ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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Prosseguindo o debate iniciado em edições anteriores, Zunái publica a quarta parte (final) da série Poesia e Agoridade, organizada por Jorge Lúcio de Campos e Rodrigo de Souza Leão. Confira as respostas dos autores convidados à seguinte questão:

 Como você situaria a sua própria obra no contexto atual? Fale sobre suas potencialidades e limitações.

 

Claudio Daniel: Estou preparando um novo livro de poemas, chamado Figuras metálicas, uma antologia com poemas de meus três primeiros livros, mais o inédito Pequenas aniquilações. As peças mais recentes dessa coletânea retomam algumas técnicas e processos de meu trabalho anterior, como a metáfora, a estética do fragmento e a desarticulação do discurso, visando outras possibilidades de associação entre as palavras. Porém, o que as diferencia é o olhar sobre o contemporâneo, uma espécie de ensaio fotográfico sobre a barbárie. Utilizando recursos como a desfiguração da imagem, a mescla de prosa e poesia e uma configuração mais sonora que gramatical de linhas e estrofes, esboço um retrato rude de nosso tempo, convertido em cenário da desolação. Assim, por exemplo, no ciclo temático em que, abordando objetos de uso ordinário, como a chave de fenda, o guarda-chuva, o secador de cabelos, enfoco a desumanização das relações pessoais. O poema Botas de borracha diz o seguinte: "Jatos de água cristalizam pétalas e azulejos, escorraçam bicos de pássaro. Sol matinal sobre o amarelo de luvas, botas e escovas que sodomizam piscina e jardim. Podar cachos de glicínias com longas tesouras que ensejam brilhos homicidas. Recolher folhas e gravetos, cólica e cólera com a pá de lixo. Limpar as frestas das janelas. Correr a água sanitária no vaso, polir torneiras, desentupir o ralo. Porque não existe nenhum caminho, nenhum. Nem mesmo revólver ou corda de enforcado. Nada. Apenas galochas, a chave inglesa na laje, rugas, o pelame do cão siberiano para escovar".


O mundo cotidiano, regido pelo absurdo das exigências impessoais, opera uma acelerada coisificação do indivíduo, ao mesmo tempo que converte os objetos em sujeitos. Quando o espaço do pensamento, da imaginação, da fruição estética é subtraído pela rotina laboral, prosaica da mera subsistência, deixamos de ser entes livres, e passamos a ser engrenagens de uma estrutura. Tal como Carlitos anunciou, há quase cem anos, no filme Tempos modernos. Hoje, apenas a técnica se tornou mais eficiente e dinâmica; o espírito fabril dos primórdios da civilização industrial permanece inalterado. Em outro ciclo temático do livro, a desfiguração da imagem adquire contornos de caricatura, com influxos da história em quadrinhos, do cartum e do comercial de televisão.  Os insetos - baratas, formigas, piolhos, traças e assim por diante - aparecem não como meros símbolos ou referências metafóricas, mas como figuras de sátira verbal, sem economia de sarcasmo e humor negro. Uma peça de que gosto, por sua entonação narrativa de videoclipe, é Barata: "Seminuas vendem sabonetes e o mar azul-da-prússia de paisagens recortadas de cartão-postal. Movimentos sincopados de ancas revelam saliências epidérmicas ao som da música melíflua de oboés. Jatos d'água escorrem pela concha do umbigo sob o céu cocainado, longe de estrias e da micose que avança nos pés. O verde em alta definição da folhagem oculta o sulco espesso da cavidade e atrai suspiros plásticos, romanescos, fluindo como sangue menstrual. Súbito, assoma a logomarca com a inocência animal de uma máquina de calcular. Iates e sol jamaicano anunciam o novo capítulo da novela. Seminuas têm medo de barata"

Nestes poemas, que empregam técnicas de montagem e a fragmentação do cenário, o discurso ainda é fluente, melódico, apesar da  bufoneria da intenção paródica; em outras peças, porém,  a desarticulação da sintaxe e do significante ficam mais evidentes, como no ciclo dedicado ao tema da guerra.

Conforme observou Milán, a estética do fragmento corresponde ainda à "idéia de um mundo estilhaçado (o mundo contemporâneo)", espelho semântico de todas as distorções, rupturas, amálgamas e destroços da era convulsiva reinante. Nesse sentido, as citações que faço em outras línguas, como o árabe e o sânscrito, extraídas de clássicos da literatura mística, como o Bhagavad gita e o Dhammapada, não cumprem apenas a função de contraponto, de resposta antitética à violência e à brutalidade. Embora tenham sentido, até literal,  no contexto dos poemas, tais citações, por sua quase ilegibilidade, atuam como ícones da ausência de comunicação com o sagrado: o divino pode estar à nossa frente, mas não o reconheceremos, pois perdemos o contato com a nossa própria humanidade. Vivemos numa solidão cósmica,  numa forma de existência puramente biológica, órfãos da filosofia e da metafísica;  se quisermos a retomada do diálogo com o divino, temos de retomar, primeiro, o contato com nossa própria humanidade. Sobre as limitações e potencialidades desse poemário, nada posso dizer; não sou o crítico adequado de minhas próprias criações.  Sei apenas que é um documento sincero, talvez as páginas mais pessoais que já escrevi, e que me custaram noites de angústia e insônia. Espero que o fracasso da coletânea não seja muito maior do que imagino.

