ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ALGUMAS NOTAS SOBRE O SURREALISMO PORTUGUÊS

 

 

Izabela Leal

 

 

O surrealismo português conheceu duas gerações. A primeira delas, formada na segunda metade dos anos 40, deu origem a dois grupos distintos: o Grupo Surrealista de Lisboa e Os Surrealistas. A segunda, pouquíssimo estudada, formou-se em meados dos anos 50 e deu origem ao chamado Grupo do Café Gelo. Esta geração foi bastante influenciada pelos poetas do grupo Os Surrealistas, nomeadamente António Maria Lisboa e Pedro Oom.

 

Imagens do Surrealismo em Portugal

Quando num país o poeta não é mais poeta se não pertencer a um partido e o homem não pode ser homem se não for um carneiro, o grande mito do século – LIBERDADE – deixa de ser mito para se tornar realidade visível que se procura com ânsia e desejo. Quando num país a igreja católica transforma os homens em seres sem sexo e a ditadura do Papa obriga os poetas a serem padres ou castrados, o nosso furor sexual obriga-nos ao grande acto mágico da subversão de valores e à afirmação total do nosso direito de foder livremente, de sermos os verdadeiros poetas do amor, da destruição, da surrealidade. (TCHEN, 2001, p. XVIII)

 

 

 

A poesia feita por todos

Através da citação deste trecho do "Comunicado Surrealista", assinado por Mário Henrique Leiria, João Artur Silva e Artur do Cruzeiro Seixas, ficam bastante claras as aspirações do movimento surrealista português, que podem ser enumeradas na procura da liberdade, do amor, da revolta e da surrealidade. Apesar de tomar como modelo o movimento surrealista francês[1], em Portugal o Surrealismo deparou-se com situações bem mais complicadas do que as enfrentadas pelo movimento na França, já que foi tardio e coincidiu com a época em que o país se encontrava em plena ditadura salazarista, além de ter se desenvolvido logo após a II Guerra Mundial.

 

O comunicado em questão foi escrito em 25/04/1950 – "precisamente 24 anos antes do 'dia da liberdade'", como observa Adelaide Tchen em A aventura surrealista (TCHEN, 2001, p. 125) – e deveria ter sido publicado por Simon Watson Taylor, na França, mas acaba permanecendo inédito por divergências políticas dentro do grupo surrealista francês.

 

O salazarismo em Portugal representou um enorme obstáculo em relação ao desenvolvimento das atividades culturais e artísticas, já que havia uma submissão necessária às práticas da censura, o que impedia a livre circulação e exibição das obras. Assim é que o projeto surrealista, num primeiro momento, compartilha os ideais neo-realistas, na medida em que ambos se configuravam como projetos coletivos que tinham como objetivo mudar a vida, o mundo e, logicamente, a sociedade portuguesa. Devemos lembrar, inclusive, que muitos dos artistas que se engajaram no Surrealismo participaram anteriormente do movimento Neo-realista. Podemos apontar, do grupo que se reunia no café Herminius por volta de 1942 e 1943, nomes como o de Mário Cesariny, Marcelino Vespeira, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom e Alexandre O'Neill, entre outros.

 

Entretanto, após um curto período, os autores assinalados anteriormente decidem desligar-se do Neo-realismo, por não acreditarem que seria possível transfigurar o real cotidiano através da literatura que era realizada por esse grupo.[2] Para os surrealistas, o que importa não é a representação da realidade, mas sim a criação de uma realidade nova que se produz através de uma transfiguração dos objetos, da perda de seu sentido usual.

 

É com base nesses ideais que António Maria Lisboa profere uma palestra no encontro realizado no Jardim Universitário das Belas Artes (JUBA) intitulada "A Afixação proibida", em 1949, da qual citaremos o trecho abaixo:

 

A actividade Surrealista não é [...] uma simples acção libertadora das coisas que chateiam, mas um golpe fundo de cada vez que é dado na realidade presente. Não é de facto uma simples purga seguida de um dia de descanso a caldos de galinha mas revolta permanente contra a estabilidade e cristalização das coisas. Não é um mero exercício para se dormir melhor na noite seguinte, mas esforço demoníaco para se dormir de maneira diferente." (TCHEN, 2001, pag. 114)

 

O principal lema do projeto de criação coletiva surrealista é inspirado pela afirmação de Lautréamont de que "a poesia deve ser feita por todos, não por um". Como exemplo de realização desse projeto, podemos citar as diversas técnicas de criação coletiva, como o cadavre-exquis, cuja produção foi a tal ponto numerosa em Portugal que Mario Cesariny chegou a realizar uma Antologia surrealista do cadáver esquisito[3], da qual participou Herberto Helder[4], entre outros.

