ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

BRETON E O SURREALISMO

 

 

Víctor Sosa

 

 

Não resta dúvida de que, se existiu um certo “Grau zero”na história da arte moderna, isto é, um ponto de estupor em que a linguagem perdeu seus atributos operativos e de significação e acabou por dissolver-se no inarticulado, esse ponto foi Dadá. O dadaismo desmantelou a linguagem lógico-discursiva, mas também a linguagem poética e todos os estamentos e cânones das chamadas Belas Artes. Foi o primeiro movimento dos artistas contra a arte, não mais contra uma escola ou estilo anterior, como vimos ao longo da história, e sim contra o próprio conceito de arte e contra o sistema de valores que lhe dava suporte. O que Dadá fez , foi por necessidade: alguém tinha que denunciar la mistificação e  mercantilização do produto artístico –produto de um processo de criação que estava associado, conforme o ideal kantiano e romântico, ao sublime,  ao espiritual, ao que há de mais sagrado na existencia humana; a arte era sinônimo de belo e o belo –para Platão- era sinônimo de bom. Os dadaistas são artistas que gritam ao público que a arte não vale nada e que nada tem de sagrado; são atores que, em pleno clímax da tragédia, tiram as máscaras e assinalam a falsidade da representação e a cumplicidade do público com a dita farsa (não  esqueçamos que  a outra farsa –muito mais letal que a da arte- tinha lugar nas trincheiras e na  carnificina humana promovida pelos nacionalismos que deram espaço à Primera Guerra Mundial). O preço da verdade é sempre elevado, e nesse caso significava  ficarmos sem palavras, emudecer ou recuperar o uivo, o grito, a expressão inarticulada de nossos  ancestrais, os primatas. Dadá, nesse sentido, foi uma regressão necessária; uma grave paródia da crise espiritual de uma época e de uma civilização, realizada pelas mentes mais lúcidas; foi –no fundo- um rugido carregado de esperança.

 

A esperança de resgatar a palavra -a Linguagem-, das mãos dos filibusteiros, dos demagogos, dos jornalistas sem escrúpulos, dos políticos oportunistas, dos filólogos -como o dr. Goebbels que tão bem sabia utilizá-la para hipnotizar as massas no período nacional-socialista-, recaía, outra vez, nos poetas. André Breton –que participou das últimas labaredas dadaistas- se encarregaria de  nos restituir a palavra e, com ela, o sentido. Mas, cuidado: Não será o irresistível e verossímil sentido comum da palavra operativa, da palavra a serviço de uma transação comercial  qualquer; será a intenção de recarregar essa  palavra com todos os sentidos possíveis (“literalmente e em todos os sentidos”, como diria Rimbaud) e com o valor do sublime que os românticos haviam introduzido na linguagem poética. Para Breton, o sublime passava pelo inconsciente, pelas capas profundas e soterradas dos sonhos, dos instintos, do “principio do prazer” e de tudo aquilo que escapara às normas e censuras da razão. Não obstante, é vário o seu parentesco com Dadá: o descaso pela razão ilustrada e pelo progresso tecnocrático, o permanente espírito de rebelião e, sobretudo, a profunda desconfiança em relação à arte institucionalizada. Varias coisas, por outro lado, o separan de Dadá: a vitalidade construtiva e edificante, o respeito e reivindicação de certas figuras artísticas e literárias do passado –como Dante, Shakespeare, Sade, Baudelaire, Swift, Poe, Mallarmé e, quiçá, Lautréamont e Rimbaud- bem como o resgate e recomposição da palavra poética. De fato, Breton arranca da fogueira dadaista a Fénix da Linguagem e insufla-lhe o sopro de que necessita para emprender novamente o seu voo.  

 

Em 1924 aparece o Manifiesto do Surrealismo. Breton define o termo da seguinte maneira: “Surrealismo: automatismo psíquico puro mediane o qual nos propomos expressar, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral”. E acrescenta: “O surrealismo baseia-se na crença na realidade superior de certas formas de associação deixadas de lado antes dele. Na onipotência do sonho, no jogo desinteressado do pensamento. Tende a rechaçar, de uma vez por todas, os demais mecanismos psíquicos e a substituí-los na solução dos principais problemas da vida”. Nos dois parágrafos citados não encontramos nenhuma referência à arte. É comprensível: Breton vive o síntoma de sua época, a vergonha de saber-se artista (escritor e poeta, em seu caso), imerso em um momento histórico –pós-dadaísta- no qual já se havía denunciado a mistificação e se tinha dançado sobre o cadáver mumificado da beleza. Não se tratava de inventar un novo impressionismo ou uma nova escola poética, mas de resolver “os principais problemas da vida”. A arte, não só como filosofía, mas como práxis transformadora, como agente de mudança –psíquica e histórica- do ser humano.