 

Jorge Lúcio de Campos: Tenho buscado, desde minha mais remota produção poética, um diálogo entre a poesia e o seu fora, mas ainda não estou certo de tê-lo realizado como deveria, poderia ou gostaria. De qualquer modo, a minha concepção de poesia é ampla o suficiente para que nela também caiba a minha paixão, por exemplo, pela pintura. Desde cedo, aprendi a admirar poetas e pintores em cuja obra pude detectar um espaço adequado para tal diálogo. Entre os poetas, os primeiros que me chamaram a atenção foram Murilo Mendes, Tzara, Williams, Stevens, Marianne Moore e Ashberry. As poéticas ditas "pós-modernas" também se tornaram objeto de minha curiosidade (por que não dizer desejo?), mas isso já no início da década passada. A curiosidade logo deixaria de ser meramente acadêmica para tornar-se visceral. O contato com o trabalho de alguns pintores contemporâneos norte-americanos, como Fichl, Salle e Tansey, veio reforçar um espontâneo apego pela relação, entre poesia e imagem pictórica, que eu já nutria desde a década anterior, quando passei a conhecer melhor (sou professor de Estética e de História da Filosofia e da Arte) o dadaísmo e o surrealismo (no caso, a partir, principalmente, dos quadros de Schwitters, de Chirico e de Magritte). Na ocasião, esbarrei com imagens de tal modo eivadas de poeticidade e vigor conceitual que não poderia ficar impassível diante delas.

Como tive a oportunidade de esclarecer numa outra entrevista, a relação que venho fomentando em meus poemas não quer ser a da simples ilustração. De pouco adiantará ao leitor a checagem, pura e simples, das telas (e outras dicções alheias, já que também cito poemas e até canções) a que meus títulos remetem. Não se trata nunca ali de captar, com a palavra, a poesia da imagem ou, antes, de descrevê-la textualmente, mas de transcriá-la num processo de dupla captura. O objetivo sempre foi gestar uma espécie de "transpoesia do pictórico" na mesma proporção que os pintores citados acima tentam - ao menos é assim que vejo - gestar uma espécie de "transpintura do poético" (é importante atentar para a definição de poético que formulei anteriormente). A referência-chave aqui seria o que Deleuze propõe como "dispositivo figural" em seu ensaio sobre a pintura de Bacon. Mais do que explorar uma possível continuidade discursiva entre texto e imagem, busco extrair a capacidade (potencialidade) "textual" da imagem nela mesma, o que, de modo algum, implica em qualquer tipo de redução ou engolimento de uma pela outra.

O meu processo criativo - e isso parece ser recorrente na maioria dos poetas - é decerto instável no sentido de ser extremamente dependente de fases e alterações de contexto. Para minha "sorte", quando me encontro num período, digamos, fértil de idéias e sensações, consigo produzir muito (e, ao menos para mim, convincentemente, em termos qualitativos), chegando, às vezes, a escrever um número surpreendente de poemas num curtíssimo espaço de tempo. Para minha "sorte" também, tais períodos não tem sido tão espaçados assim (digo isso me baseando no depoimento de alguns amigos que garantem ficar criativamente estagnados durante meses). Dificilmente deixo de criar durante um longo tempo. Por outro lado, ao menos num primeiro momento, sou também extremamente dependente do acaso. Alimento-me de insights, de encontros, de acendimentos sensório-mentais que dependem, e muito, das situações de meu cotidiano, das releituras que faço das coisas, das vivências que tenho com outras pessoas e textos. Já o meu segundo momento (e em todos os subseqüentes), faço questão de torná-lo extremamente regrado. A razão, o cálculo e o raciocínio reinam absolutos em comparação com a emoção, a inspiração e a paixão. Creio que uma vez obtida a energia original, o trabalho deve ser de lapidação, busca de concisão, depuração e empenho formal. Poesia para mim é isso: basicamente intuição e expressão. Não funciono bem em estados de êxtase, com certeza, raros ao longo de meus quarenta e um anos de vida. Mas reconheço serem eles fascinantes (embora também me amedrontem bastante), por dizerem respeito ao outro lado, àquilo que você sente como sua parte maldita, ou seja, àquilo que representa a sua mais íntima afirmação individual e, ao mesmo tempo, o afrouxamento (e mesmo a desqualificação definitiva) de tudo que se optou por valorizar em termos simbólicos. 

