ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

MUITO ALÉM DA ACADEMÍDIA: POESIA BRASILEIRA HOJE

 

 

Rodrigo Garcia Lopes

      

Gostaria de discutir aqui o caso recente de Literatura Brasileira Hoje (Publifolha, 159 páginas, 2004), de Manuel da Costa Pinto, como sintoma de um modo viciado e recorrente de se discutir literatura mas, especificamente, poesia brasileira hoje. O livro foi bastante malhado, inclusive por um tipo de crítica de convescote, como a publicada na revista Sibila, ficcionalmente feita à volta de uma mesa de jantar, na comemoração dos 50 anos do crítico Alcir Pécora, da Unicamp[1]. Escrito por alguém que foi um editor brilhante da revista CULT, e também pela visibilidade e importância da atuação de Manuel da Costa Pinto na crítica literária recente, o livro merece um olhar mais atento. O que salta aos olhos já no início é a presença incômoda e infeliz da palavra "consenso". Vale a pena ler com atenção seu primeiro parágrafo:
"Existem duas idéias sobre a poesia brasileira que são consensuais, a ponto de terem virado lugares-comuns. A primeira diz que um de seus traços dominantes é o diálogo cerrado com a tradição. Mas não qualquer tradição. O marco zero, por assim dizer, seria a poesia que emergiu com a Semana de Arte Moderna de 22. A segunda idéia, decorrente da primeira, é que essa linhagem modernista se bifurca em dois eixos principais: uma vertente mais lírica, subjetiva, articulada em torno de Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade; e outra mais objetiva, experimental, formalista, representada por Oswald de Andrade, João Cabral de Melo neto e a poesia concreta. 

Esse esquema tem função meramente didática". (itálicos meus).

A presença de uma palavra como "consenso", logo na segunda linha de um livro que promete mostrar "a diversidade da nossa história poética e ficcional" (p. 10) é no mínimo perigosa. Como vimos com Noam Chomsky, o conceito de consenso, nas sociedades democráticas, é manufaturado, escamoteado, quase sempre para favorecer instituições (fundações, universidades, imprensa, academias, editoras) e os interesses dos grupos dominantes e hegemônicos da sociedade. A fabricação desse consenso se dá todos os dias, e a mídia é quem cuida disso, através de fórmulas prontas e muitas vezes subliminares. É a lógica do mercado interferindo na mente dos cidadãos. Idéias não são consensuais. São um campo de batalha. A poesia não pode ser consensual, pois sua prática, idealmente, é ser não-conformista.

Segundo, apresenta-se como lugar-comum e "verdade" apenas um dos muitos possíveis discursos (este bem comum na academídia) sobre poesia brasileira. Importante colocar Michel Foucault na roda neste instante. Estamos diante da construção de um discurso, de uma certa maneira de falar sobre poesia que, por si só, já apresenta, sob a aparência de "didatismo", uma visão ideológica de literatura. Sua função e sentido: através de uma classificação bastante arbitrária, manter o controle da informação sobre uma produção que hoje é muito mais dispersa e complexa do que nos faz julgar o parágrafo citado acima. O desejo de controle se dá pela formulação de um regulamento e classificações, ou "enquadramentos" e "ilações", como o crítico escreve, como numa prisão. Não estaria na hora de buscar, não os autores que simplesmente se conformam com os discursos de seu tempo ou aqueles "unânimes", mas os que os contestam, os deformam, os que não aceitam que formas "sejam separadas de seus sentidos, que vêm ao mundo num processo histórico e social que nunca termina", como escreveu Charles Bernstein? Sabemos que a ideologia sempre tenta se infiltrar como verdades prontas, sem dar a chance de resposta ou da dúvida. A tática do procedimento ideológico - seja uma visão de mundo, "sistema literário" ou arte - se manifesta no discurso toda vez em que opiniões pessoais são colocadas como verdades indiscutíveis, "lugares-comuns".

