ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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POESIA E AGORIDADE

 

A partir desta edição, Zunái inicia um amplo debate sobre o fazer poético na era do fetichismo do mercado e da globalização. Quais seriam as reais perspectivas para a poesia, hoje? Confira abaixo as respostas dos autores convidados. As entrevistas foram concedidas a Rodrigo de Souza Leão e a Jorge Lúcio de Campos, e integram um livro inédito organizado pelos dois poetas.

 

Claudio Daniel - Vivemos numa época de confusão e tumulto. Um tempo áspero, metálico, ruidoso. Paisagem musical com figuras sombrias de um quadro de El Greco. Percebo uma tensão cada vez maior entre discurso e realidade, mitologia e fenômeno, como jogos de luz e sombra. Essa dissonância é perceptível, sobretudo, no choque entre as imagens paradisíacas da televisão e a violência e miséria das ruas. A tese da "nova ordem mundial", que surgiu após a queda do Muro de Berlim, no final dos anos 80, revela-se, cada vez mais, uma peça de marketing, criada para encobrir a brutalidade e a exclusão social.

Claro, a história é sempre uma construção ficcional, com elementos de teologia, política e ópera bufa; porém hoje, mais do que nunca, essa narrativa parece fantasiosa, uma abstração cruel ou sarcástica caricatura. O suposto ambiente clean, ordenado, racional do capitalismo pós-moderno, veiculado na mídia como o melhor dos mundos possíveis, já não convence a quase ninguém que reflita, seriamente, sobre o assunto. Para os intelectuais "colonizados", como dizia Glauber Rocha, ele existe como nova mística; basta lermos os cadernos de cultura, política e economia dos jornais, onde o espírito crítico foi substituído pelo canto de louvor à tecnologia, ao liberalismo econômico e ao consenso de Washington.

É o "monoteísmo do mercado" de que falava Roger Garaudy. Porém, como falar em liberdade individual, por exemplo, quando as pessoas são submetidas a jornadas de trabalho de doze ou quatorze horas por dia, perdem direitos sociais e são viciadas na morfina ideológica transmitida pelas corporações, nas chamadas "políticas da qualidade", que intentam transformá-las em bonecos mecânicos, no melhor estilo George Orwell? O tempo livre para o lazer, a informação, a cultura, é subtraído pelas exigências da produção, e as poucas horas de entretenimento são gastas em frente à televisão, que dissolve a massa encefálica em novelas lacrimosas, programas de auditório e circos de reality show. Não há espaço para o pensamento questionador; fica cada vez mais reduzida a liberdade de escolha. Marchamos para uma autocracia eletrônica, um despotismo inteligente, como nos piores pesadelos de Aldous Huxley. Os noticiários sobre os eventos internacionais, nas revistas e nos telejornais, aproximam-se cada vez mais do estilo do antigo Pravda: o que conta não é o fato, mas a interpretação ou motivação ideológica. Basta vermos a cobertura da recente guerra afegã, por exemplo, ou da campanha contra o Iraque. Quais podem ser as possibilidades da poesia nesse labirinto de espelhos deformados? Resistir; ser a voz contrária, borrão de tinta na tela, vírus de computador que anarquiza, destoa e contradiz esse trágico desatino.

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Claudio Willer - Cito aquilo que Octavio Paz escreveu a respeito em A outra voz? Ou então, este trecho de Os filhos do barro: "A poesia  moderna oficia no subsolo da sociedade e o pão que divide entre seus fiéis é uma hóstia envenenada: a negação e a crítica. Mas essa cerimônia entre trevas é também uma procura do manancial perdido, a água da origem." É claro que ele se refere à poesia hermética, difícil, ao texto não-discursivo. Pode não ser inteiramente verdadeiro, abranger apenas parte da poesia, mas que é bonito, isso é. Veja que a identifica quase como uma cultura underground, entende-a como discurso à margem, por seu caráter não-instrumental. Concordo, é claro; e mais, acho que, quanto à relação entre poesia e sociedade, continuamos no ciclo inaugurado pelo Romantismo em sua oposição à sociedade burguesa, representado e até encarnado por personagens como Baudelaire e Rimbaud, e, no século XX, com especial vigor, pelo surrealismo.

Ou seja: tudo mudou, mas, ao mesmo tempo, tudo continua igual. Já observei isso em outras entrevistas, inclusive aquela feita para o Balacobaco: o que Baudelaire escreveu sobre o lugar do poeta na metrópole, na sociedade de massas, continua valendo.

