NOTÍCIAS DE
TEMPLIAKOV, O PENSADOR À MARGEM
Espírito simbiótico de cientista e artista,
o multimídia avant la lettre Ivan Templiakov
começa a ser redescoberto
por Leonid
M. Gaspadin
Um certo Ivan, O Vermelho
Havana, 26 de julho de
1946. Carregando seus pertences num saco de lona, um homem
alto, ruivo e corpulento embarca no navio panamenho Marguerita,
com destino à Flórida. No dia em que completa
63 anos, o exilado russo Ivan Iakovlev Templiakov está
pronto para iniciar o que talvez imagine ser uma nova vida
na América. Tem no bolso uma carta de Ernest Hemingway,
bem como quinhentos dólares, enviados pelo escritor,
que se tornará seu protetor nos Estados Unidos, embora
por um curto período. A amizade entre ambos nasceu
em 1941, numa bodega de Havana. Leitor onívoro, o russo
já conhecia e apreciava a literatura do norte-americano,
a quem presenteou com um cinturão militar alemão
da Primeira Guerra, em cuja fivela se lia a inscrição
Gott Mit Uns Deus Está Conosco.
Hemingway estimou e preservou esse presente por toda a vida.
Em diversas ocasiões, referiu-se à cultura espantosa
de Red Ivan ou Templi, um crazy russian
professor que recitava todo o Shakespeare de memória,
a poesia de William Blake e dos metafísicos ingleses,
além de conhecer profundamente a fisiologia e o comportamento
dos tubarões. Para muitos que conheceram Hemingway,
a personalidade exuberante e a vitalidade atlética
de Red Ivan robusteceram no americano seu culto pela macheza,
pelo desforço físico e espírito aventureiro.
Uma curiosa menção num esboço de carta
do escritor parece indicar que o próprio tema de O
Velho e o Mar lhe foi sugerido por seu bom amigo Templi. Numa
primeira versão datilografada do livro havia uma dedicatória,
que foi vigorosamente obliterada com tinta preta. Esse fato
autoriza alguns a pensar que, com esse gesto, um furioso Hemingway
encerrou definitivamente sua amizade com Ivan Templiakov.
Na época, houve um rumor de que uma mulher fora o pivô
do rompimento: a senhora Hemingway de então.
A bordo do Marguerita,
o viajante chama a atenção por seu forte sotaque
russo e pelo rosto marcado pela reclusão num campo
de trabalhos forçados e numa clínica psiquiátrica.
Ele fuma incontáveis charutos, dispara ironias sobre
interlocutores medíocres e costuma exclamar Merde!
ao ler o noticiário internacional numa cadeira do convés.
Ninguém suspeitaria que esse sujeito meio louco,
um ex-membro da Academia de Ciências de Moscou, foi
declarado inimigo do povo pelo comissário
Zdhanov, por suas pesquisas sobre a biocinética estelar.
Em seus papers, Templiakov afirmava detectar os fundamentos
da física moderna na multimilenar literatura mítico-religiosa
da Índia. Na verdade, o genioso sábio provocaria
sua queda graças às suas irreprimíveis
piadas sobre um certo sargento da Geórgia,
isto é, o supremo líder Josef Stálin.
Realmente, Ivan Iakovlev Templiakov não era um homem
comum.
Pecados Geniais
Formado com louvor em
Física, Matemática e Astronomia pela Universidade
de Moscou, estudioso das línguas orientais, poeta do
grupo cubo-futurista e amigo pessoal de Maiakóvski,
Khlébnikov e Marina Tzvetáieva, ele destoara
da nova sociedade soviética, burocrática
e pasteurizada como um futuro MacDonalds. Apesar de
seu conhecimento enciclopédico, patente em centenas
de ensaios e artigos, Templiakov não deixou de ser
um bon vivant, amigo da boa mesa, da bebida, do humor por
vezes escatológico, e, claro, das mulheres. Assieiév
atribui a desgraça pessoal do pensador à sua
escandalosa aventura com uma favorita de Lavrenti Beria, ninguém
menos que o chefe da temível polícia política.
Para Máximo Górki, as idéias de Templiakov
sobre a mecânica dos corpos celestes foram seu pecado
original, por contrariar frontalmente o materialismo dialético:
em Cosmecanica (1921), o estudioso do Vedanta antecipava a
holística e a hipótese Gaia, ao
descrever o universo como um organismo vivo. Segundo Pásternak,
os burocratas do Konsomol e da Liga dos Escritores não
perdoaram os poemas satíricos de Templiakov, em que,
usando recursos visuais semelhantes aos do construtivismo,
ironizava os nomes dos líderes do Partido Comunista,
fazendo pornográficos trocadilhos, infelizmente, intraduzíveis
em português.
