Esse esquema tem função meramente
didática". (itálicos meus).
A presença de uma palavra como
"consenso", logo na segunda linha de um livro que promete
mostrar "a diversidade da nossa história poética e ficcional"
(p. 10) é no mínimo perigosa. Como vimos com Noam Chomsky,
o conceito de consenso, nas sociedades democráticas, é
manufaturado, escamoteado, quase sempre para favorecer
instituições (fundações, universidades, imprensa, academias,
editoras) e os interesses dos grupos dominantes e hegemônicos
da sociedade. A fabricação desse consenso se dá todos
os dias, e a mídia é quem cuida disso, através de fórmulas
prontas e muitas vezes subliminares. É a lógica do mercado
interferindo na mente dos cidadãos. Idéias não são consensuais.
São um campo de batalha. A poesia não pode ser consensual,
pois sua prática, idealmente, é ser não-conformista.
Segundo, apresenta-se como lugar-comum e "verdade" apenas um dos
muitos possíveis discursos (este bem comum na academídia)
sobre poesia brasileira. Importante colocar Michel Foucault
na roda neste instante. Estamos diante da construção de
um discurso, de uma certa maneira de falar sobre poesia
que, por si só, já apresenta, sob a aparência de "didatismo",
uma visão ideológica de literatura. Sua função e sentido:
através de uma classificação bastante arbitrária, manter
o controle da informação sobre uma produção que hoje é
muito mais dispersa e complexa do que nos faz julgar o
parágrafo citado acima. O desejo de controle se dá pela
formulação de um regulamento e classificações, ou "enquadramentos"
e "ilações", como o crítico escreve, como numa prisão.
Não estaria na hora de buscar, não os autores que simplesmente
se conformam com os discursos de seu tempo ou aqueles
"unânimes", mas os que os contestam, os deformam, os que
não aceitam que formas "sejam separadas de seus sentidos,
que vêm ao mundo num processo histórico e social que nunca
termina", como escreveu Charles Bernstein? Sabemos que
a ideologia sempre tenta se infiltrar como verdades prontas,
sem dar a chance de resposta ou da dúvida. A tática do
procedimento ideológico - seja uma visão de mundo, "sistema
literário" ou arte - se manifesta no discurso toda vez
em que opiniões pessoais são colocadas como verdades indiscutíveis,
"lugares-comuns".
Outra coisa que não funciona como método explicativo em Literatura
Brasileira Hoje é a falsa contraposição lirismo versus formalismo. Procedimentos críticos como este, acredito, têm
sido responsáveis pela maneira
redutora com que se discute poesia brasileira hoje
no Brasil. A oposição binária construída no processo descrito
resgata a divisão cartesiana entre mente/corpo. Lirismo
= poesia "escrita com o corpo" (subjetiva, centrada no
eu, "dionisíaca"). Formalismo = poesia "escrita com o
cérebro" (objetiva, centrada no objeto, "apolínea"). Mas
não existem poetas puramente cerebrais e outros puramente
intuitivos. A neurologia moderna e os escritos de António
Damásio estão aí para contestar essa visão e mostrar que
não é assim que o cérebro humano funciona. Estamos aprendendo,
às duras penas, que, ao contrário do que formulou Descartes,
inexiste separação entre emoção e razão. E como seria
irresponsável dizer que existe poesia sem subjetividade
- e já que poesia é, sempre, ao mesmo tempo, trabalho
com a linguagem - a oposição proposta pelo autor para
descrever as duas linhas antagônicas dominantes na poesia
brasileira é no mínimo falaciosa. Como explicar a atração
de um Augusto de Campos em traduzir poetas como Rilke,
Emily Dickinson, Keats e Gerald Manley Hopkins? E não
é preciso ir muito longe na obra de Cabral para logo se
deparar com um subjetivismo que, em muitos momentos e
ironicamente, vai contra seus próprios credos de uma poesia
dura como pedra. Pode ser dura, a pedra, mas Cabral era
humano. Não existem, portanto, poetas cerebrais.