Precisamos ser claros ao usar a expressão "contemporâneo". Hoje é quando? Há cento e cinqüenta anos, Baudelaire já transmitia a idéia do poeta como ser à parte, isolado e marginalizado na sociedade de massas, o albatroz obrigado a levar uma vida pedestre, como naquele poema de As flores do mal e em tudo o que ele escreveu sobre a vida na metrópole. A contradição poesia/sociedade (sociedade burguesa, industrial, pós-industrial, de massas, de mercado, midiática, o que for) já foi claramente estabelecida no Romantismo, e não mudou em sua essência, a não ser pelo fato da sociedade burguesa, hoje, ser menos fechada, mais permeável. Por exemplo, você não tem censura direta, não toma processos por escrever poemas - e este é um avanço recente. Aliás, sempre houve, na civilização ocidental, tensão entre poesia, descontado o beletrismo eloqüente, e sociedade; basta lembrar que Camões foi criticado em seu próprio tempo, excluído, visto com desconfiança por suas inovações, e só depois convertido em nosso autor mais canônico. Isso, entre tantos outros exemplos.

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Fabiano Calixto - É difícil dizer quais as perspectivas do Homem no mundo contemporâneo, e a poesia, sendo produto desse mesmo Homem, caminha, assim, ao seu lado, na mesma obscura perspectiva, no mesmo sufoco, com a mesma corda no pescoço. Neste momento, por exemplo, estamos presenciando uma guerra absurda sob o comando insano de um fascista chamado Bush - o presidente dos Estados Unidos da América e magnata do petróleo. Pergunto-me: Há saída? Há perspectiva? Se há, temos que nos esforçar muito para enxergá-la. Se não há, temos que colocar todas as nossas forças no projeto de fazê-la existir.

Acho que as pessoas estão de saco cheio de conversas que não dão frutos. A desesperança é total. Isso vislumbrado de um prisma muito mais amplo que a vitória, no Brasil, de um presidente vindo da massa trabalhadora. Este fato é de grande importância, sem dúvida, mas os problemas são muito maiores do que os sonhos que esta eleição gerou no imaginário das pessoas. Friamente pensando, o que podemos fazer, enquanto cidadãos e artistas, é preparar algo melhor para o futuro. Fazer as coisas acontecerem hoje para que amanhã possamos colher algo que preste neste sanatório geral no qual vivemos. A diferença cultural e social é brutal. E isso tem que mudar. E, pior, sabemos que não é para já. Tem que haver um trabalho sério. Confiamos nossa perspectiva a alguns sujeitos nos quais votamos, mas os eleitores neste país não têm o hábito de cobrar seus eleitos. A cobrança dos direitos seria um primeiro passo. Chegar junto, protestar, fazer o ar ficar mais leve.

O caos assola também a cultura em geral, em específico a poesia, cuja perspectiva tentamos dar nesta conversa. Veja, a televisão inexiste enquanto veículo de informação e cultura. E é a partir da tela da TV que a maioria das pessoas formulam seu raciocínio sobre o mundo em que vivem. Isso é quase a morte! As rádios, com uma ou duas exceções, são um completo lixo - são os jardins suspensos do jabá! O mercado editorial joga todos os anos livros e mais livros nas prateleiras das livrarias nacionais - uma pesquisa de 2001 mostra que o mercado editorial superou a indústria fonográfica, isso significa um aumento gigante na produção e venda de livros neste país. No período de 1990 a 2000, o faturamento cresceu 122,2%!, os editores (ou editadores, se preferirem) descobriram que se pode ganhar muito dinheiro com publicações ordinárias. Com esses dados, penso que a discussão sobre a leitura/livro no Brasil deva ter outras escalas, porque o brasileiro hoje lê muito mais do que há dez anos, só que o que esse sujeito lê é de qualidade duvidosa, é enlatado made in USA, ou romancezinho de quinta, livros de magos e monstros, de como fazer crescer pêlo em ovo em quinze dias etc. etc. etc. Você entra no trem, no metrô, no ônibus, há muitas pessoas lendo. O problema está, como disse, na qualidade do que lêem.