 

Com o final da Segunda Guerra Mundial, o mundo assistiu à queda dos fascismos, o que renovou a esperança dos intelectuais portugueses de ver terminada a ditadura que se havia implantado no país desde 1926. Mas a organização de um grupo surrealista só ocorre de fato em 1947, sob a denominação de Grupo Surrealista de Lisboa, do qual fazem parte muitos dos jovens que se reuniam no café Herminius e que foram colegas na Escola de Artes Decorativas António Arroio. O grupo formado contava, então, com os seguintes nomes: Alexandre O'Neill, António Domingues, Marcelino Vespeira, Fernando de Azevedo, Mario Cesariny, Moniz Pereira, António Pedro, José Augusto França, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira e Fernando Alves dos Santos.[5] Entretanto, o grupo rapidamente começa a desarticular-se e, na data da realização da primeira exposição, no ano de 1949, este já não contava mais com Mario Cesariny[6], que dará início à formação de um outro grupo chamado Os Surrealistas, conhecido também como Grupo Dissidente.

 

A data da primeira exposição surrealista coincide também com o ano em que se daria a eleição para a Presidência da República. Para marcar a ligação almejada pelos surrealistas entre vida e arte, e entre arte e atuação política, podemos dar como exemplo a capa do catálogo da exposição, que apresentava, na verdade, um texto de intervenção. Na referida capa era possível ler-se uma mensagem que tinha como objetivo aconselhar o voto no general Norton de Matos, candidato da oposição:[7]

 

O GRUPO SURREALISTA DE LISBOA

PERGUNTA

DEPOIS DE 22 ANOS DE

MEDO

AINDA SEREMOS CAPAZES DE

UM ACTO DE

LIBERDADE?

É ABSOLUTAMENTE

INDISPENSÁVEL

VOTAR CONTRA

O FASCISMO

 

Apesar de haver inicialmente um predomínio das artes plásticas e de não encontrarmos muitas manifestações literárias relativas a este início, podemos citar como exemplo de produção literária surrealista o poema de António Pedro denominado "Proto-Poema da Serra d'Arga", que foi publicado pela primeira vez nos Cadernos Surrealistas, em 1949. O trecho final do poema é bastante elucidativo:

 

Assim acaba este poema da Serra d'Arga

Onde ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquilo

Parecia a queda dum regímen

Tudo muito assim mesmo lá em cima

E cá em baixo dois suados à machadada

 

Ao cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosa

Mas no buraco do sítio da árvore

Na mata de pinheiral

O azul do céu emoldurado ainda era mais bonito

Em San Lourenço da Montaria (CUADRADO, 1998, p. 286)

 

No poema, a queda da árvore aparece associada à queda do regime ditatorial, permitindo a abertura de uma brecha através da qual será possível contemplar o real transfigurado.

 

O Grupo Dissidente que se constitui ao redor de Cesariny leva adiante as reflexões a respeito da relação entre ética e estética no Surrealismo. Contrariamente ao Grupo Surrealista de Lisboa, n'Os Surrealistas predominam as produções literárias. Ao nome de Cesariny juntar-se-ão os de António Maria Lisboa, Mário Henrique Leiria, Henrique Risques Pereira, Carlos Eurico da Costa, Pedro Oom, Cruzeiro Seixas e José Francisco.

 

Uma das primeiras atividades do grupo foi a organização das sessões do Jardim Universitário das Belas Artes (JUBA), apresentando como tema de debate "O Surrealismo e o seu público" em 1949. Podemos observar, nos primeiros textos lidos pelos poetas, a presença desse ideal surrealista que mencionamos. Em "Concreção de Saturno", Cesariny retoma explicitamente a afirmação de Breton: "O único fim que eu persigo / é a fusão rebelde dos contrários as mãos livres os grandes transparentes." (CESARINY, 1997, p. 125). Do mesmo modo, no texto "A afixação proibida", assinado por António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira, Mários Cesariny e Pedro Oom e que foi lido no JUBA por Lisboa, podemos encontrar uma outra forma de expressão da tão desejada síntese surreal: "E para a idéia da Totalidade duma Vida Única nós acreditamos na conjugação futura desses dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o Sonho e a Realidade. Acreditamos numa Realidade Absoluta, numa SURREALIDADE, se é lícito dizer-se assim." (CESARINY, 1997, p. 111)

 

Ainda na mesma conferência, António Maria Lisboa lerá o poema "As cinco letras em vidro", a partir do qual se torna explícita a ligação entre poesia e magia. O poema, a partir do próprio título, apresenta uma espécie de laboratório mágico, alquímico, onde se contempla "O METEORO DA TRANSFORMAÇÃO".

