contaminação, o fotógrafo recusa igualmente uma visão depurada e solitária da fotografia, preferindo trabalhar frequentemente em parceria com autores nacionais. Não há nesta parceria nenhuma servidão ou efeito ilustrativo (nem a ideia o inquieta minimamente), principalmente pela força intrínseca das suas imagens. Antes uma inquietação permanente, que reforça o sentido e a força do texto, lembrando o litígio primordial da arte e da vida, evocando a aura, chamando-nos ao encontro com as coisas.

A experiência com a literatura vem-lhe desde sempre, pois sempre trabalhou como fotógrafo em revistas literárias. Durante muitos anos, foi responsável pela imagem da Ler, posteriormente da Tabacaria. Daí partiu para a colaboração com autores portugueses. Com Saramago, com José Agostinho Baptista, Luísa Costa Gomes, Clara Pinto Correia, Pedro Rosa Mendes. O que interessa ao fotógrafo é, não a pura ilustração do texto, em que este se apresentaria apenas enquanto legenda, mas a ideia de imagem como "vaso comunicante". Ambos, texto e imagem, se impregnam dessa energia secreta que lhe advém da contaminação do olhar. Se o texto apela à compreensão e à escuta da voz, a imagem suscita a inquietação do olhar, obrigando o leitor a retomar o fôlego. Respirar, ouvir, ver, sonhar e perpetuar a memória dos que falam e nos olham são efeitos sequenciais dessa leitura imagética. As palavras que se escoam diante de nós ganham uma dimensão corpórea e muito mais sensorial, a imagem torna-se muito mais audível e musical. E o modo como essa energia se detona no texto, tão discreta quanto subtil, é a arte do fotógrafo. Percorrendo esses lugares e tempos, avançando, parando e retomando o caminho, talvez nos possamos aperceber de que cada fotografia é, ao mesmo tempo, uma despedida irreversível e uma imagem que nos salva. O fotógrafo sabe-o. Nós pressentimo-lo, seguindo os vestígios, os traços da luz para sempre perdida.


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[1] Walter Benjamin, Petite Histoire de la Photographie, p.70.

[2] Dubois, Philippe, O Acto Fotográfico, editora Vega, p. 85, Lisboa, 1992.

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