Outra coisa que não funciona como método explicativo em Literatura Brasileira Hoje é a falsa contraposição lirismo versus formalismo. Procedimentos críticos como este, acredito, têm sido responsáveis pela maneira  redutora com que se discute poesia brasileira hoje no Brasil. A oposição binária construída no processo descrito resgata a divisão cartesiana entre mente/corpo. Lirismo = poesia "escrita com o corpo" (subjetiva, centrada no eu, "dionisíaca"). Formalismo = poesia "escrita com o cérebro" (objetiva, centrada no objeto, "apolínea"). Mas não existem poetas puramente cerebrais e outros puramente intuitivos. A neurologia moderna e os escritos de António Damásio estão aí para contestar essa visão e mostrar que não é assim que o cérebro humano funciona. Estamos aprendendo, às duras penas, que, ao contrário do que formulou Descartes, inexiste separação entre emoção e razão. E como seria irresponsável dizer que existe poesia sem subjetividade - e já que poesia é, sempre, ao mesmo tempo, trabalho com a linguagem - a oposição proposta pelo autor para descrever as duas linhas antagônicas dominantes na poesia brasileira é no mínimo falaciosa. Como explicar a atração de um Augusto de Campos em traduzir poetas como Rilke, Emily Dickinson, Keats e Gerald Manley Hopkins? E não é preciso ir muito longe na obra de Cabral para logo se deparar com um subjetivismo que, em muitos momentos e ironicamente, vai contra seus próprios credos de uma poesia dura como pedra. Pode ser dura, a pedra, mas Cabral era humano. Não existem, portanto, poetas cerebrais.

Os poetas parecem entender bem melhor esta questão, como o próprio Augusto de Campos, que escreveu poemas concretos como Meu coração começa em minha cabeça. Minha cabeça começa em meu coração, onde se lê também não cabe em. Por outro lado, seria no mínimo descuidado imaginar que não cabe falar de espírito "construtivo" nos poemas de um Murilo Mendes ou Jorge de Lima, a não ser que o crítico queira reduzir lirismo a seu sentido meramente romântico ("inspiração", "expressão de um eu lírico" etc) e de "construção poética" apenas à visão do poema como "artefato" (o que pressupõe idéias como "autonomia linguística". Claro, acredito que poesia é a arte da linguagem verbal, entre outras coisas. Mas na poesia  não importa só a forma (o como) mas, em igual peso, o quê está sendo dito. Pensar a forma enquanto fôrma, separada do conteúdo, é cair no mesmo erro de separar o corpo da mente. Ainda mais surpreendente para um crítico influenciado por Antonio Candido, o autor também parece esquecer que, mais que um tipo de enunciado, um poema é sempre o produto de formações discursivas do lugar histórico e do país em que ele aparece. Não há "materialidade da linguagem" ou formas de verso, como escreve Marjorie Perloff, imunes às mudanças históricas ou limitações culturais e políticas[2]. E seria estranho afirmar que não existe "experimentalismo" e "objetivismo" em poetas que, segundo a classificação proposta pelo livro, seriam considerados subjetivistas e líricos. Estes termos, aliás, bem como "formalismo", "experimentalismo", nunca são definidos. A oposição binária lirismo-subjetivismo versus objetivismo-experimentalismo-formalismo é falsa; limita a gama de possibilidades poéticas e discursivas, camufla uma arena de conflitos, uma práxis muito mais rica e complexa.