Ao final do poema podemos ler:

[...]

FALO – no Laboratório Mágico ao dar-se a aparição espontânea de Lautréamont e Freud que traziam sobre as sobrancelhas um corte fino a atravessá-las lado a lado: –

 

Ao aparecer a mulher escandalosamente

vestida de vermelho

ele dirige-se para a jovem

e os outros passeiam sobre as rochas

onde fica oculto o corpo do homem que chega continuamente

E MUDO APONTA O HORIZONTE

 

O poema é, então, o lugar da aparição do homem, lugar também de vislumbrar um novo horizonte, de fazer com que a poesia se transforme num projeto que não é somente estético, mas sobretudo ético ou, como diria o autor em "Erro próprio", um projeto para "INVENTAR O MUNDO!" e, mais uma vez, para buscar a síntese entre os opostos: "[...] pôr a nu o rendilhado que une o Invisível ao Visível, estabelecer um Arco-voltaico entre o Consciente e o Inconsciente, entre o Passado e o Futuro, provocar um Curto-circuito para os destruir isolados, perfurar a Razão com a Loucura e vice-versa [...]."  (LISBOA, 1995, p. 47)

 

A poesia feita por um

 

Todavia, a crença nas possibilidades de transformação da vida e do mundo – que são os verdadeiros objetivos do movimento – não consegue sustentar-se por muito tempo dentro da realidade portuguesa. E no próprio ano de 1949 Mário Henrique Leiria e Pedro Oom começam a demonstrar um ceticismo em relação ao futuro do movimento, por conta da enorme dificuldade enfrentada pelos artistas em decorrência da situação política do país. Um ano mais tarde, no comunicado citado anteriormente, Mário Henrique Leiria, João Artur Silva e Cruzeiro Seixas chegarão a afirmar que "em Portugal, não é possível a existência de qualquer agrupamento ou movimento dito surrealista, mas de que apenas poderão existir indivíduos surrealistas agindo, por vezes, em conjunto." (CUADRADO, 1998, p. 16) (grifos do autor)

 

Tal afirmação não põe em questão a validade da experiência poética da forma como é pensada pelo surrealismo, mas lança uma sombra de dúvida em relação à possibilidade de constituir-se um projeto coletivo através do qual seria possível atuar sobre a realidade e provocar a sua transformação. Tudo se passa como se, a partir de um determinado momento, as aspirações coletivas fossem dando lugar a uma redenção individual, e não à salvação do coletivo. Assim é que Pedro Oom escreve, também em 1949, um texto intitulado "Carta ao Egito"[8], no qual formulará a sua concepção de poesia como "um meio de conhecimento e ação". Esta concepção de poesia irá influenciar vários outros poetas de sua geração, dentre eles António Maria Lisboa, como podemos perceber no já citado "Erro próprio".

 

Ainda na mesma carta, Pedro Oom irá discorrer a respeito do caráter do conhecimento produzido através do fazer poético: "A poesia é um meio de conhecimento e acção de cujos frutos, bons ou maus, só o poeta aproveita [...]." (VASCONCELOS, 1966, p. 95) Do mesmo modo, António Maria Lisboa, influenciado pelas idéias de Oom, no já aludido texto "Erro próprio" assinalará que o ato poético é 'fechado e não aberto, [...] hermético, [...] íntimo e não espetacular'. (MARTINHO, 1996, p. 61) 

 

Assim é que no painel que se desenhava na passagem para os anos 50, ficavam manifestas duas formas de encarar o futuro do movimento, de acordo com Adelaide Tchen. Do lado do Grupo Surrealista de Lisboa alguns artistas expressariam otimismo e conformismo à situação. Já do lado dos Dissidentes, seriam redigidos discursos que afirmavam a ruína do movimento, e Mário Henrique Leiria chegaria a considerar a ação do grupo como um malogro (TCHEN, 2001, p. 136)

 

Perante este cenário pessimista, o grupo começa a dissolver-se a partir de 1951. Alexandre O'Neill rompe com grupo e Cruzeiro Seixas parte para Angola, de onde só retornará em 1961. António Maria Lisboa é internado numa clínica devido a complicações pulmonares. Nos anos posteriores a crise será agravada, Mário Henrique Leiria irá desligar-se do grupo em 1952 e António Maria Lisboa morrerá em 1953.