Observe a educação, a escola pública é um terror e está cercada de incompetência por todos os lados - e isso não é implicância minha, as pesquisas estão aí, na cara de todo mundo. Alunos das mais variadas idades e séries que não sabem ler, escrever, raciocinar, e que não vão ter, em hipótese alguma, chance de concorrer com outros estudantes que vieram do bom ensino particular.

Mais uma vez, pergunto-me: Quais as perspectivas num mundo como este? Num país como este? Diante de tal quadro, em que coloquei alguns mínimos detalhes, não sei se há perspectiva.

Lembro aqui um trecho de Schopenhauer: "Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente agora o destino nos prepara - doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura, morte etc." Somos todos carneirinhos felizes enquanto os açougueiros do sistema escolhem friamente suas vítimas. Esta é a situação do Homem contemporâneo.

Agora, sobre poesia, só vejo saída nos trabalhos que têm ousadia, força e inteligência - assim como somente acredito num povo com as mesmas características. Não acredito nos poetinhas do academiquês, com seus poemas gasto-gago-gregos-titiquinhas-de-Homero, com suas teses-fezes. Isso para mim não interessa em nada.

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Fabrício Carpinejar - Como fixar o valor das coisas? Como cambiar o preço flutuante do mundo? Quando enterradas, quando gastas pela troca e uso das mãos, as palavras começam a ganhar história. E só ganham memória na desvalorização. As perspectivas da poesia são as melhores, porque ela não tem nada a perder. Atingiu o anonimato necessário para vir à tona. Não cabe aos poetas combater o concretismo, o formalismo, o surrealismo,  o romantismo, o realismo e outros movimentos. Até porque o combate é a forma mais forte de influência. Acabou o maniqueísmo, não obrigando a apagar as diferenças, e sim preservar a coexistência de diferentes pulsões. A poesia brasileira passou pela fase de provação acadêmica, de virar objeto de especialista, e não do público (como nossas universidades são muito recentes, ao contrário de instituições seculares de países como o México, a poesia sofreu como rato de laboratório de teses), dos experimentalismos, está preparada para emergir de influências determinantes como Manuel Bandeira, João Cabral e Drummond. Vai rejuvenescer como um dialeto, um idioma necessário para a reconciliação do homem com o mundo primevo. Falará para a sociedade mais do que para o mercado. Será um foco de resistência, assumindo sua condição de contra-senso e magia. Em um momento em que as pessoas carecem de fé, ela será um jeito de acreditar na linguagem e reaver os lazeres vendidos a custo baixo (o excedente do trabalho é exclusão). Será um ócio mobilizador, uma paciência voraz. Se os detalhes são esquecidos pela pressa produtiva, o que interessa ao escritor é ser a sobra, rebater a extinção das lembranças fúteis, reciclar o tempo perdido. Como diz Machado de Assis, a literatura deve ser "mais que um passatempo e menos que um apostolado". Creio na espontaneidade maior que não signifique desleixo, trocadilhos e publicidade, creio na forma espontânea que não priorize a rima ou um efeito premeditado, creio na epopéia da intimidade. Vejo que acontecerá uma maior valorização de leitores de poesia, caso ela seja aplicada como criação na sala de aula desde a infância, não apenas como leitura.

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Glauco Mattoso - A pergunta é ambiciosa e sua resposta exigiria no mínimo a inclusão num livro impresso em cuchê e encadernado em couro, ou então um diploma manuscrito em gótico com iluminuras nas capitais e moldura com arabescos, já que o convite a discorrer parece sabatina de colégio. Mas como sou insubordinado, e por isso me tornei poeta, trato de desobedecer, pelo menos em parte, o regulamento. Respondo, portanto, não em lauda mínima ou fonte obrigatória como proposto, e sim ilustrando minhas posições com sonetos, a exemplo do que faço nas crônicas e ensaios (em que intercalo prosa e poesia) para as colunas virtuais que assino em diversos sítios. Dito isto, passo à primeira resposta ressalvando que a poesia não tem perspectivas reais, só tem perspectivas imaginárias.