Logo adiante, Manuel da Costa Pinto escreve: "Como o leitor verá, são raros os autores citados neste livro que não estejam inseridos num contexto maior de obras da tradição modernista. Isso deixa pouco ou nenhum espaço para uma poesia intuitiva, de expressão emocional, que só existe como fenômeno editorial periférico". Se intuição for entendida aqui no sentido de "faculdade de perceber" e "forma de conhecimento direta", por exemplo, talvez seja isso o que esteja faltando na poesia brasileira hoje. Por outro lado, não dá mais para falar de poesia como se estivéssemos numa redoma de vidro. E os blogues? E os sites e e-zines de poesia, que chegam a ter mais acessos do que jamais sonharíamos nos anos 80, antes das Windows, de Bill Gates e da Internet? Independente da qualidade do que se publica por esses novos espaços, e em grande quantidade, é possível a um crítico desconhecer esses fenômenos? Discutindo literatura brasileira hoje, o autor também não faz qualquer menção ao imenso esforço que poetas e tradutores brasileiros, das mais diversas "escolas", além de inúmeras revistas, têm tido para trazer para a língua e cultura brasileiras outras tradições, inclusive resgatando autores nacionais ainda à margem, atualizando nosso diálogo com o mundo. O livro peca, assim, ao demonstrar uma impermeabilidade a diálogos possíveis com outras tradições e países (inevitáveis nos dias de hoje). Parece que na literatura brasileira hoje tudo é recordação e/ou repetição. Os autores são bons se "cerram diálogo" ou cujas poéticas "lembrem" B, C ou D[3].

Mesmo que o autor não comungue da cartilha de determinados poetas, é espantoso, principalmente para um livro que tem intenção de fazer cânone e de "explicar" a poesia brasileira hoje, as gritantes exclusões de autores representativos como Paulo Leminski (PR), Ana Cristina César (RJ), Orides Fontela (São João da Boa Vista, SP) ou de Roberto Piva (SP), enquanto inclui como "eixos referenciais da nova poesia brasileira" poetas ainda iniciantes ou sem expressão. Já poetas como Horácio Costa, Josely Vianna-Baptista e Cláudio Daniel são encerrados no rótulo "neo-barroco". E fica tudo por isso mesmo.

Um poeta irregular mas importante em termos históricos como Chacal é mencionado apenas por ter pertencido à "geração mimeógrafo", no verbete dedicado a Glauco Mattoso. Paulo Leminski é citado duas vezes: na primeira, como mero companheiro de geração no verbete dedicado a Régis Bonvicino (poeta importante, e que estranhamente tem sua trajetória definida como partindo "do diálogo com a poesia concreta para o diálogo consigo mesmo" (!?). Na segunda vez em que Leminski é mencionado, aparece no verbete dedicado a Arnaldo Antunes, este tido como um autor que compartilha da "dicção minimalista e da temática pop dos haicais de Paulo Leminski e Alice Ruiz". Nenhuma palavra sobre a poesia de Leminski, nem a Caprichos e Relaxos, um dos maiores fenômenos de público da poesia recente, ou do que o crítico entende por "pop", sem dizer da exclusão do "maximalista" Catatau, ignorado no livro mesmo na parte dedicada à prosa. Já Ana Cristina César, sem dúvida a poeta recente mais estudada e cultuada no Brasil, aparece en passant no verbete dedicado a Armando Freitas Filho, citada como "amiga". E só. Orides Fontela, outra grande poeta, sequer é mencionada. Essas exclusões são problemáticas, haja vista a influência que principalmente os dois primeiros poetas tiveram e têm sobre toda uma geração que está aí. Afinal, quem constrói a literatura de um país? Os públicos ou a crítica? 

Então caímos na criação de uma aporia que já limita a compreensão da proposta. Como um livro pode pretender apresentar, como é o caso de Literatura Brasileira Hoje, "o afresco variadíssimo de tendências que se interceptam e se influenciam reciprocamente" quando o autor, mais adiante, afirma categoricamente que "praticamente todos (mas não todos) os autores aqui incluídos são caracterizados pelo rigor construtivo, pela precisão léxica ou pela pesquisa de novos patamares expressivos propiciados pela linguagem"?  (itálicos meus). Poesia não é, sempre, uma experiência com/na/de linguagem? E é de se perguntar, por exemplo, desde quando "rigor construtivo" e "precisão léxica" são enquadramentos obrigatórios para escrever poesia? Quem decide o que é "rigor" e "precisão"? Mesmo termos como "concisão" têm de ser relativizados: um poema pode ser "conciso" e não dizer muita coisa, mesmo em poucas palavras.

