ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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MARIO CESARINY

 

 

 

 

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE

 

Entre nós e as palavras há metal fundente

entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte     violar-nos     tirar

do mais fundo de nós o mais útil segredo

entre nós e as palavras há perfis ardentes

espaços cheios de gente de costas

altas flores venenosas     portas por abrir

e escadas e ponteiros e crianças sentadas

à espera do seu tempo e do seu precipício

 

Ao longo da muralha que habitamos

há palavras de vida     há palavras de morte

há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar

há palavras acesas como barcos

e há palavras homens, palavras que guardam

o seu segredo e a sua posição

 

Entre nós e as palavras, surdamente,

as mão e as paredes de Elsinore

 

E há palavras nocturnas palavras gemidos

palavras que nos sobem ilegíveis à boca

palavras diamantes palavras nunca escritas

palavras impossíveis de escrever

por não termos connosco cordas de violinos

nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar

e os braços dos amantes escrevem muito alto

muito além do azul onde oxidados morrem

palavras maternais só sombra só soluço

só espasmos só amor só solidão desfeita

 

Entre nós e as palavras, os emparedados

e entre nós e as palavras, o nosso dever falar     

 

 

POEMA

 

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

 

 

O GATO DITO DOMÉSTICO OU DE LINEU

 

Primo em linha recta do Gato Legível, uma nem sempre fundada tradição de abandalho pesa sobre a origem egípcia, eminentemente cruel e aristocrática, dos da sua espécie.
O GATO urina com êxito nos objectos de lar, e quando a angina estala enfim os peitos da patroa que julgou poder fretá-lo para pequenas voltas, O GATO esfrega os olhos, abre uma janela, e voa toda a noite, de barriga para cima. Nestas surtidas voantes encontra-se por vezes com os seus camaradas libertários, e então acendem fogos que, uma vez por ano, formam cortejo em direcção à Lua, onde um gato já cego os devolve aos espaços, transformados em cinza e em máquinas de luar.

 

 

NATÁLIA CORREIA

 

navio guerra pero vaz faria
corpo da terra da melancolia
dezembris 24   A natal ia
sobre o beque de mar
da poesia

ia e voltou
à boca do ar
com a boca a brilhar
de alegria

plo quarto de madorna
e à hora da prima
assina
o mar e o cesariny
ou o cesariny mário
da correia onde fico
o lais e o bico
(e o múrmuro mármáreo!)
do altaçor que aluna
na coluna
do Pico

 

 

OLHO O CÔNCAVO AZUL

 

Olho o côncavo azul do firmamento
é tarde
um sobretudo agita-se para os lados de alcântara

Felizes os que morreram canta um sino
e com certo compasso certa razão se se pensa
na quantidade de espaço ocupado
pelos que sopram coisas há séculos debaixo de terra
os que vêm aqui fazer eternidade grandes ovas do espírito
e não levam para lá coisa nenhuma
nem um pequeno vaso     uma estatueta de bolso
um balão de criança que é tão leve
nada
porque o lá não existe     lá, nós que carreguemos
as mil missas em ré do bicho-de-conta
as quinhentas pinturas do mão já nenhuma
o bilião de palavras do caveira três
e mais os planetas desertos, que também mandam coisas

Felizes os que morreram     realmente     ó sino
mas mais felizes ainda os que mataram
mais felizes os que ergueram à altura simples do corpo punhal fundente
as molas sete e oito da grande máquina
e a quebraram nos ossos do espectáculo
porque ele é a usura
da noite de cavalos submergidos no lago
a estrada contra-curva
onde Harcamone passa a caminho do teatro
a uma mesa de mortos galvanizados

Porque a poesia não é para galvanizar isso
a poesia      a poesia
o recôncavo azul do firmamento
que é negro
e outras coisas mais
se ainda é tempo de ver por cima do prato
os vigia     os paloma     os clandestinos     os lâmpara
os invisíveis anjos guardadores
do trabalho que não pode ser adiado
e não esta linguagem de lamento esta linha de rogo que frustra a voz
não este verso exposto a mil vagares na almofada branca de uma página
mil vezes decapitada na praça pública
em oitavas e quartas paralelas e sétimas dominantes cheias de horror
e ainda assim contentes
de bailarem em torno do seu próprio círculo
mas o que na manhã só uma vez quase ouvimos
um para o outro
um dentro do outro
mais interiores à magnificência da espécie
do que aos espaçosos e nobres labirintos do canto

 

 

UMA CERTA QUANTIDADE

 

Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro

 

 

EU, SEMPRE...

 

Eu sempre a Platão assisto.

Pessoalmente, porém, e creia que não

Tenho qualquer insuficiência nisto,

Sou um romano da decadência total,

Aquela do século IV depois de Cristo,

Com os bárbaros à porta e Júpiter no quintal.

 

* * *

 

no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)

diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é de outra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato

 

 

*

Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu em Lisboa em 1923. Estudou música e frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio. Esteve em Paris onde conheceu André Breton, cujas ideias o levaram a  fundar, junto com outros autores, o Grupo Surrealista de Lisboa em 1947, que teve vida curta. Cesariny forma entao um grupo disidente chamado Os Surrealistas. Como pintor, participou das exposicoes dos Surrealistas em 1949 e 1950. Com o passar dos anos, Cesariny dedicou-se cada vez mais à escrita, publicando Corpo Visível (1950), Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953), Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), entre outros. Morreu em Lisboa em 2006.

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