ANTÓNIO MARIA LISBOA
H
Sei que dez anos nos separam de pedras
e raízes nos ouvidos
e ver-te, ó menina do quarto vermelho,
era ver a tua bondade, o teu olhar terno
de Borboleta no Infinito
e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço
em que tu eras uma estrela que caiu
e incendiou a terra
lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos.
RÊVE OUBLIÉ
Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna
Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo
Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada
Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro
E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata.
VARECH
Eu estimo sobre tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos inúteis, a tua boca verde
Eu falo somente dos relógios caídos, dos autocarros
Eu falo somente dos pés vermelhos
Eu falo... eu falo... eu falo...
No vigésimo século as nuvens são árvores
e os pássaros mais pequenos grandes paquidermes
Sim, é verdade, os cabelos loiros
Então, meia-noite!
Senhora, se me dá licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente
A criança é porca, é inútil
Muito obrigado.
O AMOR DE ARTHUR RIMBAUD
O MESTRE DO SILÊNCIO
Nas montanhas onde moram as estrelas
bosques que existem há mil anos
de cabelos negros como o luar e a brisa da tarde
quando entra branda entre as pétalas das flores
que se inclinam sobre o morto que dorme
e misteriosamente repete:
«Sur l'onde calme et noire où dorment les étoiles
Un chant mystérieux tombe des astres d'or»
semi-saído da terra com um olho infinito aberto
morto há um ano ao nascer da lua
morto há um dia ao nascer da rosa
morto há um sonho, morto há um gesto
frente ao sopro das árvores da noite
tocou o seio infante numa primavera
e misteriosamente repete:
«Ô pâle Ophélia! belle como la neige!
Ciel! Amour! Liberté! Quel rêve, ô pauvre Folle!»
transparente sobre a terra mole de lava de estrela
sobre cabelos idênticos aos dos mortos desolados
morto há mil anos repete:
«La blanche Ophélia flotte comme un grand lys»
o morto misteriosamente diz:
«Il y a une horloge qui ne sonne pas»
AS CINCO LETRAS EM VIDRO
É um estilete de luz
a imensidade de que és feita
e contorna um azul-sonho-neve
igual aos cabelos que descobri a saírem da tua boca
- dos teus olhos de imaginação
- dos teus lábios curvos de aurora.
Saímos
enquanto as pessoas olhavam admiradas o Arco do Triunfo
deixando escorrer dos bolsos fitas e serpentinas
para tudo se passar como no pássaro
para deixar objectivamente escrito
nas margens do rio
do Mar
- o continente submerso
- o navio de todos os amantes
por onde rola a carruagem em que viajamos
pintada de Liberdade e de Poesia
contigo a dormir sobre o meu peito.
POR ISSO EU SENTI SER FÁCIL O SUICÍDIO
FÁCIL E POSSÍVEL.
Fixou-se no muro da tua residência
sobre a porta que se abre ao visitante
um símbolo mágico e de cabala
- a oportunidade do meu regresso
- a história maravilhosa que te direi na viagem.
Procurei
nas folhas espalhadas pelo nosso leito
a recordação do que há-de vir
- apenas no esparso
- no diverso
- no acto simultâneo de defesa
- no viajar de aeróstato incógnito de distância
- na noite mágica
NA PRIMEIRA GRANDE NOITE MÁGICA QUE NÓS
TIVEMOS.
Abriu-se a janela que caminhava sozinha
e saiu um sonho simples de criança:
O METEORO DA TRANSFORMAÇÃO
pousado a um canto o meu Jogo de Cabala
(um montinho de quadrados,
de círculos, de triângulos,
dispostos geometricamente
sobre um tabuleiro grande)
o meu Tratado de Magia Humana
(um caminho de ogivas, um
relógio a dar horas sobre
um túmulo em pé, os postes
magnéticos, os cordões da angústia)
FALO - no Laboratório Mágico ao dar-se a aparição espon-
tânea de Lautréamont e Freud que traziam sobre as
sobrancelhas um corte fino a atravessá-las lado a
lado: -
Ao aparecer a mulher escandalosamente
vestida de vermelho
ele dirige-se para a jovem
e os outros passeiam sobre as rochas
onde fica oculto o corpo do homem que chega continuamente
E MUDO APONTA O HORIZONTE.
*
António Maria Lisboa nasceu em Lisboa em 1928. Frequentou o Ensino Técnico. Participou do grupo dissidente Os Surrealistas e escreveu, junto com Cesariny, um manifesto do Surrealismo português intitulado Afixação Proibida. Publicou Ossóptico (1952), Isso Ontem Único (1953), A Verticalidade e a Chave (1956), Exercício sobre o Sono e a Vigília de Alfred Jarry seguido de O Senhor Cágado e o Menino (1958). Morreu turbeculoso com apenas 25 anos. |