Vale a pena lembrar aqui o que escreveu Wittgenstein: qualquer limite colocado na linguagem proscreve os limites do que será experimentado; exclui outras possibilidades de devires da linguagem que, como disse o filósofo, são antes de tudo "formas de vida"? Nós já vimos essa história contada algumas vezes, como veremos outras vezes mais, no esquema papai-mamãe da historiografia poética brasileira recente, mas sem que tenhamos tempo de perguntar: as coisas se processam realmente assim? Será que sempre teremos, como escreveu o poeta baiano-brasiliense Luis Turiba, de assistir "o eterno retorno do passo à frente"? Ou estaremos vendo a receita de uma vanguarda paradoxalmente conformista? O que é ler "criticamente o repertório da poesia brasileira" quando o hábito tem sido se falar dos mesmos autores canônicos, dos mesmos poemas, dos mesmos modos de enunciação? Toda história é uma "construção", não esqueçamos, e devem ser discutidas como tais, e não como verdades universais.

Por mais que compreendamos a proposta da coleção, para um livro que carrega a pretensão de mostrar "o que está em jogo na poesia e na prosa que se escreve no Brasil", é meio constrangedor se deparar com a velha replicação hegemônica Rio-São Paulo em sua configuração, como se o organizador não tivesse tido tempo de investigar mais a fundo o que está sendo produzido "no resto do Brasil". Na parte do livro dedicada à poesia, dos 30 poetas escolhidos como eixos-narrativos, 12 são da cidade de São Paulo e 12 do Rio ou radicados ali (numa verdadeira pizza mezzo a mezzo). Três são de Minas Gerais, um da Bahia e dois não vêm de um estado tradicionalmente tido com "vocação literária", como Manoel de Barros (MS) e o paraense Age de Carvalho, que há tempos vive na Europa.

Mas a questão não é a só exclusão ou inclusão pura e simples de nomes, ou mesmo geopoética. Embaralham-se autores sob rótulos que nada têm a ver com o todo de suas obras. O crítico constrói uma mini-narrativa ao redor de determinado autor, para depois traçar ecos e influências com outros autores, que são citados de passagem, sem maior desenvolvimento crítico, congelados sob nomenclaturas vagas como "campos de força". Poetas distintos são colocados debaixo de um mesmo guarda-chuva sem qualquer aprofundamento maior. Agrupam-se poetas cujas práticas diferem, em mesmos escaninhos de filiação. Como ocorre, por exemplo, no caso do verbete dedicado a Affonso Henriques Neto, onde, numa cela escura e pequena, ou no mesmo "campo", são atirados nomes como os de Roberto Piva, Ademir Assunção, Rodrigo de Haro, Contador Borges, Ricardo Corona, Ruy Proença e Sergio Cohn, todos sumamente rotulados de "surrealistas" e tendo em comum, seguindo a lógica do agrupamento, a suposição de que sejam "avessos ao formalismo da vanguarda concretista", o que soa quase como acusação. Muita calma nessa hora.Parece-me que rotular autores é seguir a lógica de nossa era mercadológica e superficial na literatura.De um lado, poetas "ins-pirados", do outro, os "artífices". Ali, "pós-beats", na fileira à esquerda, "pós-concretos", no fundo "cabralinos", atrás, "geração 90" etc. Muitas vezes parece ser um procedimento usado por um desconhecimento mais profundo das obras rotuladas. É assumir o vale-tudo que a   crítica sempre critica.

Manuel da Costa Pinto define como traço dominante da poesia brasileira hoje "um diálogo cerrado com a tradição". Mas, se é "cerrado", duplamente pode-se ler o termo como "fechado com a tradição". Novamente, outra metáfora de enclausuramento. Mas não é "qualquer tradição", como ele faz questão de deixar claro: tudo o que veio depois é diretamente tributário de Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e da poesia concreta. Na linha da "angústia da influência", o crítico revela um automatismo de gosto ao achar que uma poesia é boa porque faz lembrar fulano de tal. Esta é uma visão mais tributária de T. S. Eliot, e data do começo do século 20. A tese é que um "talento individual" eternamente presta tributo a um clube fechado, A Tradição, do que enquanto sua crítica e superação. Um lugar onde não se entra sem antes apresentar as credenciais canônicas. Seria muito mais interessante tomarmos a visão de Borges, a de que todo escritor cria seus precursores e antecessores.