Os poetas parecem entender bem melhor esta questão, como o próprio
Augusto de Campos, que escreveu poemas concretos como
Meu coração começa
em minha cabeça. Minha cabeça começa em meu coração,
onde se lê também
não cabe em. Por outro lado, seria no mínimo descuidado
imaginar que não cabe falar de espírito "construtivo"
nos poemas de um Murilo Mendes ou Jorge de Lima, a não
ser que o crítico queira reduzir lirismo a seu sentido
meramente romântico ("inspiração", "expressão de um eu
lírico" etc) e de "construção poética" apenas à visão
do poema como "artefato" (o que pressupõe idéias como
"autonomia linguística". Claro, acredito que poesia é
a arte da linguagem
verbal, entre outras coisas. Mas na poesia
não importa só a forma (o
como) mas, em
igual peso, o quê
está sendo dito. Pensar a forma enquanto fôrma, separada
do conteúdo, é cair no mesmo erro de separar o corpo da
mente. Ainda mais surpreendente para um crítico influenciado
por Antonio Candido, o autor também parece esquecer que,
mais que um tipo de enunciado, um poema é sempre o produto
de formações discursivas do lugar histórico e do país
em que ele aparece. Não há "materialidade da linguagem"
ou formas de verso, como escreve Marjorie Perloff, imunes
às mudanças históricas ou limitações culturais e políticas. E seria estranho afirmar
que não existe "experimentalismo" e "objetivismo" em poetas
que, segundo a classificação proposta pelo livro, seriam
considerados subjetivistas e líricos. Estes termos, aliás,
bem como "formalismo", "experimentalismo", nunca são definidos.
A oposição binária lirismo-subjetivismo versus
objetivismo-experimentalismo-formalismo é falsa; limita
a gama de possibilidades poéticas e discursivas, camufla
uma arena de conflitos, uma práxis muito mais rica e complexa.
Logo adiante, Manuel da Costa Pinto escreve: "Como o leitor verá,
são raros os autores citados neste livro que não estejam
inseridos num contexto maior de obras da tradição modernista.
Isso deixa pouco ou nenhum espaço para uma poesia intuitiva,
de expressão emocional, que só existe como fenômeno editorial
periférico". Se intuição for entendida aqui no sentido
de "faculdade de perceber" e "forma de conhecimento direta",
por exemplo, talvez seja isso o que esteja faltando na
poesia brasileira hoje. Por outro lado, não dá mais para
falar de poesia como se estivéssemos numa redoma de vidro.
E os blogues? E os sites e e-zines de poesia, que chegam
a ter mais acessos do que jamais sonharíamos nos anos
80, antes das Windows, de Bill Gates e da Internet? Independente
da qualidade do que se publica por esses novos espaços,
e em grande quantidade, é possível a um crítico desconhecer
esses fenômenos? Discutindo literatura brasileira hoje,
o autor também não faz qualquer menção ao imenso esforço
que poetas e tradutores brasileiros, das mais diversas
"escolas", além de inúmeras revistas, têm tido para trazer
para a língua e cultura brasileiras outras tradições,
inclusive resgatando autores nacionais ainda à margem,
atualizando nosso diálogo com o mundo. O livro peca, assim,
ao demonstrar uma impermeabilidade a diálogos possíveis
com outras tradições e países (inevitáveis nos dias de
hoje). Parece que na literatura brasileira hoje tudo é
recordação e/ou repetição. Os autores são bons se "cerram
diálogo" ou cujas poéticas "lembrem" B, C ou D.
Mesmo que o autor não comungue da cartilha de determinados poetas,
é espantoso, principalmente para um livro que tem intenção
de fazer cânone e de "explicar" a poesia brasileira hoje,
as gritantes exclusões de autores representativos como
Paulo Leminski (PR), Ana Cristina César (RJ), Orides Fontela
(São João da Boa Vista, SP) ou de Roberto Piva (SP), enquanto
inclui como "eixos referenciais da nova poesia brasileira"
poetas ainda iniciantes ou sem expressão. Já poetas como
Horácio Costa, Josely Vianna-Baptista e Cláudio Daniel
são encerrados no rótulo "neo-barroco". E fica tudo por
isso mesmo.
Um poeta irregular mas importante em termos históricos como Chacal
é mencionado apenas por ter pertencido à "geração mimeógrafo",
no verbete dedicado a Glauco Mattoso. Paulo Leminski é
citado duas vezes: na primeira, como mero companheiro
de geração no verbete dedicado a Régis Bonvicino (poeta
importante, e que estranhamente tem sua trajetória definida
como partindo "do diálogo com a poesia concreta para o
diálogo consigo mesmo" (!?). Na segunda vez em que Leminski
é mencionado, aparece no verbete dedicado a Arnaldo Antunes,
este tido como um autor que compartilha da "dicção minimalista
e da temática pop dos haicais de Paulo Leminski e Alice
Ruiz". Nenhuma palavra sobre a poesia de Leminski, nem
a Caprichos e Relaxos, um dos maiores fenômenos de público da poesia
recente, ou do que o crítico entende por "pop", sem dizer
da exclusão do "maximalista" Catatau,
ignorado no livro mesmo na parte dedicada à prosa. Já
Ana Cristina César, sem dúvida a poeta recente mais estudada
e cultuada no Brasil, aparece en passant no verbete dedicado a Armando Freitas Filho, citada como
"amiga". E só. Orides Fontela, outra grande poeta, sequer
é mencionada. Essas exclusões são problemáticas, haja
vista a influência que principalmente os dois primeiros
poetas tiveram e têm sobre toda uma geração que está aí.