Comecei a arriscar poemas aos quatorze ou quinze anos. Foi a via que, primordialmente, escolhi para uma primeira incursão consciente ao simbólico. Antes (e depois) alimentei o ideal da música, da pintura... mas o que efetivamente me impactou foram os dispositivos literários. A leitura programada de Verne, Bandeira e Drummond, assim como o encontro precoce e clandestino com Bocaccio e Poe, deixaram marcas indeléveis em minha sensibilidade. Optei cedo pela poesia, mas não posso deixar de registrar uma outra territorialidade vital em minha formação: a filosofia. Sua descoberta se deu por volta dos dezoito anos e ela virou uma espécie de lente sem a qual não consigo mais enxergar o que há de nuançado na realidade, como um processo furta-cor. A química da poesia e da filosofia se viu reforçada, quatro ou cinco anos depois, por um flerte (hoje assumidas núpcias) com a pintura que, consolidando em mim um gosto pelo contemporâneo, vem me incendiando nos últimos quinze anos. Hoje não consigo mais desmembrar essas três territorialidades matriciais: poetizar, pra mim, significa pensar, assim como refletir significa imaginar e visualizar, revolver a linguagem, entrar em seu jogo de acolhimento simultâneo do ver e do dizer.

Assustado com o pouco caso das pessoas, preservei minha primeira produção, praticamente quis esquecê-la, mesmo ignorá-la... Contudo o acaso acabou trazendo-a à tona, graças à convivência com algumas pessoas que se prestaram a, mais do que lê-las, "compreendê-las". Fiquei, na época, surpreso com o reconhecimento dali advindo e, de lá pra cá, venho assumindo este misto de inclinação, vício e vaidade. Tudo passou a ser uma questão de investimento e amadurecimento. Desde a publicação de Arcangelo (com o qual venci um concurso literário promovido pela UERJ), em 1991, lancei quatro coletâneas: Speculum (1993), Belveder (1994) - na qual, à guisa de Borges, optei por recopilar, rebatizar e interferir no que já escrevera - A dor da linguagem (1996) e À maneira negra (1997). Entretanto, a primitiva sensação de desgaste não foi ainda superada. De 1998 para cá, preparei mais seis coletâneas: Lição de alvura (1998), Devoração (1999), Ausência de lis (2000), Abraçar ordenhar aleitar (2001), Palimpsestos (2002) e Prática do azul (2003) que continuam inéditas. Nenhuma editora se interessou por elas a não ser no esquema "pagou-publicou" que, sinceramente, já não consigo mais tolerar. Hoje prefiro que permaneçam nessa condição, semi-ausentes (digo isso porque parte delas está disponível em minha página na Internet), até que se manifeste algum interesse "qualitativo" em reproduzi-las. Sei que, assim, continuarei, como estou desde minha estréia, um pouco à sombra, meio no limbo, consideravelmente ignorado pela crítica, pela mídia e pelos antologistas. Hoje, porém, aos quarenta e quatro anos, não me importo tanto com isso, pois não necessito de incrementos externos para continuar escrevendo. Faço poesia por ter assim me compromissado com o que me cerca e não pretendo fazer concessões a respeito.       

Preocupo-me, sim, muito em ser contemporâneo: em minha vida, em meu pensamento, em minha poesia... mesmo que, para tanto, precise atingir um nível quase insuportável de extemporaneidade. Digo "contemporâneo", é claro, no sentido mais forte da palavra: o de estar ligado ao meu tempo, pensá-lo com seriedade, rir com ele (e não dele) de tudo aquilo que ainda lhe falta e ninguém vê... Problematizar a deriva de seu tempo, mesmo que este venha a deserdá-lo, eis o caminho certo, a rota a ser seguida por todos aqueles que fazem questão de ser contemporâneos.

Quando, no prólogo de A dor da linguagem, usei a expressão "velhos cacoetes", quis me referir a uma obsessão que, na época, me parecia um grande obstáculo para a disseminação de meus escritos. Preocupava-me o fato de ser considerado um poeta hermético, de difícil comunicação, excessivamente acadêmico... Hoje, sinceramente, isso já não me incomoda. Creio ter explicitado antes, com clareza, as razões dessa mudança de atitude. De qualquer modo, a minha identidade diccional já está suficientemente delineada e só me resta assumi-la, lapidá-la, enraizá-la, cada vez mais, em minha produção futura. Como já disse, sentir-me totalmente "con-temporâneo" em minha própria extemporaneidade, contribuir para que, em minha obra, a literatura de meu tempo, com efeito, se suponha, é o motivo que me leva a continuar escrevendo, apesar dos pesares...

Creio que, por saturação, a crítica há muito já não justifica nem a própria etimologia. O que ela menos faz, hoje em dia, é "discernir", "separar" (cf. grego krinein). Há nela ressentimento e má consciência em demasia, assim como habilidade demais em disfarçar tudo isso com uma traiçoeira aura de encantamento estilístico, de teatralidade fácil e eficiência técnica... Houve um tempo em minha vida em que, francamente, apostei no valor ativo da crítica (como uma clara contraposição ao que considerava ser o papel inevitavelmente passivo do receptor). Hoje acredito bem mais no comentário, no desejo de acertar inerente àquele que comenta algo. Isso se ele (o comentário) se der espontaneamente e não a reboque de alguma demanda alienígena ou sentimento mortificador. Importa perguntar, como disse Deleuze, em sua carta-resposta a Michel Cressole: "isso funciona, mas como é que funciona?" Poucos se contentam com tão pouco. Menos ainda percebem a grandeza de tal ato.