Quanto à contemporaneidade do mundo, poder-se-ia dizer da poesia o mesmo que  se diz da política, ou seja, que quanto mais muda, mais continua sendo a mesma. Os poetas sempre foram, desde os primórdios da civilização macacal, menos compositores que intérpretes da realidade, isto é, reelaboram a palavra para reforçar seu eterno significado sob uma aparência de invenção. Na prática nada se cria (porque tudo é recriado) e nada se copia (porque cada poeta é seu estilo individual), mas tudo se apropria (isto é, se ajusta como roupa às medidas de quem veste e à moda que veste os outros), de modo que na atualidade o tamanho do guarda-roupa poético continua ocupando o mesmo espaço do quarto e da casa que ocupava há séculos. Isto significa dizer que, em tese, o poeta é onipotente e na prática não passa de um visionário. E como de médico e de louco todo mundo tem um pouco, todo poeta tem seu público e ao mesmo tempo o público leva os poetas a sério só de vez em quando, nos momentos de delírio. Esse é o alcance da poesia: surtos e transes. A poesia não vacina, a poesia vaticina. A poesia não cura, a poesia anestesia. A poesia não é uniforme, é fantasia. Não é escudo nem colete antitiro, é máscara. Seu território e sua fronteira são, portanto, tão curtos quanto um feriadão de carnaval. Se entendermos a expressão "reais perspectivas" como um espaço físico num tempo histórico, posso ilustrar este tópico com dois sonetos topográficos e cronológicos:

 

SONETO 148 CASEIRO


Poema é como um plágio involuntário,
evoca alguma coisa que foi dita
sem ter na consciência que repita
chavões tradicionais do adagiário.

Se digo que sou falso plagiário,
ninguém na panelinha me acredita.
Mas, se parafraseio alguma cita,
daquilo já me julgam proprietário.

Idéia não tem dono, só inquilino.
Se existe estelionato do intelecto,
na lei do inquilinato me vacino.

Já residi num prédio de concreto.
Morei também num mote fescenino,
mas hoje não motejo, só soneto.

 

SONETO 510 MALOCATÁRIO


Soneto é um apertado apartamento
num vasto condomínio de inquilinos.
A mesma planta e vários seus destinos:
um drama urbano em cada pavimento.

Dois quartos, pouca luz e muito vento,
que podem ser alcovas ou cassinos,
paróquias parcas, clubes clandestinos,
abrigo do autor brega ou do briguento.

Agora virou zona, mas um dia
foi casa de família e regra tinha:
conversa só começa se o pai pia.

Além da comezinha escrivaninha,
só tem privada, cama, mesa e pia.
Sem sala, o papo acaba na cozinha.

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Jorge Lúcio de Campos - Uma das mais valiosas conquistas (se não a mais valiosa) efetuadas pelo homem deste fim-de-século foi a sua conscientização, ao que parece (no mínimo, torço para tanto) definitiva, de que a autonomia é um dado natural, e não algo muito maior - uma espécie de ideal dourado - pelo qual sempre valeria a pena lutar e até morrer, mas que ficaria ad infinitum isolado numa campânula ou difratado como um traço no horizonte, modulado no mapa sinuoso de um território, enfim, inalcançável por si só. O fim desta importante mistificação pode representar, é certo, um decisivo passo emancipatório e não somente o de uma prática onanística de quase três séculos. Afinal de contas, ser autônomo - ou estar consciente de que ser autônomo é algo perfeitamente exeqüível - é uma condição intrínseca para qualquer ser pensante que se saiba enquanto tal e se importe com isso.

Em seu estágio atual, esse processo - que também supõe, como acabei de propor, o de uma providencial autoconscientização - já se revela urgente para alguns obstinados segmentos da sociedade (lamentavelmente ainda tímidos e estranhos demais à maioria de nós), favorecendo, claramente, uma pulverização dos metadiscursos de outrora em micronarrativas deveras maleáveis no que tange à conjunção e à pertença simbólicas. Em função disso, falar-se em conceitos de índole platônica como "modelos", "paradigmas" e "cânones" torna-se complicado, ao menos no que tange à produção dissidente e estridente daqueles segmentos. Quero dizer com isso que, em termos literários, os poetas competentes de agora não têm outra alternativa que trabalharem individualmente, um pouco solitariamente, em busca de soluções não submetíveis aos critérios velozes de avaliação "cômoda", oriundos quase sempre das máquinas de rostificação que os homens da mídia e os burocratas de sempre acionam sem parar.