Afinal, quem constrói a literatura de um país? Os públicos
ou a crítica?
Então caímos na criação de uma aporia que já limita a compreensão
da proposta. Como um livro pode pretender apresentar,
como é o caso de Literatura
Brasileira Hoje, "o afresco variadíssimo de tendências
que se interceptam e se influenciam reciprocamente" quando
o autor, mais adiante, afirma categoricamente que "praticamente
todos (mas não todos) os autores aqui incluídos são
caracterizados pelo rigor
construtivo, pela precisão
léxica ou pela pesquisa
de novos patamares expressivos propiciados pela linguagem"?
(itálicos meus). Poesia não é, sempre, uma
experiência com/na/de linguagem? E é de se perguntar,
por exemplo, desde quando "rigor construtivo" e "precisão
léxica" são enquadramentos obrigatórios para escrever
poesia? Quem decide o que é "rigor" e "precisão"? Mesmo
termos como "concisão" têm de ser relativizados: um poema
pode ser "conciso" e não dizer muita coisa, mesmo em poucas
palavras.
Vale a pena lembrar aqui o que escreveu
Wittgenstein: qualquer limite colocado na linguagem proscreve
os limites do que será experimentado; exclui outras possibilidades
de devires da linguagem que, como disse o filósofo, são
antes de tudo "formas de vida"? Nós
já vimos essa história contada algumas vezes, como veremos
outras vezes mais, no esquema papai-mamãe da historiografia
poética brasileira recente, mas sem que tenhamos tempo
de perguntar: as coisas se processam realmente assim?
Será que sempre teremos, como escreveu o poeta baiano-brasiliense
Luis Turiba, de assistir "o eterno retorno do passo à
frente"? Ou estaremos vendo a receita de uma vanguarda
paradoxalmente conformista? O que é ler "criticamente
o repertório da poesia brasileira" quando o hábito tem
sido se falar dos mesmos autores canônicos, dos mesmos
poemas, dos mesmos modos de enunciação? Toda história
é uma "construção", não esqueçamos, e devem ser discutidas
como tais, e não como verdades universais.
Por mais que compreendamos a proposta da coleção, para um livro que
carrega a pretensão de mostrar "o que está em jogo na
poesia e na prosa que se escreve no Brasil", é meio constrangedor
se deparar com a velha replicação hegemônica Rio-São Paulo
em sua configuração, como se o organizador não tivesse
tido tempo de investigar mais a fundo o que está sendo
produzido "no resto do Brasil". Na parte do livro dedicada
à poesia, dos 30 poetas escolhidos como eixos-narrativos,
12 são da cidade de São Paulo e 12 do Rio ou radicados
ali (numa verdadeira pizza mezzo
a mezzo). Três são de Minas Gerais, um da Bahia e
dois não vêm de um estado tradicionalmente tido com "vocação
literária", como Manoel de Barros (MS) e o paraense Age
de Carvalho, que há tempos vive na Europa.
Mas a questão não é a só exclusão ou inclusão pura e simples de nomes,
ou mesmo geopoética. Embaralham-se autores sob rótulos
que nada têm a ver com o todo de suas obras. O crítico
constrói uma mini-narrativa ao redor de determinado autor,
para depois traçar ecos e influências com outros autores,
que são citados de passagem, sem maior desenvolvimento
crítico, congelados sob nomenclaturas vagas como "campos
de força". Poetas distintos são colocados debaixo de um
mesmo guarda-chuva sem qualquer aprofundamento maior.
Agrupam-se poetas cujas práticas diferem, em mesmos escaninhos
de filiação. Como ocorre, por exemplo, no caso do verbete
dedicado a Affonso Henriques Neto, onde, numa cela escura
e pequena, ou no mesmo "campo", são atirados nomes como
os de Roberto Piva, Ademir Assunção, Rodrigo de Haro,
Contador Borges, Ricardo Corona, Ruy Proença e Sergio
Cohn, todos sumamente rotulados de "surrealistas" e tendo
em comum, seguindo a lógica do agrupamento, a suposição
de que sejam "avessos ao formalismo da vanguarda concretista",
o que soa quase como acusação. Muita calma nessa hora.Parece-me que rotular autores é seguir a lógica de nossa era mercadológica
e superficial na literatura.De um lado, poetas "ins-pirados", do outro, os "artífices". Ali,
"pós-beats", na fileira à esquerda, "pós-concretos", no
fundo "cabralinos", atrás, "geração 90" etc. Muitas vezes
parece ser um procedimento usado por um desconhecimento
mais profundo das obras rotuladas. É assumir o vale-tudo
que a crítica
sempre critica.