Como já dissera em outra ocasião, lidar com esse par de incompossíveis: o mínimo e o exacerbado é o que, sinceramente, venho perseguindo como poeta. Trata-se, contudo, de uma tarefa nada fácil. Dizer muito - o máximo que a palavra permite naquele momento tão tênue e alongado quanto é o do versejamento, do transe poético, do esgarçamento sensório-conceitual - sobre o mundo que me cerca, tendo a condição que interferir nessa relação com a treva, atirando um pouco de luz no processo através do apuro da forma, da geometrização do caos é o que mais aspiro hoje, nesse estágio de vida em que me encontro. O problema é que sentimos o mundo cada vez mais perto e remoto - numa condição vertiginosa de abismo e de deserto (recorro aqui a Marcio Tavares d'Amaral que, provocativamente, fala, em um de seus ensaios, de um abismo da indiferenciação e de um deserto da indiferença como marcas, por excelência, da cultura comunicacional contemporânea) e se, em determinados momentos, com ele me relaciono (quase que eroticamente), em outros, tenho a certeza que só há uma possibilidade de reencontrá-lo: ao guerrear com ele, ao procurar destruí-lo, sem estardalhaço, visando reinvesti-lo, topologicamente, mediante uma repoiese signica do tempo-espaço. Avançar rumo ao mundo, procurando desabismá-lo, desdesertificá-lo e, com isso, dizer todo o possível sobre ele, de modo a reaproximá-lo, torná-lo, novamente, íntimo de si, é uma das tarefas graves do poeta-pensador e do pensador-poeta. Negá-lo em sua insistência, rejeitá-lo em seus apelos fáceis, é uma outra tarefa, mais árdua ainda, mas que se não for perseguida, implicará no logro, na débacle, na mentira final da poesia.

Num estágio cultural caracterizado pela perda tanto do princípio de ação quanto da própria força da realidade, por uma habilidade inédita em produzir ilusões coletivas (que, por vezes, me lembra, sinistramente, a ficção do Orwell de 1984, mas também dos Wachowski em The matrix), pela imersão tecnológica dos homens num ambiente virtual em que as simulações já nem precisam disfarçar a ausência inexorável das coisas, enfim, no momento da chamada ressaca pós-moderna, minha principal angústia não poderia deixar de ser a de conceber uma poesia que, longe de refletir, antes acusasse isso tudo - que, de algum modo, interviesse nisso tudo.

Gostaria muito que minha possível obra pudesse funcionar como uma alternativa - qualquer uma, uma qualquer entre tantas outras que virão - cuja principal ambição seria provocar uma agitação, por menor que fosse, na literatura de meu tempo, no sentido de favorecer, através dela, uma mudança na sensibilidade, sempre ao seu modo, relativamente a esse preocupante processo de afastamento entre homem e mundo. Se simulacros ocuparam de vez o lugar de um real que já não é, sendo muito complicado, para a maioria de nós, perceber isso, ou seja, distinguir entre o que acontece "naturalmente" e o que não passa de uma acintosa encenação de acontecer, não tenho dúvida, e repito, que só pode haver, hoje, uma única angústia que, de fato, compense seu embaraço: a de ser.

Claudio Willer: Potencialidades e limitações? Acho que potencialidades são algo para ser examinado por administradores, avaliando candidatos a emprego. Idem limitações. São parâmetros que servem para avaliar linguagens instrumentais, não a criação poética. Nem sempre, ou raras vezes, a avaliação de sua obra por um poeta coincidiu com seu sentido na história.

Aliás, essa muda muito. Há um século, bom mesmo, em poesia do século XIX, era Victor Hugo. Hoje a balança pende mais para Baudelaire, que acabou por exercer uma enorme influência. Simbolismo chegou a ser tendência à margem, acabou por tornar-se tendência dominante. Malditos passaram a olímpicos etc. Então, cuidado, extrema modéstia e discrição são boas normas, quando se fala da própria criação. Por isso, não situo minha obra.

Ademais, escrevo espontaneamente, poema é algo que "acontece", não uma escrita com uma finalidade, algo em vista, algum ponto de chegada. Daí a dificuldade. E o poema é plural multívoco - se eu for avaliar, acabo impondo um dentre seus muitos sentidos e leituras possíveis.

Essas minhas opiniões decorrem de eu ser idiossincrático com relação à idéia do poeta-artesão, do poema resultado do "trabalho", da poesia mais "cabeça", digamos assim. Temos um excesso de poetas inteligentes, uma adoção acrítica do Cabral mais cartesiano como paradigma. Virou cânone, ao fim e ao cabo. Discordo de tudo isso, em favor de uma poesia não apenas espontânea, porém visceral.

Quem me situa é a crítica, e, tomando umas tantas inserções em antologias, ensaios, uma ou outra coisa escrita a meu respeito, até em um ou outro livro de história da literatura brasileira, acho que me situaram bem. Não discordo de nada do que saiu a meu respeito, especialmente do que consta sobre coerência de minha poesia, meu trabalho ensaístico e como tradutor de Ginsberg, Lautréamont e Artaud (por enquanto - acho que logo, logo, haverá mais - infelizmente, dependemos demais, nessas coisas, da psicomotricidade e finanças dos editores...).