Para quem o conheceu,
Ivan Templiakov foi sempre uma criança grande, que
nunca perdia a oportunidade de fazer uma boa piada, recheada
de erudição e palavras de baixo calão.
Gostava de beliscar traseiros, derramar café nas calças
dos amigos e de arrotar alto em restaurantes, dizendo ser
de bom-tom entre os árabes. Tido por impostor, cínico,
arrivista, costumava também pedir pequenas quantias
emprestadas, que nunca reembolsava. Entretanto, lendo qualquer
um de seus artigos e ensaios, o fato inegável é
que encontramos aí algumas das principais idéias
da modernidade. Templiakov abordou a essência da holística
antes mesmo dessa palavra ser cunhada; assim como a ecologia;
o naturismo; a semiótica; o estruturalismo, e
suprema heresia! também a teoria política,
advogando o retorno à Idade do Ouro do
comunismo primitivo, pré-cristão. Exaltava a
nudez e o sexo poligâmico, em substituição
à família; propunha a supressão do Estado
e do trabalho compulsório toda instituição
é totalitária, escreveu ele , preconizando
a autogestão em pleno socialismo real.
Divulgava tais idéias em folhetos impressos numa prensa
manual e distribuídos por ele mesmo. É
extraordinário que não tenha sido fuzilado,
afirmou Prehebenski, seu notório desafeto. Mas Templiakov
passou cinco meses num campo de trabalhos forçados,
onde liderou uma greve de fome. Quase à beira da morte,
logrou ser transferido para uma clínica psiquiátrica,
graças às relações íntimas
de sua irmã, Natasha Iakovlevna Templiakova, com um
general do Exército Vermelho. Aí permaneceu
por três anos e meio. E pouco antes dos terríveis
Processos de Moscou, ela conseguiu, por intermédio
de um alto funcionário do Politburo, que ele fosse
banido da URSS.
A vida é um faroeste B
Templiakov passou um bom
tempo em Paris, recuperando-se. Conheceu e privou com Picasso,
Paul Éluard, Jean Cocteau e toda a entourage do pintor.
Em 1937, durante um cruzeiro amoroso mal-sucedido com uma
aristocrata polonesa, veio dar com os costados em Havana,
onde caiu de amores pelo clima, pelo rum e pelas morenas habaneras,
com as quais adorava compartir em sua cabana de praia. O poeta
Nicolás Guillén visitou essa humilde morada,
onde encontrou o ruivo russo risonho sempre cercado
de artistas, músicos e belas mulheres. Misto
de Da Vinci, Don Juan e DArtagnan passado dos
cinquenta anos, ainda gostava de lutar boxe! , esse
personagem impactante causava profunda impressão em
todos. Até mesmo em durões de carteirinha como
Lavrenti Beria e Ernest Hemingway. Foi graças à
influência do escritor que Templiakov obteve cidadania
norte-americana, através da Embaixada dos EUA, em Cuba.
Financiado pelo amigo, embarcou para a Flórida. No
princípio, tudo correu fácil. Hemingway lhe
fazia freqüentes empréstimos a fundo perdido,
abria portas, recomendava-o a pessoas influentes. Conseguiu
trabalho como tradutor em editoras, escreveu roteiros para
westerns B em Hollywood, assinando como Buddy Besser, Stuart
McCoy e e Jonah Temple, Jr. Paralelamente, produzia sua obra
multidisciplinar: os ensaios De Vanguardas e Vaidades, Transcomunicação,
Universo Intencional, O Signo de Belzebu, entre outros. Estava
próximo de obter um cargo de consultor numa agência
governamental quando Hemingway rompeu com ele. Houve boatos
de que o russo louco havia cortejado despudoradamente
a senhora Hemingway, mas nada foi comprovado. O fato é
que o escritor deixou de atender os telefonemas de Red Ivan,
e queimava suas cartas ao recebê-las. A partir daí,
Templiakov mergulhou em penúria e ostracismo. Foi garçom,
chofer, bookmaker, coveiro, assistente de marketing e cozinheiro
num pequeno restaurante ucraniano. Sobrevivendo de bicos,
atravessou as décadas seguintes dividindo as contas
de um exíguo quarto de pensão com um vendedor
de gravatas lituano chamado Janos Lapinskas, que morreu em
1974. Templiakov resistiria mais uma década. Morreu
na miséria, em 1984, com a veneranda idade de 101 anos.