Manuel da Costa Pinto define como traço dominante da poesia brasileira
hoje "um diálogo cerrado com a tradição". Mas, se é "cerrado",
duplamente pode-se ler o termo como "fechado com a tradição".
Novamente, outra metáfora de enclausuramento. Mas não
é "qualquer tradição", como ele faz questão de deixar
claro: tudo
o que veio depois é diretamente tributário de Manuel Bandeira,
Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de
Andrade, João Cabral de Melo Neto e da poesia concreta.
Na linha da "angústia da influência", o crítico revela
um automatismo de gosto ao achar que uma poesia é boa
porque faz lembrar fulano de tal. Esta é uma visão mais
tributária de T. S. Eliot, e data do começo do século
20. A tese é que um "talento individual" eternamente presta
tributo a um clube fechado, A Tradição, do que enquanto
sua crítica e superação. Um lugar onde não se entra sem
antes apresentar as credenciais canônicas. Seria muito
mais interessante tomarmos a visão de Borges, a de que
todo escritor cria seus precursores e antecessores.
Mas existiram e existem poetas na literatura brasileira que não estavam
preocupados em escrever para os mestres, para a história,
e que nem por isso morreram por não travar um "diálogo
cerrado com a tradição". Mesmo aceitando em tese esse
diálogo, mas não como algo "cerrado", o que dizer da estranha
influência de um Whitman sobre Luis Aranha, ou de um Apollinaire
e Blaise Cendrars sobre um Raul Bopp? Ou da filosofia
e poesia oriental sobre um "concreto" como Pedro Xisto?
Não nos interessam esses outros relatos? Outro exemplo:
apesar de um poeta como Roberto Piva ser em parte tributário
de um Oswald e Mário, freqüentemente se esquece que sua
"tradição" é mais além, anárquica e plural o bastante
para incluir poéticas extra-literárias brasileiras, os
beats, Blake, surrealistas, Rimbaud, Sade, Michaux, Pasolini,
anarquistas, situacionistas, autores e tradições que nem
de longe passaram pelo paideuma dos Campos ou de Cabral
e seguidores, muito menos da cartilha modernista e conservadora
da academídia. O mesmo pode-se de outros poetas contemporâneos.
Ao contrário de aceitar o "consenso", ou de ler a literatura hoje
a partir dessa única visada edipiana-freudiana, existem
autores buscando o diálogo criativo com outras tradições
e culturas, o que se faz cada vez mais necessário hoje.
Não é negar a tradição da NPB (Nova Poesia Brasileira):
é simplesmente dizer que ela certamente mais de uma, e
que talvez seja preciso descobrir outradições, bem como os lugares-incomuns. Como define um notório inovador, John Cage, em entrevista
concedida para meu livro Vozes
& Visões (Iluminuras, 1996):
"Não acho que o papel da vanguarda tenha terminado: ela sempre existirá
de um modo ou de outro, ainda que o uso da palavra ' vanguarda'
como a entendíamos não seja mais aplicável, hoje. [...]
Porque ela traz a idéia de que existe uma corrente principal,
uma mainstream.
Só que essa mainstream
não existe mais. Prefiro adotar a imagem de um delta de
rio: hoje o rio se dividiu, não sabemos mais qual é a
corrente principal. O que vejo é uma multiplicidade de
direções sendo tomadas" (104).
Ou como define um outro músico e poeta, este brasileiro, Vitor Ramil:
"Não estou à margem de uma história. Estou no centro de
outra".
E o que aconteceria com esta história se, deslocando o foco, elegêssemos
como poetas "centrais" Jorge de Lima, Murilo Mendes, Carlos
Pena Filho, Dante Milano, Raul Bopp, Juó Bananére, Pedro
Xisto, Mario Faustino, Ferreira Gullar, Paulo Leminski,
Sebastião Nunes, Mário Quintana, sempre excluídos do cânon maximum? Que tipo de poesia brasileira se teria? Não existe
uma corrente principal que desaguou em dois córregos e
parou por aí, como o livro nos leva a pensar.
"Um sentido da história e um sentido da teoria: estes são os pólos
gêmeos da crítica ausentes da maior parte do discurso
poético dos nossos dias", escreve Perloff no ensaio "Do
que Não Falamos Quando Falamos de Poesia", em Poetry
on and off the Page .