Leitores situam. E me proporcionam boas surpresas. Já contei isso em outras entrevistas - certa vez, assistindo a um filme que utilizava poemas meus (Inventário da rapina, de Aloísio Raulino), apareceu na tela um poema de Jardins da provocação ao qual eu nunca havia dado atenção especial, pensei: "Puxa, que bonito..!  Ficou bom..! Nem havia reparado..!"

Esse pessoal mais novo, Sérgio Cohn da Azougue, agora outros poetas novos, têm valorizado minha produção poética dos anos 60, aqueles poemas em prosa de Anotações para um apocalipse e Dias circulares. É engraçado, pois, na época da publicação, quase ninguém deu atenção. Recepção boa, isso foi a partir de Jardins da provocação.

Donizete Galvão: Esta pergunta derruba qualquer um. A gente vai tecendo algumas ilusões, tentando formar uma imagem de ser humano afetuoso, dono de um certo talento, e vem uma pergunta dessas e transforma tudo em ruínas. Se você perde todas as suas ilusões e vê com crueza o que realmente é, sobra bem pouco, não? Prefiro acreditar que sou um poeta menor. daqueles discretos, pois minha poesia não é de levantar poeira. É uma poesia em voz  baixa, sem grandes arroubos e altos vôos. Outro dia, lendo um ensaio de Ortega y Gasset, ele diz que, como todo espanhol, é um homem sem muita imaginação. Ele descreve um estado de vertigem, de incômodo, dentro de uma catedral gótica. Eu também sou assim.  Não me vejo como um poeta imaginativo, com poder de criar imagens de grande impacto ou melodias encantatórias. Isso é uma limitação porque sei que não terei instantes febris de criação e nem fôlego para vôos sublimes. Acho que minha poesia está permanentemente ligado ao mundo material, às coisas terrenas, aos bichos e objetos. A poeta uruguaia Circe Maia disse que tem pé de chumbo. Eu também. Não estou nem um pouco preocupado com aquelas divisões de Pound de mestre, inventor, diluidor ou coisa parecida. Eu sou muito avesso a grupos ou a fazer da literatura uma profissão. Nem é uma crítica a quem faz isso, mas o reconhecimento da minha incapacidade. Prefiro levar tudo com humor, com certa leveza, sem me levar tão a sério como se existisse o que chamam de "carreira literária".

Até agora tive a felicidade de ter tido críticos muito atentos do meu trabalho como Augusto Massi, Fernando Py,  Floriano Martins, Miguel Sanches Neto, Ivan Marques, José Paulo Paes, Régis Gonçalves. Eles me ajudaram a compreender mais claramente os dilemas de quem faz poesia. Mais recentemente a professora da USP Ivone Daré Rabello publicou na revista Rodapé um artigo longo que aborda o que escrevi desde o primeiro livro Azul navalha, que é de 88 até Ruminações, de 99. É uma visão acurado do que faço, inclusive dos defeitos. Além disso, em momentos de aperto, para responder a algumas perguntas que me foram feitas em entrevistas tive que refletir melhor sobre o que escrevi. Não costumo reler meus poemas porque é muito frustrante. A minha sensação é de que a poesia sempre escapa, deixa apenas uns fiapos nas nossas mãos. Eu vejo que minha poesia vai para um processo de retirada de todo enfeite ou acessório, em que a presença do poeta deve ser muita discreta, quase inexistente. Ela fala também do que é antipoético, de restos e restolhos. Se existem coisas positivas na minha poesia, devo ao meu estado permanente de perplexidade e dúvida. Principalmente, sobre como cavar um espaço para a poesia mesmo que ela sabendo que não pode objetivamente mudar as pessoas e a realidade. Como ela pode catalisar as tensões e os conflitos de uma país em que a modernização não se concretizou, virou ruínas? Como podemos, para além da dor de cada um, refletir sobre esses impasses? E  mais não digo  pois, como no caso daqueles filmes policiais americanos, vou usar agora o direito de permanecer calado  e não declarar coisas que deponham contra mim mesmo.

 

Fabiano Calixto: Vou tentar responder a essa pergunta apesar de achar que a melhor resposta se daria vinda de um terceiro (leitor, crítico), mas, vamos lá.

A poesia entrou em minha vida através da música popular (Chico Buarque, Caetano Veloso e os Beatles, principalmente), acredito, portanto, na musicalidade de meu trabalho, mesmo quando busco o ruído, o barulho das palavras, experimentos sonoros - isto talvez seja uma potencialidade.

O cotidiano está incrustado em meus poemas até a medula. Interesso-me muito pelas coisas do diariamente, minha cidade, meu bairro, minhas andanças, cervejas com amigos etc, coisas extremamente humanas, como regar a pequena horta ou colocar um disco para ouvir num domingo chuvoso.

Tenho atração por palavras que agradam ao meu ouvido, palavras belas como nomes de flores e pedras, e gosto também de gírias e expressões populares. Não tenho a rudeza de alguns que, num apartheid intelectual, separam o erudito e o popular, isso para mim não existe. Cartola e Stravinsky convivem muito bem em minha discoteca, assim como Patativa do Assaré convive com Baudelaire em minha biblioteca.