A seu lado estava Hannah Roth, uma jovem garçonete
ruiva de seios enormes, estudante de Filosofia, que teria
sido seu último grande amor. (O poema Florida Flower,
escrito por ele em inglês, seria inspirado pela moça.)
Segundo Hannah, Templiakov murmurou antes de morrer: A
vida é um faroeste B. Irônico auto-epitáfio
de um homem que colecionou inimigos através dos continentes
e de um século de existência atribulada.
Anistia para
Templiakov
Parece haver chances de
uma ressurreição crítica para Ivan Templiakov
neste início de século, com o reconhecimento
tardio de sua obra e sua presença na história
do pensamento. Para muitos, houve uma verdadeira conspiração
de silêncio, por parte de scholars medíocres,
para obscurecer a magnitude intelectual e a própria
memória de Templiakov. A URSS e os EUA uniram-se
para matar Templiakov, acusa o exilado russo Boris Valenko,
que foi secretário particular do gênio. Nunca
o convidaram para lecionar em universidades, a despeito de
seu colossal currículo acadêmico. É inexplicável,
exalta-se o ex-secretário, ressaltando que a imprensa
norte-americana, que ostenta uma suposta defesa da liberdade
de pensamento, jamais publicou qualquer um dos 537 artigos
e crônicas enviados por Templiakov ao The New York Times,
The Washington Post, The New York Review Of Books e dezenas
de outros órgãos informativos, científicos
e literários. É como se fosse um enorme
bloqueio, com o claro objetivo de fazer com que Templiakov
fosse esquecido, até se transformar numa sombra, num
personagem de ficção, lamenta Valenko.
Já é tempo de anistiar Templiakov, resgatá-lo
do limbo a que foi condenado. Esse resgate já
teve início. O pensamento multiforme do russo genial
começou a ser redescoberto em Portugal e na França.
Os que abordam seu universo são unânimes em afirmar
que Templiakov merece ser conhecido por todos aqueles que
tenham a coragem intelectual de examinar novas e ousadas idéias.
No Brasil, o maior estudioso
de Templiakov é o advogado e empresário João
Artacho Sepúlveda, que possui uma memorabilia da obra
esparsa do pensador: álbuns de fotos amareladas, notas
pessoais e primeiros manuscritos de artigos e ensaios. Templiakov
é o maior gênio deste século, declara
Sepúlveda. E não estou brincando. Ele
descobriu que a linguagem sexual é a mais elevada obra
de arte, e, mais do que isso, é a única religião
verdadeira, no sentido do religare: o único modo de
nos unirmos à divindade. Simultâneo a Freud,
demonstrou o caráter autoritário do Estado,
da família, do mercado de trabalho e das igrejas oficiais.
Precursor de Oswald de Andrade, pregou o retorno a um estado
primitivo, matriarcal, como o único meio de se evitar
as guerras, as epidemias, os preconceitos, a paranóia
nacionalista e uma disfunção somática
que denominou mal-estar nuclear, em tudo semelhante
ao que hoje se chama de estresse. Sempre em tom enfático,
Sepúlveda relata que Templiakov queria o fechamento
das universidades cloacas da ideologia burguesa
, e sua transformação em estádios
de futebol.
Tradutor laborioso e lento
da obra do sábio, João Sepúlveda afirma
que o avanço mais prodigioso de Templiakov foi no campo
da filosofia pura, mas que, infelizmente, deixou incompleta
sua obra mais ambiciosa: A Anatomia Anímica (1921),
onde antecipou conceitos capitais do existencialismo heideggeriano.
Para Sepúlveda, os que atacaram o pensador russo, tachando-o
de impostor, cripto-anarquista, falsário intelectual
ou mero malabarista de teorias caóticas deveriam antes
mergulhar em sua obra densa, de sólida construção
e amplitude de escopo, que constitui um retrato irretocável
da solidão e orfandade do homem moderno nesta era do
capital sacralizado. Seu fascínio pelo gênio
russo é capaz de contagiar seus ouvintes. É
uma prova de que o carisma solar de Ivan Iakovlev Templiakov
continua vivo e radiante. Finalmente, o ancião
desconhecido que morreu num quarto de pensão em Miami
pode estar prestes a alcançar sua vitória póstuma.
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