Mas existiram e existem poetas na literatura brasileira que não estavam preocupados em escrever para os mestres, para a história, e que nem por isso morreram por não travar um "diálogo cerrado com a tradição". Mesmo aceitando em tese esse diálogo, mas não como algo "cerrado", o que dizer da estranha influência de um Whitman sobre Luis Aranha, ou de um Apollinaire e Blaise Cendrars sobre um Raul Bopp? Ou da filosofia e poesia oriental sobre um "concreto" como Pedro Xisto? Não nos interessam esses outros relatos? Outro exemplo: apesar de um poeta como Roberto Piva ser em parte tributário de um Oswald e Mário, freqüentemente se esquece que sua "tradição" é mais além, anárquica e plural o bastante para incluir poéticas extra-literárias brasileiras, os beats, Blake, surrealistas, Rimbaud, Sade, Michaux, Pasolini, anarquistas, situacionistas, autores e tradições que nem de longe passaram pelo paideuma dos Campos ou de Cabral e seguidores, muito menos da cartilha modernista e conservadora da academídia. O mesmo pode-se de outros poetas contemporâneos.

Ao contrário de aceitar o "consenso", ou de ler a literatura hoje a partir dessa única visada edipiana-freudiana, existem autores buscando o diálogo criativo com outras tradições e culturas, o que se faz cada vez mais necessário hoje. Não é negar a tradição da NPB (Nova Poesia Brasileira): é simplesmente dizer que ela certamente mais de uma, e que talvez seja preciso descobrir outradições, bem como os lugares-incomuns. Como define um notório inovador, John Cage, em entrevista concedida para meu livro Vozes & Visões (Iluminuras, 1996):

"Não acho que o papel da vanguarda tenha terminado: ela sempre existirá de um modo ou de outro, ainda que o uso da palavra ' vanguarda' como a entendíamos não seja mais aplicável, hoje. [...] Porque ela traz a idéia de que existe uma corrente principal, uma mainstream. Só que essa mainstream não existe mais. Prefiro adotar a imagem de um delta de rio: hoje o rio se dividiu, não sabemos mais qual é a corrente principal. O que vejo é uma multiplicidade de direções sendo tomadas" (104).

Ou como define um outro músico e poeta, este brasileiro, Vitor Ramil: "Não estou à margem de uma história. Estou no centro de outra".

E o que aconteceria com esta história se, deslocando o foco, elegêssemos como poetas "centrais" Jorge de Lima, Murilo Mendes, Carlos Pena Filho, Dante Milano, Raul Bopp, Juó Bananére, Pedro Xisto, Mario Faustino, Ferreira Gullar, Paulo Leminski, Sebastião Nunes, Mário Quintana, sempre excluídos do cânon maximum? Que tipo de poesia brasileira se teria? Não existe uma corrente principal que desaguou em dois córregos e parou por aí, como o livro nos leva a pensar[4].  

"Um sentido da história e um sentido da teoria: estes são os pólos gêmeos da crítica ausentes da maior parte do discurso poético dos nossos dias", escreve Perloff no ensaio "Do que Não Falamos Quando Falamos de Poesia", em Poetry on and off the Page [5]. Podemos caracterizar os verbetes do livro de Manuel da Costa Pinto também como "group reviews", resenhas de grupo, "sendo uma das tarefas principais a descoberta de um elo comum do tipo 'only connect´". (176).