Depois da canção popular, ou melhor, ao mesmo tempo, fui incorporando os autores (inicialmente os poetas) que mais me interessaram (Bandeira, Oswald e Drummond, no início, depois a iluminação da Poesia Concreta, com quem aprendi a levar a literatura mais a sério, onde considerei o prazer da teoria). Guimarães Rosa e Clarice Lispector, que vieram um pouco depois, também foram fundamentais - prosas de nos colocar em órbita! De uma geração posterior, Raduan Nassar tem uma prosa estupenda, escrita fortíssima que trinca todos os ossos do corpo.

Fui buscar no cinema algo que preenchesse a agonia deste mundo, algo que amenizasse o caos. Entrei em contato, primeiramente, com Glauber Rocha e Rogério Sganzerla - O bandido da luz vermelha é uma das coisas mais viscerais, críticas e inteligentes com que já tive contato. Depois vieram os cine-autores mais complexos, como Bergman e seu belíssimo Morangos silvestres. E ainda Kurosawa e toda sua extrema beleza e inquietação. Almodóvar e suas tragédias multicoloridas. E por aí vai.

Na pintura fui ter um contato mais profundo primeiro com Van Eyck - lembro do encantamento que sua pintura exerceu sobre mim. Bosch, Goya, Van Gogh, Picasso, Magritte, Matisse, Dalí, Rivera, Frida, Kandínski, Hopper, Tarsila, Rego Monteiro, Sacilotto, entre muitos outros, fizeram de várias horas de vários dias de minha vida momentos de contemplação e reflexão sem igual. Com eles todos, aprendi a simetria do pensamento através de cores e formas. Enfim, todo meu contato com a Arte foi, e é, um aprendizado de curtição, um aprendizado com paixão e devoção. Com essas mínimas referências é possível ter-se uma idéia do que eu componho. As águas por quais eles (mestres) navegaram eu sigo sem dependência, mas com a mesma sede.

Minhas preocupações estéticas são muitas e geradas a partir de vários códigos e que muitas vezes não me deixam dormir. Atualmente preparo minha próxima coletânea de poemas, com o apoio de uma Bolsa Vitae de Artes. Em meus novos poemas há a inquietação com tudo isso que falamos - arte, desespero humano perante crises diversas (guerra, fome, pobreza de espírito, violência, morte etc.), o estar-no-mundo-aqui-e-agora, enfim. É o livro mais pessoal da minha pequena coleção de poemas. Não creio, porém, que seja um livro de mão única, muito pelo contrário, há várias ruas, becos, estradas nesta minha nova safra. No final das contas, quando o livro sair, espero, dos leitores de olhos livres, a sentença.

Onde eu me situaria? Nunca pensei muito nisso. Minha preocupação maior é fazer poemas que tenham significado primeiro para mim, pois a escrita é extensão do meu estado de espírito. Esse significado de que falo não é apenas o do poema em si, mas também o significado transcendental do fazer poético, isto é, o alívio da observação da realidade e sua expressão escrita. Quando as pessoas gostam então penso que, de alguma maneira, atingi o meu objetivo: um diálogo ímpar com outra sensibilidade, o que é mágico. Agora, de bate-pronto, me situaria na geração dos que nasceram nos setenta e que apontei na questão anterior, isto é, na geração dos que nasceram nos anos setenta e estão fazendo algo com muita honestidade. É isso.

Fabrício Carpinejar: Quero escrever como se fala, não falar como se escreve. Sem o soro das ideologias, viver diretamente as imagens, não confundindo inquietação com ansiedade. Recuso-me a transformar o livro numa audiência ou num julgamento. Sou um esboço da euforia.  Aprendo, a cada livro, a desescrever. Meu desejo é ser invisível, para que o poema seja cada vez mais visível e palpável. Não quero que o leitor note minha existência, que eu não perturbe seu fluxo, mas que ele perceba que sua vida está sendo devolvida integralmente. O poeta é aquele que furta vidas alheias e se devolve comovido. Sou essencialmente metafórico. Quero potencializar meus defeitos. Fazer com que a música fique concentrada em um assobio ou concerto de aves no rio. Quero valorizar a escrita como um movimento repentino, subterrâneo, subcutâneo. Que a poética tenha um sentido de arrebatamento, de salto, provocação, ereção, erupção, de culminância do silêncio. A poesia está muito perto do sentido do fracasso e da suspeita, da vivência da dúvida. O infortúnio tem que ser livre. Não posso pensar que uma eternidade vai me vingar, pois deixarei de acreditar e exigir de meu próprio tempo. Sondo os limites da prosa com as evidências selvagens da narrativa, a inteligência da intuição. O não-saber alimenta a queda. Todo o nascimento é explosão.  Erro em mim para acertar fora.