 

Este é o ponto de partida do Surrealismo. Breton, com sua magnética personalidade, aglutina alguns espíritos afins: Aragon, Crevel, Desnos, Éluard, Soupault, entre outros poetas, que compõem o primeiro regimento do avanço surrealista. O conhecimento das teorias freudianas e da técnica de associação livre, aliadas a um interesse e participação do grupo em algumas ações de espiritismo, daria lugar à chamada escritura automática. Uma escritura não limitada pelas prisões reflexivas e pelos disfarces do estilo: “um monólogo de jorro tão rápido quanto possível, sobre o qual o  espírito crítico do sujeito não exerça nenhum juízo, que não se embarace, por conseguinte, com nenhuma reticência, e que se assemelhe, tanto quanto possível, ao pensamento falado”. É incerto que exista uma escritura totalmente automática –salvo no caso de sujeitos que escreviam em estado de transe, como acontecia com Desnos-, mas o importante deste aporte –insisto- é o de haver devolvido o poder à Linguagem, haver dilatado as posibilidades do dizer, que também são as possibilidades do desejo. O  Surrealismo foi uma magnífica estratégia do desejo. E o desejo é a perseguição de algo impossível; o desejo  está cifrado em seu próprio fracasso. Não há objeto real nem objetivo alcançável: “A existência está en outra parte”.

 

Não obstante, fizeram poesia, pintaram quadros, filmes, porém foram poesias, quadros e filmes que pouco tinham a ver com as normas aceitas nos referidos gêneros. Breton explorou as possibilidades da analogia poética, baseando-se, para isso,  na frase de Pierre Reverdy: “A imagem é uma criação pura do espírito. Não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes. Quanto mais  distantes e exatas sejam as relações das duas realidades aproximadas, mais forte será a imagem, mais poder emotivo e realidade poética terá...”. As imagens surrealistas se nutrem desses insólitos encontros, dessos elásticos vínculos entre objetos dessemelhantes e entre situações logicamente insustentáveis. Em um de seus mais belos poemas –chamado “União livre”-, Breton diz: “Minha mulher de cabeleira de fogo de madeira/ Minha mulher de língua de hóstia apunhalada/ De sobrancelhas  de beira de ninho de andorinha/ Minha mulher de ombros de champanhe/ Minha mulher de dorso de pássaro que foge vertical/ Minha mulher de nádegas de dorso de cisne/ Minha mulher de sexo de jazida de ouro e de ornitorrinco...”. O desejo, isto é, o impossível, se encarna na Mulher e esta é o agente da concatenação analógica, dos laços insólitos trançados no território da Linguagem. Também a técnica do “cadáver esquisito” explora as possibilidades do insólito: poema-jogo coletivo que vai  se escrevendo em uma folha dobrada, sem conhecer o verso anterior nem o subsequente; o resultado, sujeito às irredutíveis perplexidades da sorte, pode ser desde simplesmente interessante até seriamente assombroso. Outro ponto a assinalar, então: o Surrealismo participa de um lúdico espírito de grupo, é comunitário, plural e multidisciplinar. Desde as antecipadoras sessões mediúnicas até as exaltadas declarações políticas e os libelos excomungantes, Breton cuidou desse espírito de corpo que dava identidade ao surrealismo, sem nunca abandonar a férrea liderança que o caracterizou e que também lhe proporcionou inúmeros inimigos.  De outra maneira não podería ter-se sustentado tanto tempo um movimento –afinal de contas artístico- composto por tão diferentes figuras. É preciso reconhecer que a intolerância e os dogmas de Breton foram mais políticos do que poéticos; o Surrealismo não é um estilo pictórico ou poético definido, percebem-se mais as diferenças do que as semelhanças em artistas como Max Ernst e Magritte, Miró e Matta, Duchamp e Dalí, o em poetas como Artaud e Éluard, Peret e Desnos. Não havia uma rígida norma estilística e isto os salvou  -ao menos por um tempo- da ossificação e de cair numa nova academia. Havia, sobretudo, um tácito compromisso espiritual e moral contra um estado de coisas, porque Breton foi -como Voltaire- um moralista: “Dizemos –nos diz o poeta- que a operação surrealista não tem nenhuma oportunidade de ser acatada, a menos que se efetue em condições de assepsia moral das quais, todavia, muito poucos estão dispostos a ouvir falar.” Contradição enorme em alguém que havia postulado a primazia do inconsciente e a ausência de “toda preocupação estética o moral”. Contradições que queriam ser, todavia, conjunções; abolição da dicotomia entre política e poética, entre o dentro e fora, entre a vigília e o sonho, entre a transformação revolucionária e a transfiguração onírica; em suma, entre o “mudar a vida”, de Rimbaud e o “Transformar o mundo”, de Marx  e que, para Breton, convergiam na equação de um mesmo e único desejo.