O processo criativo (não só em termos poéticos) não pode, sob pena de se autodesqualificar, deixar de marcar uma invariável positividade. Um artista criativo é aquele que consegue conceder (direta ou indiretamente) à sua obra a capacidade de afirmação e instauração do sentido. Por detrás da complexidade da fatura da boa poesia (assim como da boa pintura etc. etc.), estão dois agenciamentos mínimos fundamentais: a intuição (o bom poeta é sempre aquele bem-sucedido na extração-captura ordenadora do sentido bruto-caótico das coisas) e a expressão (o bom poeta é sempre aquele que sabe expressar, adequadamente - de forma a torná-lo esteticamente compartilhável - o resultado "concreto" daquela extração-captura). Dentro de tal contexto, a valoração de um poema se mostra, então, muito relativa. Dependerá, enormemente, dos elementos mínimos disponibilizados, no ato do encontro, pelo poeta e pelo leitor-avaliador de sua poesia. Isso sem contar com os aspectos psicológicos que, inevitavelmente, interferem no processo, acelerando-o ou estancando-o. A grande arte nunca foi e ainda não é da ordem das multidões, pois sua universalidade não pode ser "fabricada", apesar do esforço, cada vez mais agressivo, dos meios de comunicação e dos agentes do mercado. A grande poesia é da ordem solitária dos indivíduos-neles-mesmos e de suas clandestinas partilhas interpessoais.

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Luiz Roberto Guedes - A despeito do desencantamento deste mundo pós-utópico, da hegemonia dessa divindade chamada Mercado, a poesia permanecerá sempre como uma necessidade do espírito humano, uma expressão inelutável da aventura de ser, transbordamento de uma demasia do ser. Uma fome de beleza que jamais poderá ser saciada pelas quinquilharias cintilantes do mundomercado.

Sua perspectiva é de sobrevivência e perene resistência, apesar de/ou por sua mesma inutilidade, sua menos-valia de artefato gratuito, que existe por si e porque sim. Curiosamente, hoje se suspeita que a arte, esse produto sem finalidade, seja uma verdadeira necessidade biológica, e não só do homem, mas de outras espécies, como elefantes, macacos e até gatos, a julgar pela pintura que produzem. Quanto à questão do lugar da poesia no mundo das mercadorias e do espetáculo - onde o ataque ao Iraque foi um show televisivo - seu "nicho de mercado" é mínimo, mas suficiente. A aparente desimportância da poesia nesta chamada "supermodernidade" é um queixume de poetas magoados por esse exílio ou invisibilidade em cena,  mas não há o que lamentar, pois ela, a poesia, não se reduz a entretenimento, não compete nem se confunde com os produtos pretensamente culturais dessa indústria: fáceis, rápidos, balanceados como rações. O critério de qualidade desta era macdonaldizada é aquele proclamado pelo Fausto Silva: "um milhão de cópias vendidas". O tempo da poesia é outro, contemplação, reflexão, síntese; ciclo contrário ao imediatismo do chamado tempo real, velocidade e virtualidade que hoje "desrealizam" o mundo e abduzem as mentes, como alertou Paul Virilio. No entanto, hoje o gueto poético também é global, pois a internet promove a circulação universal da poesia. Assim, a sociedade dos poetas proscritos persiste em seu ofício de rebelião permanente, espalhando palavras ao vento, porque ser "as antenas da raça" é destino inescapável. A história não acabou, e a poesia sempre será possível, mesmo depois de Auschwitz e da queda do World Trade Center. Aliás, já li poemas imediatos e pontuais sobre este último evento. Vejamos se a destruição da biblioteca de Bagdá ou o saque do museu nacional iraquiano também dão samba, perdão, poesia.

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Ricardo Aleixo - A real perspectiva da poesia, hoje, é continuar existindo, a despeito dos inúmeros diagnósticos que afirmam que ela se encontraria em estágio terminal. Pura burrice. Ou, na melhor das hipóteses, má-fé. Como pode a poesia desaparecer, se sequer começamos a compreender o que é poesia e o que ela de fato pode significar para as nossas vidas? Quanto a isso, não tenho a menor dúvida: poesia é forma de conhecimento - como a filosofia, a religião, o amor. O "mundo contemporâneo" pode nem saber que precisa da poesia, mas precisa, sim. Sou daqueles que, como Mário Faustino, crêem que "o poeta é, entre outras coisas, um dos homens que compõem a tribu prophétique, alimentadora da esperança dos homens, descortinando-lhes um futuro mais nobre". Parece tão datado isso, não parece? Mas é o que me orienta e me dá alento quando penso no "papel" da poesia. Já há muita gente entregue à tarefa de anunciar o fim do mundo, da história, do amor, da poesia e de tudo.