 

Glauco Mattoso: Eu me situo com a maior tranqüilidade (ou inquietação) entre os cotucadores não-alinhados, já que me filio a Gregório e, por tabela, a Camões, e sento no bonde ao lado de Emílio (embora não seja gordo como ele e não lhe dispute o assento). Por conseguinte, minha potencialidade está na razão direta da minha limitação: esta consiste em não poder superar Gregório ou Bocage na sátira e na satiríase, mas em compensação incorporo e canibalizo modernidades e universalidades que aqueles precursores jamais sonhariam, por mais premonitórios que fossem, donde minha atualidade e, destarte, a potencialidade ainda bem aquém da exaustão, já que, por enquanto, só lidero o ranking sonetístico dos vivos (perto dos setecentos contra mais de mil de Delfino entre os mortos), de acordo com o livro dos recordes. Mas ainda há pano para manga, sola para língua, merda para nariz e cegueira para desabafo, de modo que antes do final da década terei ultrapassado a marca delfiniana. Enquanto isso, contento-me em apresentar minha árvore genealógica e meu atestado de antecedentes, ou melhor, de antecessores, nestes dois sonetos intransitórios e intransigentes:

 

SONETO 326 PATERNAL

Por que Deus nunca é mãe? Por ser severo?
O homem necessita autoridade.
Só ama a quem receia, essa é a verdade.
Por isso amava um Pai, temia um clero.

Não é o rigor paterno que venero,
mas sim a sapiência duma idade
que já conhece Cristo, Buda e Sade,
Homero e Judas, Sócrates e Nero.

Camões na poesia sirvo e amo,
"mas não servia ao pai, servia a ela",
pois sou filho bastardo desse ramo.

Em meio a numerosa parentela,
me sinto até caçula quando chamo
Bocage de titio, mana a Florbela.

 

SONETO 533 GENIALÓGICO

Não brigo com baianos ou concretos
por causa de paulistas ou troianos,
nem brigo com tupis ou paulistanos
por causa de antropófagos diletos.

Só brigo por mim mesmo e meus projetos
exóticos, insólitos, insanos,
que não acham piloto noutros planos
e são dos regabofes só dejetos.

Sou individualista por demais
e menos engajado que um vidente,
de vez que cego estou... para os normais.

Mas como sou humano, de repente
alguém também sem mestres e sem pais
me esbarra e reconhece por parente...

 

Luiz Roberto Guedes: Ah, eu me sentaria risonhamente no fundão da classe dos pós-marginais, aqueles que resolveram estudar mais um pouquinho para "dialogar" e prosear com poetas que leram Frederick Jameson, Marjorie Perloff, e pisam com desembaraço o gramado do campus. Mas tocamos a nossa flauta de ouvido, eis a verdade. E nem posso falar em "obra". A pouca poesia que publiquei está esparsa em revistas, jornais literários e antologias, dos final dos anos 70 até o presente. Desde o Almanaque do jornal Dobrabil, de Glauco Mattoso, coligido em 1981 (e relançado agora pela Iluminuras), até a recente antologia Na Virada do Século, organizada pelos poetas Claudio Daniel e Frederico Barbosa (Editora Landy, 2002). Com exceção de Poemínima (edição do autor, 1981) Calendário lunático (Ciência do Acidente, 2000) e até de Planeta bicho, poemas para crianças (FTD, 1996),  minha poesia ainda está na gaveta. Não pude tirá-la de lá, quer dizer, do bolso, a despeito de um que outro prêmio literário que não significou publicação de livro.

É quase o caso de desengavetar uma antologia-cápsula-do-tempo, com meus "melhores poemas desconhecidos". No entanto, de 1995 para cá, tenho me dedicado à prosa, e publiquei alguns contos e noveletas juvenis, o que já me permite ser saudado condescendentemente por prosadores da prateleira de cima da nossa literatura.

Espelho meu, haverá poeta mais discreto do que eu? Minha potencialidade é acreditar na poesia como minha linguagem primeira, nossa linguagem primeira,  desde o tempo em que meu pai enchia uma colherona de óleo de fígado de bacalhau, a revulsiva Emulsão de Scott, e me dizia, "você quer Scott / ou quer chicote?". Verlaine preceituava que la musique c'est  tout, e não digo que seja, mas continuo tocando minha flauta. Glauco Mattoso diz que cada um transpira aquilo que bebeu, e meu "espectro" de absorções, reflexões e refrações abrange de Dorival Caymmi a Augusto de Campos, sem hierarquizações esterilizantes. Quanto a limitações, sei que não sou Maiacóvski. Assim como ele, também trabalho com propaganda, arma de persuasão em massa, mas sem sua angústia e nem sequer uma Lila Brik pra me assolar ou me consolar. Eu sou apenas um rapaz latino-americano que amava os Beatles e o Clube da Esquina.