 

*           *           *

 

A partir da segunda metade dos anos 50, começa a formar-se uma segunda geração surrealista, que se divide em dois grupos: um que se reunia no Café Royal e outro no Café Gelo.  Dos que freqüentavam o segundo, podemos citar os nomes de Manuel de Lima, Luiz Pacheco, Mário Cesariny, Raul Leal, José Manuel Simões, Helder Macedo, João Rodrigues, Gonçalo Duarte, Escada, Cargaleiro, António José Forte, Manuel de Assumpção, Virgílio Martinho, Saldanha da Gama, Ernesto Sampaio, Herberto Helder, Manuel de Castro e João Vieira. De acordo com Cesariny[9], esta geração teria uma forte influência do Abjeccionismo[10], compartilhando as concepções de Pedro Oom e António Maria Lisboa. Os artistas dessa geração terão como órgão difusor dos seus escritos a revista Pirâmide, cuja publicação durará três números, saídos entre 1959 e 1960. Mas essa já é outra história...

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

 

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: NAU, 2001

 

CUADRADO, Perfecto. A única real tradição viva  – antologia da poesia surrealista portuguesa. Lisboa: Assirio &Alvim, 1998

 

LISBOA, António Maria. Poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995

 

MARTINHO, Fernando J. B. Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50. Lisboa: Colibri, 1996

 

MARINHO, Maria de Fátima. O Surrealismo em Portugal. Lisboa: INCM, 1987

 

ROCHA, Clara. Revistas literárias do século XX em Portugal. Lisboa: INCM, 1985

 

TCHEN, Adelaide Ginga. A aventura surrealista. Lisboa: Colibri, 2001

 

VASCONCELOS, Mario Cesariny de (org.). A intervenção surrealista. Lisboa: Assirio & Alvim, 1997

 

______ (org.). Antologia surrealista do cadáver esquisito. Lisboa: Guimarães editores, 1961

 

______ (org.). Surrealismo / Abjeccionismo. Lisboa: Editorial Minotauro, 1963.

 

______ (org.). A intervenção surrealista. Lisboa: Ulisseia, 1966

 

 

NOTAS:

 

 

[1] Muitos dos artistas que participaram do movimento português chegaram a encontrar-se pessoalmente com André Breton.

[2] Para maiores esclarecimentos, cf. (TCHEN, 2001, p.126) ou (CUADRADO, 1998, p. 30)

[3] (CESARINY, 1961)

[4] Herberto Helder, João Rodrigues e José Sebag escrevem um texto que figura na antologia sob a rubrica "O cadáder esquisito e os estudantes"

[5] Nem todos os artistas citados ingressaram no grupo ao mesmo tempo. Para maiores esclarecimentos, cf. (TCHEN, 2001, p 97-100).

[6] Cesariny deixa o grupo em 1948 através de uma carta escrita "Ao amigo António Pedro", na qual explica que se separava do grupo "por não acreditar que seja Grupo e ainda menos surrealista". Cf. (CUADRADO, 1998, p. 31).

[7] O catálogo acabou não saindo com a referida capa por causa da censura; em seu lugar constou uma capa branca riscada com um 'X' azul.

[8] Carta ao poeta Egito Gonçalves.

[9] As idéias que se seguem foram expostas pelo poeta no texto "Para uma cronologia do surrealismo em português" (MARTINHO, 1996, p. 78)

[10] Pedro Oom escreve em 1949 um "Manifesto abjeccionista", que se perdeu.

 

 

 

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Izabela Leal nasceu em 1969 no Rio de Janeiro (RJ). É poeta, ensaísta e professora de Literatura Portuguesa. Tem poemas publicados em antologias no Brasil e no exterior e colaborou em revistas e sites de poesia como Zunái, Inimigo Rumor, Coyote e Germina. Participou do evento literário Simpoesia (2008) e Artimanhas Poéticas (2009). Foi selecionada no concurso de bolsas para escritores da Biblioteca Nacional de 2008. É inédita em livro.

 

 

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