PEDRO OOM
O COELHINHO QUE NASCEU NUMA COUVE
Era uma vez um coelhinho que nasceu numa couve. Como os pais do coelhinho nunca mais aparecessem a couve passou a cuidar dele como se do seu próprio filho se tratasse. Com ervinhas tenras que cresciam ao seu redor a couve foi criando o coelhinho dentro do seu seio até que este passou a procurar a sua própria alimentação. O coelhinho, que tinha um coração muito bondoso, retribuindo o afecto que a couve lhe dedicava considerava-a como sua verdadeira mãe. A mãe couve e o seu filhinho adoptivo foram vivendo muito felizes até que um dia uma praga de gafanhotos se abateu sobre aquelas terras. O coelhinho ao ver que aqueles insectos vorazes devoravam tudo o que era verde cobriu com o seu próprio corpo o corpo da mãe couve e assim conseguiu que os gafanhotos pouco dano lhe fizessem. Quando aqueles insectos daninhos levantaram voo os campos em volta passaram a ser um imenso deserto de areias e pedra. O pobre coelhinho, que sempre tinha vivido nas proximidades da sua mãe couve, teve de deslocar-se para muitos quilómetros de distância a fim de procurar comida. Mas já nada havia que se pudesse mastigar naquelas terras. Passaram muitos dias e o pobre coelhinho estava cada vez mais magro mais magro e faminto. Então a mãe couve disse-lhe assim: “Ouve meu filho: é a lei da vida que os velhos têm de dar o lugar aos novos, por isso só vejo uma solução: assim como tu viveste durante algum tempo no meu seio, passarei a ser eu agora a viver dentro do teu. Compreendes, meu filho, o que eu quero dizer?” O pobre coelhinho compreendeu e, embora com grande tristeza na alma não teve outro remédio, comeu a mãe.
ACTUACÃO ESCRITA
Pode-se escrever
Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada
Pode-se não escrever
MÃOTÓTEM
Existe, lá, entre as sombras e o declinar dos vazios um homem deitado. Este alonga-se pelas estradas macias e a sua sombra persegue-o no seu repouso pela eternidade.
Outrora, quando os caminhos eram possuídos de lama, o sangue que jorrava das crateras que contorcem os céus tinha o sabor mais puro que um seio de mãe pode ter.
Assim, deitado, ele ergueu-se levemente apoiando-se no cotovelo direito e pôs-se a espreitar a eternidade. Esta era feita de si mesma sem direito algum a qualquer recompensa.
Falou em surdina, quase com medo de acordar as trevas que sugam no povoado:
«Aqui estou, semiconsciente, como morto que de repente acorda e que sente a sua insensibilidade projectar-se monótona no dia a dia infindável.
Aqui estou, semimorto, como uma vela automática que se apaga na escuridão e se acende quando a luz do sol rompe ruidosa. Meu lamento não é raiva nem certeza. Espreitei na fechadura dos horizontes e o que eu julgava ser vácuo e raiva emplumada mostrou-se-me coalhado de cogumelos e de lagartas. Notei, em seguida, um perfume esquisito, cheiro forte de coxas queimadas que eu soube depois ser o excremento do sexo dos Deuses».
A estrada interminável persegue-o. Um automóvel move-se interrompendo-lhe a locomovidade dos pensamentos.
«Agora compreendo porque o vazio é uma ideia compacta e esta, inversamente, um conjunto de Deuses. Expulsei-os! Meu lamento não é raiva nem certeza. Sou eu, expulso dos meus pensamentos.»
Ergueu-se. Levantou e sacudiu as espáduas. Era mais alto que os montes.
Adiantou-se.
A sua sombra infindável persegue-o nos horizontes.
*
Há qualquer coisa que faz sofrer infinitamente a humanidade. Calcule-se o peso de tal sofrimento medindo-o por quilos, por latas, por transatlânticos, por caçarolas e por sacos de café.
Há qualquer coisa...
Na planície aberta a todos os ventos levantou-se uma parede, caiu uma árvore, rompeu-se um dique, construiu-se uma ponte. E, súbito a vastidão rompe num falar brusco, de repelão, sem sustos:
«Bom dia, Vossa Excelência compreende, por certo, que eu, mísera, nada posso fazer quando o peso da consciência se abate como avalancha sobre a delgada crosta de um verniz de séculos. Vossa Excelência compreende, por certo... ».
Mas a noite chega e é a mesma de sempre.
O HOMEM BISADO
Alegra-me ser todas as coisas e as sombras que elas projectam
ser a sombra dos teus seios e da tua boca
o criado de smoking branco que te agita os cabelos
para um cocktail estimulante e fresco
a mesa onde passo a ferro o teu corpo
as espáduas as coxas a curva macia dos joelhos
alegra-me ser o contorno da tua nuca e o binário motor dos teus braços
embora mais pequeno do que um corpúsculo celeste
sou os milhões de astros microrganismos estrelas
a rota de todos os navios perdidos
a angústia síntese de todos os suicidas
a forma de todos os animais conhecidos
o desenho rigoroso de toda a flora existente
Ontem em Paris hoje em Lisboa amanhã em Júpiter
caminho para a resolução de todos os problemas
sem a certeza de resolver qualquer deles
como se fosse uma máquina de somar parcelas
quatro vezes quatro oito vezes dez oitenta
sabe-me a vida ao que É
esta progressão assustadora de crocodilos bebendo limonada
Ontem fui a prostituta a quem paguei a noite
hoje serei talvez o inocente violentador frustrado
Sutmil é a cidade para onde me evado todas as noites à aventura
e «os anéis de Saturno são a força centrífuga-centrípeta que me
agita os braços no espasmo amoroso»
a cabeça em Marte os pés na Terra
vindo «lá do fundo do horizonte lívido»
O comboio está na gare o comboio vai partir
apressemos o passo o momento é solene
somos o automóvel que sobe a avenida
a pulsação acelerada dos maquinismos
taxímetro de uma cidade de província
satélites de um satélite lunar
Tu és o aeroporto eu o avião que parte
e muito mais calmos entre éter e fogo
percorremos os sonhos de planeta em planeta desfolhando o futuro a flor sempre rara
e marcamos nos astros o nosso roteiro DEZ QUILÓMETROS
amanhã tirarei o curso de sonhador especializado
*
Pedro Oom nasceu em Santarém em 1926. Participou das atividades do grupo Surrealista de Lisboa e também do grupo dissidente. Foi o mentor da teoria do abjeccionismo, redigindo em 1949 o Manifesto Abjeccionista, texto que se perdeu. Seus textos foram postumamente reunidos em Actuação Escrita (1980). Morreu em 1974. |