Podemos caracterizar os verbetes do livro de Manuel da
Costa Pinto também como "group reviews", resenhas de grupo,
"sendo uma das tarefas principais a descoberta de um elo
comum do tipo 'only connect´". (176).
Tomo o livro de Manuel da Costa Pinto apenas como sintomático de
um discurso crítico ainda dominante, em seu método normatizador
de classificação autoral, do discurso de filiação patriarcal,
enquanto replica uma narrativa-mestra sobre o percurso oficial
da poesia brasileira hoje. Afinal, "Que importa quem é o
mestre?". No Brasil, importa, e muito, principalmente nas
discussões literárias.
O grande problema da academídia e de outras instâncias de poder literário
tem sido negligenciar autores e poéticas mais inconformistas.
E inconformistas, aqui, não só como visão crítica da linguagem
e de mundo, mas no sentido de uma recusa em aceitar candidamente
regras pré-definidas do jogo poético. Pós-tudo, há muito ainda em dizer, de muitas formas. Muitos poetas
hoje não comungam com essa visão, à Harold Bloom, "do
medo de todo poeta de que não haja mais nada para ser
feito", como escreve o crítico americano. Será que os
poetas só estão interessados em escrever para outros poetas?
Muitos autores brasileiros importantes hoje têm uma relação
nada angustiada e passiva com a tradição, sempre procurando
diálogos prazerosos com outras experiências, tradições,
uma coisa cada vez mais necessária no mundo hoje.
Outro problema das instâncias de poder literário no Brasil é
voltar ao mesmo elenco de autores e poéticas canonizadas,
como se para tentar justificar uma suposta pobreza da
poesia brasileira atual. É uma ótica que se casa perfeitamente
para um projeto de "museu de cera", estilo Madame Tussauds,
mas pouco útil quando se tem uma visão de poesia como
coisa viva, para os vivos. Aliás, seria até interessante
ver um museu de cera deste tipo, um espaço onde novos
poetas poderiam "cerrar diálogo com a tradição" em ambiente
agradável e sem ventilação (com studios
onde os pupilos poderiam aprender a imitar à perfeição
as obras-primas dos mestres, sem serem atrapalhados pelo
mundo exterior) e que traz na entrada os seguintes dizeres:
"Morra: você não sabe o que está perdendo".
Se poesia é a arte da linguagem, espaço verbal livre, ela significa
também liberdade de escolher seus precursores. Se o passado
não servir para reacender o espírito de inconformismo, que
seja também uma eterna curiosidade, sem o qual a poesia
não vive, que graça em permanecer vivo? A poesia precisa
estar sempre experimentando novas formas e modos de dizer,
de tocar no nervo da vida. Temos muito o que aprender ainda
com o velho dito de Bashô: "Evite as trilhas batidas. Você
verá coisas nunca vistas".
Rodrigo Garcia Lopes é
escritor, tradutor e autor
de Solarium (Iluminuras),
visibilia (Travessa dos Editores),
Polivox (Azougue), Nômada (Lamparina), entre outros. Desde 2002 edita, com Marcos Losnak
e Ademir Assunção, a revista Coyote.
Leia também poemas
de Rodrigo Garcia Lopes.
*
[1]
"Momento Crítico - Meu Meio Século", Sibila
-Revista de Poesia e Cultura, número 7, ano 4, dezembro
de 2004.
[2]
Poetry on and
off the page: essays for emergent occasions. Northwestern
University Press, 1998, página 143.
[3]
Bandeira, Cabral, Drummond...
O mesmo discurso redutor se manifesta na introdução de uma antologia de poesia brasileira recente, publicada nos
Estados Unidos sob o título Nothing
the Sun Could Explain: 20 Contemporary Brazilian Poets
(Sun & Moon Press, 1996) editado por Regis Bonvicino,
Michael Palmer e Nelson Ascher: ao mesmo tempo em
que o Prefácio fala de "diversidade e extensão da
poesia brasileira contemporânea" a ênfase principal
da antologia é definida como, "na falta de uma palavra
melhor, Pós-Concreta". Como é possível pretender mostrar
diversidade se limitando aos parâmetros únicos e exclusivos
do discurso concretista? E mais à frente, na Introdução,
uma pérola, que sintetiza muito da discussão aqui:
"Re-ler poetas que não se juntaram à mainstream é tão melancólico quanto contemplar um guarda-roupas fora-de-moda".
Livro de 1998, publicado também no número 12 da revista
Inimigo Rumor
(2002)