 

Em 1927 Breton adere ao partido comunista. Com ele, alguns de seus mais próximos colaboradores: Aragon, Éluard, Péret, Unik; No entanto outros, como Artaud, Soupault y Vitrac rejeitam esta sujeição do Surrealismo a um partido político –e a um partido que nunca ocultou sua hostilidade às subjetivas experimentações poéticas do grupo. É importante considerar que a primeira revista do movimento chamada A revolução surrealista, mudou seu nome para O surrealismo a serviço da revolução, embora nunca tenha sido uma servidão total. Na verdade, a arte e as preocupações espirituais dos surrealistas jamais coincidiram com a propaganda política. Os comunistas, impermeáveis ás paixões e preocupações surrealistas, não deixavam de vê-los como os convidados de pedra da revolução, e encará-los sob a lupa da suspeita, já que todo intelectual é, potencialmente, um “inimigo do povo”. Mesmo assim, essas  passageiras núpcias entre política e poética não eram novas; recordemos os vínculos de Marinetti com o fascismo e também o compromisso dos construtivistas russos –e do Maiakovski futurista- com a nascente revolução bolchevique. Todas as vanguardas do Século XX viveram –ou melhor, encarnaram - a herança hegeliana de fundir arte e vida, de acabar com a sacralidade incrustada no território da arte e com sua concomitante mitificação do estético. Se a arte, para Hegel, já era “coisa do passado” (bem entendido: a arte “bela” e clássica), é compreensível que, para um homem como Breton –conhecedor do pensamento hegeliano-, a única maneira de justificar o exercício poético e a função do artista, era amplificando, expandindo e fundindo a função com a “ação eficaz no seio da história” (Blanchot), ou seja, com o compromisso político. Na década de vinte a esperança socialista, todavia, não se afogara no terrorismo de Estado e esse fantasma comovia as consciências mais lúcidas da Europa. Breton adere ao partido comunista para carregar a poesia com a eficácia da ação política e para fazer desta última uma experiência poética no seio da história. Não esqueçamos: o Surrealismo integrava uma proposta total de transformação do homem: “Não me cansarei de contrapor à imperiosa necessidade atual -nos diz Breton em os Os vasos comunicantes-, que é a de  mudar as bases sociais sobremaneira vacilantes e  corroídas do velho mundo, essa outra necessidade não menos imperiosa que é a de não ver na Revolução  vindoura um fim, que com toda evidência seria ao mesmo tempo o da História. O fim não poderia ser para mim senão o conhecimento do destino eterno do homem em geral, que só a Revolução poderá devolver plenamente a esse destino”. O surrealismo é um humanismo –no sentido mais benevolente do termo-; não uma doutrina nem uma ideologia. Breton, já desde estas declarações antecipadoras, mostra-se congruente com a idéia de “revolução permanente”, desenvolvida por Trotski. Além disso, coloca –antes de tudo- a noção de liberdade. Já o havia dito em 1924: “A palavra liberdade é tudo o que ainda me comove.” –e nunca trairá esse sentimento. Ao contrário, será dos primeiros a denunciar a traição da liberdade perpetrada pelos “comissários do povo” e pelos patéticos processos de Moscou ocorridos em 1936. Não obstante, o distanciamento em relação à União Soviética –já estalinista- não o afasta do compromisso político de esquerda, mas leva-o a mudar de orientação e de trincheira. Breton e os surrealistas apoiam a República Espanhola e, especialmente, os grupos trotskistas (POUM) e anarquistas (CNT y FAI) de Catalunha, que lutam por igual contra os fascistas e os comunistas em plena Guerra Civil. Espanha é uma nova esperança de comunhão entre poesia e política -talvez a última esperança.