 

Rodrigo Garcia Lopes: Apesar de estar na estrada há 20 anos, não creio que meus três livros anteriores tenham sido devidamente apreciados ou mesmo entendidos. Talvez seja porque, ao invés de ficar fazendo política de bastidor literário e armando minha cama, me preocupei com meu trabalho poético, que é o que fica no fim. A obra é o que sobra! Não pertenço a nenhuma panela, não acho que a "pose" é mais importante que a poesia, como muitos por aí. Nunca "comi na mão" de nenhum crítico e, principalmente, nunca fui puxa-saco de ninguém.  O espaço que porventura eu tenha conseguido foi pelo mérito dos meus poemas. Tenho uma visão eclética da poesia que não se confunde com um "vale-tudo". Não vejo limites do que pode ser feito em matéria de poesia. Mas acredito que, mesmo escrevendo em vários estilos e dicções, todos os poemas têm minha marca. E não poderiam deixar de ser, sendo escritos pela mesma pessoa, embora em estados diferentes. Isso é o oposto de idéias retrógradas como "fulano não tem voz pessoal". O que penso é que, se a poesia é mesmo um exercício de liberdade no plano da linguagem, é preciso mobilizar todas as referências e experiências que estão à nossa disposição. Sempre me incomodei com algumas críticas em relação ao meu trabalho, recriminando-me pela "falta de unidade" nos meus livros. Isso demonstra grande ignorância por parte de quem as faz. Não gosto de poetas que se aferram a um determinado "estilo" como um cão a seu osso. Há aí o risco da auto-imitação: ficar refém de uma fórmula que deu certo, repetir um "estilo" que pretensamente dá unidade e coesão aos poemas. Isto costuma dar mais certo para aqueles poetas que acham que citar os prêmios que ganhou seja indicação de qualidade. Como escreve o poeta Alexei Parschikov: "Afinal, a poesia não é meramente a habilidade de escrever o que é chamado de um bom poema - essa é a psicologia daqueles que ganham medalhas. Não, o mais importante é perceber e compartilhar a experiência da criação". Faço minhas as palavras do poeta russo.

Desde meu primeiro livro (Solarium), eu quis dinamitar essas idéias de coesão e unidade que, ao menos para o meu caso, não. É um traço, acho, da minha personalidade meio nômade. Acho que o poeta deve atirar para todas as direções, deve praticar os mais diversos estilos, estar sempre experimentando. O ser humano é, por natureza, uma sensibilidade em conflito, não é? Como querer, então, que os produtos culturais de uma mesma pessoa sigam uma ordem ou método determinado? Concordo com a frase de Charles Olson: "forma é uma extensão do conteúdo". Ou seja: cada poema é uma aventura diferente da que a precedeu.  Por isso, cada um pede uma forma adequada para sua investigação que é, ao mesmo tempo, irrepetível. Como faço questão de enfatizar, quando digo "diversidade" poética não é no sentido de uma concessão liberal-democrática, uma variedade festeira política e poeticamente correta, e sim como os sentido de "conflito", "divergência" e "dissidência" que a palavra carrega etimologicamente.

Neste último trabalho, Polivox, que quer dizer muitas vozes, eu de certa forma fecho uma trilogia. Curiosamente, meus três primeiros livros têm nome em latim: Solarium (que é uma varanda para banhos de sol), Visibilia (que é uma espécie de arquivo do visível) e Polivox (que explora essa idéia de polifonia e fragmentação do tal do "eu lírico"). É mais um eu delírico, eu diria. Solarium foi escrito em vários lugares e registra um pouco da minha passagem pela Europa e, depois, pelos Estados Unidos. São três livros em um. visibilia foi praticamente todo escrito em Florianópolis, onde morei três anos e meio, fazendo minha tese de doutorado sobre Laura Riding. A experiência da ilha, da natureza e do isolamento em que me coloquei acabaram influenciando este livro, cujos poemas buscam mais uma espécie de concisão (comparativamente ao livro anterior, onde há poemas mais longos e discursivos). Polivox, por fim, é um livro bastante experimental, no qual pretendo operar com o conceito de polifonia, com a idéia de um mesmo sujeito poder habitar vários espaços lingüísticos simultaneamente, esquizofrenicamente. Uma idéia que vem desde o nosso amigo Fernando Pessoa, com a heteronímia, e que também passa por Borges..., a possibilidade de assumir várias subjetividades na poesia, de que nada te obriga a ficar preso a uma única personalidade escritural, o poeta como uma espécie de xamã incorporador. Como vivemos hoje num mundo em que a subjetividade foi dramaticamente dissolvida, isso faz com que o livro corresponda de modo mais forte à essa realidade. Acho possível, ainda, por mais contraditório que possa parecer, uma união de formas abertas, processuais, improvisacionais, com uma poesia construtiva, atenta à materialidade da linguagem. Acho que meu trabalho tem uma peculiaridade pelo fato de eu não separar minhas várias atividades: seja traduzindo, compondo, entrevistando autores, editando a Coyote, escrevendo poemas, tudo isso vem junto para mim. Sempre vi meu trabalho como algo integrado. É minha maneira de fazer as coisas. Acredito na poesia não só enquanto um belo objecto mas enquanto um processo. Riding tem uma frase muito bonita com relação a isso: "fazer um poema é como estar vivo para sempre". Ou como ela diz: para escrever e ler um poema é preciso superar uma tremenda inércia. "Para ser poeta é preciso ser mais que poeta", escreveu Leminski. Não basta apenas dominar o código: é preciso algo mais, paixão, intensidade, percepção, alegria de viver, consciência histórica, sob o risco de sua poesia ser formalmente OK mas não dizer coisa nenhuma.

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