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Rodrigo Garcia Lopes - Numa sociedade de massas, em tempos de bombardeamento de informações e maciça manipulação da linguagem (seja através de notícias, pela propaganda e pelos meios de comunicação) acho que a poesia permanece como força de resistência contra a automatização e pasteurização de comportamentos, usos de linguagem e percepções. A poesia é vital em nossos dias porque ela nos força a parar e prestar atenção, a desfamiliarizar e assim questionar o jeito como geralmente processamos as informações, os dados imediatos da consciência. Como escreve Guy Debord, no ensaio que traduzi para a revista Coyote: "A notícia é a poesia do poder, a contra-poesia da lei e da ordem, a falsificação mediada do que existe. Controversamente, a poesia deve ser compreendida como uma comunicação direta dentro da realidade e como a alteração real desta realidade. É linguagem liberada, linguagem recuperando sua riqueza, linguagem rompendo seus significados rígidos e que abraça simultaneamente palavras e música, gritos e gestos, pintura e matemática, fatos e atos. A poesia depende, assim, das mais ricas possibilidades de viver e de mudar a vida num determinado estágio da estrutura socioeconômica. Nem é necessário dizer que esta relação da poesia com seu material mais básico não é de subordinação de um ao outro, mas uma interação." A poesia aponta e incorpora outros modos de ver, de sentir, de ser e estar no mundo. Como diria Paulo Leminski, ela é um inutensílio, e este é seu trunfo numa sociedade lucrocêntrica. No entanto, e ironicamente, ela é também "a última fronteira onde a arte se defende das tentações de virar ornamento e mercadoria". A poesia é única por compartilhar seu meio essencial, as palavras, com outras formas de comunicação. Em termos de Foucault, é, potencialmente, um contra-discurso entre discursos. Existem povos sem prosa, mas não sem poesia. Todas as culturas começam com ela. As qualidades sonoras, sensuais e perceptivas da poesia satisfazem uma necessidade humana fundamental. Acredito numa ligação visceral entre poesia e vida. Ou como diria Leminski, de novo, "é a linguagem que deve estar a serviço da vida, não a vida a serviço da linguagem". Por outro lado, é vital entender poesia como a arte da linguagem. E isso significa reconhecer sua diferença e peculiaridade em relação aos demais tipos de linguagem que usamos ou que chegam até nós diariamente. Reconhecer os discursos à nossa volta (a linguagem estando sempre colada à cultura em que está imersa) é fundamental como forma de insubordinação e resposta individual a um mundo cada vez aterrorizado pela caretice e pelo terrorismo, cada vez mais saturado de informações, onde fato se mistura à ficção, impactado por tanta violência, miséria, mesquinharia, e que assiste à banalização da sensibilidade. Poesia, assim, interessa hoje enquanto uma forma de vida e de linguagem, e que funde arte e pensamento. Acredito na poesia como forma máxima de conhecimento do mundo. A poesia força as palavras até os limites da linguagem. O próprio poema cria uma nova realidade de palavras.

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Ronald Polito - Uma resposta possível seria lembrar a frase tão citada e já desgastada de Adorno, para quem não seria mais possível escrever poemas depois de Auschwitz. Mas creio que os próprios fatos desmentem este tipo de perspectiva catastrofista, pois simplesmente (bons) poemas continuam sendo escritos, mesmo depois do Vietnã, da Coréia, das ditaduras latino-americanas e ibéricas, da Bósnia, da Angola, do Iraque atualmente, da próxima destruição de amanhã, de daqui há um século, um milênio etc., enfim, do "nazismo universal", nas palavras sintéticas de Jorge Mautner e Caetano Veloso. E nem acho que, por causa destes e outros fatos da miséria humana, seria mais difícil (ou mais fácil?) escrever poemas.

Outra resposta possível seria empreender uma leitura do mundo contemporâneo como o pior dos mundos possíveis, coisa que também não me atrai e nem convence, bem como o raciocínio contrário, do tipo "vivemos no melhor dos mundos possíveis", que é outro modo patético de experimentar e viver a realidade. Talvez pela minha formação acadêmica de historiador, causam-me tédio estes padrões de observação que considero rasteiros e ingênuos, pois incontáveis épocas se imaginaram como as melhores ou as piores possíveis, e não há um aparelho de medição do péssimo ou do ótimo. Vivemos pior ou melhor do que nossos antepassados? Esta pergunta não permite nenhuma resposta razoável, talvez porque a própria pergunta careça de legitimidade ou consistência epistemológica.