 

Em 1938, Breton e Trotski –este último já no exílio mexicano- redigem o manifesto Por uma arte revolucionária independente (assinado, por motivos compreensíveis, por Breton e Diego Rivera). Ali se enfatiza a total liberdade da arte e a não sujeição a qualquer meta ideológica ou política. Contestação direta e valente ao “realismo socialista” -esse neo-academicismo reacionário que Stalin vinha impondo como única linha a ser seguida na arte soviética. O referido manifesto finaliza nos seguintes termos: “A independência da arte – para a revolução, a revolução – para a liberação definitiva da arte”. Novamente, a difícil confluência de poesia e política, de arte e revolução, se impunha como vontade em Breton, como utopia, porém se opunha à crua realidade histórica. Essa realidade, com a chegada do Nazismo e da Segunda Guerra Mundial, lança por terra qualquer esperança redentora e unificadora. Como escrever poesia depois de Auschwitz?, se perguntava Adorno; Breton poderia ter dito: mas, como não escrevê-la, se a poesia continua sendo  uma das poucas ferramentas de combate ao aviltamento e à barbárie? Onipotencia da poesía. A poesia (o resto é literatura, como disse Verlaine) constituía para Breton não mais uma manifestação artística no concerto das belas artes, não um artifício de virtuoses. Ao contrário, era a linguagem do inexprimível, que o homem devia conquistar, era essa busca de “uma Língua” anunciada pelo menino poeta Rimbaud e era uma “atividade do espírito” (Tzara) –mais do que um meio de expressão- destinada a revelar-nos a fonte do conhecimento. Poesia, portanto, como epistemologia, mas também como aventura, já que a liberdade só pode  ser exercida no terreno do desconhecido, do ainda virgem, da inocência primordial.        

 

Havia que preservar essa liberdade em estado puro. Já no Segundo manifesto do surrealismo (1930) Breton intuía o inevitável: a comercialização do Surrealismo pelos incipientes mecanismos do consumo. Ali pede “a ocultação profunda e verdadeira do Surrealismo”, uma espécie de sociedade secreta, iniciática, livre de germes e de arrivistas –ou de acadêmicos comerciantes como Salvador Dalí. Não foi possível. O Surrealismo já havia passado por sua etapa heróica, de guerrilha cultural, de terrorismo artístico e desestabilizador, e começava –sobretudo a partir do pós-guerra- a transformar-se em uma “escola”, em um estilo, em suma, em uma estética cool,aceita pelas classes médias ilustradas. Desativavam-se os mecanismos da convulsão (recordemos a sentença bretoniana: “A beleza será convulsiva ou não será”) porque já nos venturosos anos cinquenta –a guerra da Coreia estava suficientemente distante para não tirar o sonho aos europeus-, não havia convulsão possível, mas espetáculo. Hollywood era para todos sinônimo de democracia. Estados Unidos ensinava ao mundo como ser feliz, como sorrir assepticamente. Embora houvesse alguns que não sorriam: na Argélia acontecia uma guerra de libertação à qual poucos franceses e europeus davam atenção. Breton foi um desses poucos que denunciou o colonialismo francês e apoiou o movimento de libertação argelino. O Surrealismo, por sorte, não estava só nos museus e nas vitrines da 5ª Avenida, estaria também no espírito de revolta ressurgido nos anos sessenta.

 

Em 1966 morre André Breton devido a uma convulsão asmática. Dois anos mais tarde, Paris viraria uma festa convulsiva. O movimento estudantil de maio de ´68  – que tencionava “transformaromundo”e “mudaravida” dir-se-ia encarnar o espírito surrealista. Os graffitis que apregoavam a imaginação no poder e exaltavam o desejo acima do dever, bem como o paradigmático “proibido proibir”, escrito  nos muros da Sorbone, agradaram a Breton. Rimbaud, Lewis Carroll, Fourier, Jarry e o espírito Dadá também estavam presentes nas barricadas. Outra vez –quem sabe como a última tentativa de impossível no Século XX - política e poética, arte e revolução,     transformação espiritual e ação histórica confluíram. A vida e a arte não podiam distinguir-se. Confluência obviamente efêmera. O desejo nunca pode ser realizado além de sua própria tentativa. O Surrealismo foi  - e talvez ainda o seja - uma comunhão de intenção, ou uma intenção de desejo durando incessantemente.       

 

Tradução: Maria da Paz Ribeiro Dantas

 

(Ensaio do livro Rostos & Rastos do Siglo XX, a ser publicado pela editora Lumme.)

 

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Víctor Sosa, poeta, ensaísta e artista plástico, publicou, entre outros títulos, Mansión Mabuse. No Brasil, será publicada uma antologia de seus poemas, Sunyata, pela editora Lumme, com traduções de Claudio Daniel e Luiz Roberto Guedes.

 

Leia também uma entrevista com Victor Sosa, poemas do autor em espanhol e traduzidos por Claudio Daniel, e também ensaios escritos pelo poeta uruguaio sobre Neruda, William Blake, Octavio Paz e o Surrrealismo.

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