Tomo o livro de Manuel da Costa Pinto apenas como sintomático de um discurso crítico ainda dominante, em seu método normatizador de classificação autoral, do discurso de filiação patriarcal, enquanto replica uma narrativa-mestra sobre o percurso oficial da poesia brasileira hoje. Afinal, "Que importa quem é o mestre?". No Brasil, importa, e muito, principalmente nas discussões literárias.

O grande problema da academídia e de outras instâncias de poder literário tem sido negligenciar autores e poéticas mais inconformistas. E inconformistas, aqui, não só como visão crítica da linguagem e de mundo, mas no sentido de uma recusa em aceitar candidamente regras pré-definidas do jogo poético. Pós-tudo, há muito ainda em dizer, de muitas formas. Muitos poetas hoje não comungam com essa visão, à Harold Bloom, "do medo de todo poeta de que não haja mais nada para ser feito", como escreve o crítico americano. Será que os poetas só estão interessados em escrever para outros poetas? Muitos autores brasileiros importantes hoje têm uma relação nada angustiada e passiva com a tradição, sempre procurando diálogos prazerosos com outras experiências, tradições, uma coisa cada vez mais necessária no mundo hoje.

Outro problema das instâncias de poder literário no Brasil é  voltar ao mesmo elenco de autores e poéticas canonizadas, como se para tentar justificar uma suposta pobreza da poesia brasileira atual. É uma ótica que se casa perfeitamente para um projeto de "museu de cera", estilo Madame Tussauds, mas pouco útil quando se tem uma visão de poesia como coisa viva, para os vivos. Aliás, seria até interessante ver um museu de cera deste tipo, um espaço onde novos poetas poderiam "cerrar diálogo com a tradição" em ambiente agradável e sem ventilação (com studios onde os pupilos poderiam aprender a imitar à perfeição as obras-primas dos mestres, sem serem atrapalhados pelo mundo exterior) e que traz na entrada os seguintes dizeres: "Morra: você não sabe o que está perdendo".

Se poesia é a arte da linguagem, espaço verbal livre, ela significa também liberdade de escolher seus precursores. Se o passado não servir para reacender o espírito de inconformismo, que seja também uma eterna curiosidade, sem o qual a poesia não vive, que graça em permanecer vivo? A poesia precisa estar sempre experimentando novas formas e modos de dizer, de tocar no nervo da vida. Temos muito o que aprender ainda com o velho dito de Bashô: "Evite as trilhas batidas. Você verá coisas nunca vistas".

 

Rodrigo Garcia Lopes é escritor, tradutor e  autor de Solarium (Iluminuras), visibilia (Travessa dos Editores), Polivox (Azougue), Nômada (Lamparina), entre outros. Desde 2002 edita, com Marcos Losnak e Ademir Assunção, a revista Coyote.

Leia também poemas de Rodrigo Garcia Lopes.

 

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[1] "Momento Crítico - Meu Meio Século", Sibila -Revista de Poesia e Cultura, número 7, ano 4, dezembro de 2004.

[2] Poetry on and off the page: essays for emergent occasions. Northwestern University Press, 1998, página 143.

[3] Bandeira, Cabral, Drummond...

[4] O mesmo discurso redutor se manifesta na introdução de uma antologia de poesia brasileira recente, publicada nos Estados Unidos sob o título Nothing the Sun Could Explain: 20 Contemporary Brazilian Poets (Sun & Moon Press, 1996) editado por Regis Bonvicino, Michael Palmer e Nelson Ascher: ao mesmo tempo em que o Prefácio fala de "diversidade e extensão da poesia brasileira contemporânea" a ênfase principal da antologia é definida como, "na falta de uma palavra melhor, Pós-Concreta". Como é possível pretender mostrar diversidade se limitando aos parâmetros únicos e exclusivos do discurso concretista? E mais à frente, na Introdução, uma pérola, que sintetiza muito da discussão aqui: "Re-ler poetas que não se juntaram à mainstream é tão melancólico quanto contemplar um guarda-roupas fora-de-moda".

[5] Livro de 1998, publicado também no número 12 da revista Inimigo Rumor (2002)

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