Sendo (para mim) a poesia essencialmente um problema de pesquisa da linguagem, as perspectivas para ela são o enfrentamento das questões de linguagem que cada tradição poética construiu em suas diversas configurações espaço-temporais. Dependendo do fôlego, do interesse e da erudição do poeta, ele buscará responder a poucas ou muitas interrogações e perplexidades, ligadas apenas a seu pequeno universo lingüístico circundante ou referindo-se a círculos mais amplos, que transcendam inclusive o âmbito sempre limitado da cultura em que nasceu, se educou e através da qual geralmente se expressa. Mas, por mais amplos que sejam esses círculos que o poeta seja capaz de absorver, creio que eles nunca se conjuminarão no "mundo contemporâneo", objeto desmesurado e inapropriável por qualquer ato cognitivo. Pois há muitos "mundos" e a idéia de "contemporâneo" também parece pressupor uma sincronia, uma simultaneidade que são fáceis de falsear empiricamente. O que não impede alguns poetas de conseguir atingir certo grau de universalidade, sempre relativa, sempre incompleta, limitada. Como os seres humanos.

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Donizete Galvão - Falar em reais perspectivas pode virar um exercício de pretensão. Haverá algumas perspectivas reais e outras falsas?  Entendo que o trabalho do poeta, como de todo artista, é um tatear no escuro. A poesia vive no risco, na instabilidade, no improvável. Se a gente nem sabe se vai escrever mais um poema ou mais um livro, como saber quais são as reais perspectivas da poesia? Quando termino um livro, eu me sinto zerado. Há momentos em que acho que nunca mais escreverei nem um verso. Portanto, não me sinto autorizado a fazer especulações sobre perspectivas. Acho que isso pode interessar mais aos críticos literários que acompanham a produção poética, se não do mundo, pelo menos do país. Para o escritor o importante é seguir escrevendo, sem interrogar muito se há futuro. Ele escreve porque não conseguiria viver sem a escrita. Não há outra saída.

Em todo caso, podemos divagar um pouco. Podemos pensar em um panorama mais pessimista, como a do crítico Giulio Carlo Argan que temia que a poesia se transformasse numa espécie de doutrina esotérica, uma "alquimia", feita e lida apenas para um grupo de iniciados. Acho que esse é um perigo real. Sendo mais otimista, lembrei-me de Harold Bloom em O cânone ocidental, naquela parte em que ela comenta Vico e fala da idéia da poesia como uma "religião sem Deus". Pensar na poesia como a recuperação de um terreno sagrado me dá um certo alento. Acho que vivemos em um mundo completamente dessacralizado, em que o sentido espiritual desapareceu da obra de arte. A mim interessa muito essa idéia da arte como elemento de religação do homem com o cosmo, como disse Ponge.

Agora, voltando os olhos para a realidade, é inegável que a arte tem ocupado cada vez menos espaço na vida das pessoas. A mente do homem de hoje é muito dispersa, quer coisas rápidas, agradáveis, digeríveis. Penso, por exemplo, no cinema voltado,  exclusivamente, para adolescentes que já não conseguem acompanhar um filme que não contenha centenas de efeitos especiais ou numa sessão que não seja acompanhada por um balde de pipocas, coca-cola, balas e chocolates. Se o homem moderno não consegue se concentrar em duas horas de filme, como vai querer se mirar no espelho distorcido da arte? O mergulho em uma experiência estética causa também dor. As pessoas, hoje, querem ser belas, perfeitas, alegres, célebres. Será que têm tempo ou disposição para encarar um romance ou mesmo um livro de poemas? Não é incomum que as pessoas comentem que "viram" você na revista tal, mas nem sequer comentem o que leram, se gostaram, se detestaram. Pensando nessa cultura em que há tão pouco espaço para a individuação, onde todos são meros consumidores, fica difícil pensar em abertura para a poesia. Ela não tem nada a ver com o que chamam de "mercado editorial". Acreditar nisso é uma ilusão. Sem um público leitor, ainda que pequeno, fica difícil até mesmo para o autor sentir a importância do que está fazendo. E, quando falo público-leitor, não estou me referindo aos próprios poetas, críticos, editores de revista, que compõem o circuito fechado dos apreciadores da poesia.

Por isso, acho que devemos pensar a poesia como um sal que atua em um terreno limitado, mas não é menos importante. Importa, sim, para a língua do país e para a sua cultura. Mesmo as pequenas tiragens podem exercer, com o tempo, um efeito multiplicador. A poesia tem seu valor na hora de tornar a língua mais rigorosa, menos inflada, sem clichês. O grande compromisso do poeta é servir à língua para que ela se expanda, se desenvolva, se enriqueça com atritos e reverberações. A poesia deve dizer não à vulgaridade da linguagem, ao mercantilismo, ao pensamento rasteiro. É um trabalho de Sísifo, mas os poetas precisam encarar que a poesia é uma vocação difícil.

Portanto, olhando para o mundo pequeno da poesia, acho que temos que ter esperança. Primeiro, porque a internet abriu muito as possibilidades de comunicação entre os poetas, as trocas de leituras, os sites, os blogs. Isso causou uma efervescência. Se a quantidade não é sinal de qualidade, acho que alguma coisa boa vai sim surgir desse caldo. Revistas virtuais, como a Storm Magazine e a Agulha, têm dedicado bons espaços para a literatura e a poesia em particular.

Além disso, no Brasil, aumentaram muito as publicações voltadas para a poesia. Ainda que com tiragens pequenas, uma periodicidade incerta, são muitas as revistas poéticas. Posso citar o mais antigo dos suplementos, o Suplemento Literário de Minas Gerais, hoje editado muito bem pelo Anelito de Oliveira. Temos a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, Inimigo Rumor, Sebastião, Coyote, Babel, Sibila, Rodapé, Et Cetera e por aí vai.

Mesmo na grande imprensa, há espaço para a poesia, como o caderno Mais!, da Folha de São Paulo, onde publiquei dois poemas. São projetos que podem amadurecer, outros podem ter vida curta, mas está havendo uma movimentação. Acho que a fase da lamentação já foi superada.

Se pensarmos em nomes, há poetas muito jovens que já são donos de uma obra de boa qualidade e ao que tudo indica vão produzir grandes livros. Penso em André Luiz Pinto, Dirceu Villa, Eduardo Sterzi, Paulo Ferraz, Tarso de Melo, Rodrigo Petrônio, que têm menos de trinta e devem produzir muita coisa boa nas próximas décadas. Ou em nomes já mais conhecidos, como Claudia Roquette-Pinto, Fábio Weintraub, Ruy Proença, só para citar alguns, que ainda têm muito caminho pela frente e já atingiram sua maturidade. Na área da crítica, há tantos bons nomes surgindo, todos preocupados com a produção contemporânea, e que unem erudição e sensibilidade. Cito os nomes de Eduardo Sterzi, Priscila Figueiredo e Sérgio Alcides como prova de que a crítica vai muito bem.

Portanto, se olharmos à nossa volta, veremos que existe produção poética de qualidade e massa crítica. Agora, como isso vai se comportar em termos de perspectivas culturais fica difícil saber. Sem a outra ponta, que é o público-leitor, o ciclo não se completa. Entendo que o artista não pode perder a esperança. Parece contraditório, mas sou um melancólico esperançoso.

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Floriano Martins - As perspectivas da poesia são essencialmente de natureza estética. Desta maneira, não podem ter senão leitura múltipla, uma vez que comportam uma infinidade de abordagens da linguagem poética. Tampouco cabem restringi-las à contemporaneidade, porque atuam tanto dentro como fora do tempo. A menos que se esteja a pensar não na criação mas sim na produção de obras poéticas, o que não pode ser dissociado de aspectos como veiculação, difusão, reflexão. Tem-se aí uma complexidade que envolve primeiramente um conhecimento da matéria com que se lida, o que vale tanto para o poeta ao criar o poema quanto para o editor ao optar por este ou aquele livro, o crítico ao traçar paralelos subterrâneos entre as obras que comenta, e o próprio leitor, no pleno exercício de sua sensibilidade. Isto quer dizer que falta cultura a todos os componentes desse cenário: poetas, editores, críticos, leitores. Por aí, pela busca de tentar corrigir essa carência, é que se estaria a desenhar um esboço vital do que desconfio a pergunta trata como real perspectiva da poesia.

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[ ZUNÁI- 2003 - 2005 ]