ELOGIO DA PUNHETA
(Para Glauco Mattoso e Omar Khouri, mestres em sarro)
Sabião
Bestunes
(Tractatus Logico-Philosophicus
sobre o exercício da imaginação criadora & sua influência
positiva ((ou negativa)) sobre a reprodução sexuada* da
espécie Homo sapiens)
* A reprodução assexuada da espécie é observada toda vez
que, por acaso, descuido ou uso inadequado do calendário
gregoriano, um casal de inclames (indivíduos de classe média),
após a cópula semanal, produz um embrião daquilo que virá
a ser, com o revolver dos meses, dos talões de cheques,
dos cartões de crédito e das rodas dos carrinhos de compras
nos superhipermegalomercados, um novo - oh, céus! que terrível
& desagradabilíssimo evento! -, um novo criclame (criança
de classe média). Não trataremos aqui desses vermes, exceto
en passant.
SUMÁRIO GENERAL
0 - Introdução general
1 - A punheta-em-si: descobrimento, descoberta ou invenção?
1.1 - A punheta como descobrimento
1.1.1 - O caso do botão
1.1.2 - O caso da barata na sopa
1.1.3 - O caso do cadáver ainda quente
1.2 - A punheta como descoberta
1.2.1 - Tirar os restos de roupa de um cadáver ainda quente
1.2.2 - Tirar a carapaça de um cágado
1.2.3 - Tirar a casca de uma ferida semicicatrizada
1.3 - A punheta como invenção
1.3.1 - Encontrando um osso o cachorro
1.3.2 - Fumando um automóvel o macaco
1.3.3 - Rebolando a bunda a formiga
2 - Características gramaticais da punheta
2.1 - Do gênero
2.2 - Do número
2.3 - Do grau
3 - Entrevista à Revista das Gentes Peladas, por Sebunes
Nastião
4 - Das posições ecumênicas
4.1 - Deitado em colchão
4.2 - Deitado em colchão com reguinho no sítio adequado
4.3 - Deitado com buraco no travesseiro
4.4 - Sentado no vaso
4.5 - Com pulseira dourada enrolada no pau
4.6 - Variantes, derivações e desvarios
5 - Conclusões preliminares: da imaginação criadora
6 - Conclusões finais: da imaginação redundante
7 - Epílogo: da superioridade da punheta sobre as demais
artes liberais
0 - INTRODUÇÃO GENERAL
A maior criação da humanidade, em todos os tempos, foi a
punheta.
Esta afirmação é, naturalmente, tão profunda e polêmica
quanto a de Camus, ao abrir Le Mythe de Sisyphe com
a frase "Só existe um problema filosófico realmente sério:
o suicídio". Ou a de John Kennedy quando, tendo a cabeça
despedaçada por um balaço, e quando uma golfada de sangue
lhe saltou pela boca aberta, e quando Jackie lhe perguntou
se estava se sentindo bem, arregalou os olhos e respondeu,
com clareza, nobreza e concisão: "No". Ou a de Ivan Karamazov
(Dostoievski, Os Irmãos Karamazov), declarando que
"Se Deus não existe, tudo é permitido". Ou a de John Lennon
quando, tendo os pulmões atravessados por um balaço, e quando
uma golfada de sangue lhe saltou pela boca aberta, e quando
Yoko lhe perguntou se estava se sentindo bem, sorriu debilmente
e sussurrou: "Maybe".
Como em todos os grandes momentos do pensamento humano,
logo após a eclosão de qualquer idéia inesperada, grandiosa
ou extraordinária, ocorre a reação dos pobres de espírito.
E ocorre até a reação dos mais ou menos bem dotados, mas
incapazes de atingirem as culminâncias absolutas do pensamento.
Foi o que aconteceu com Darwin (que relutou muito antes
de divulgar suas notas de viagem de dois anos a bordo do
Beagle, com os inevitáveis desdobramentos, por temer a empalação**)
e Freud (que viu amigos, epígonos e colaboradores se tornarem
inimigos, rivais e detratores*** da noite para o dia), para
ficarmos apenas nos campos da biologia e da psicologia,
que são também os que enformam e sustentam nosso modesto,
embora fundamentalíssimo, ensaio sobre a punheta.
Durante longos anos nos preparamos para divulgar este trabalho,
impedidos no entanto por toda a sorte de circunstâncias,
desde a produção de poesia - que felizmente abandonamos
antes de ficarmos loucos -, até a criação de outras formas
de arte, como ficção, paródia, ensaio, pastiche, e até ensaio-paródia-pastiche
e pastiche-ficção-paródia. Chegou porém o momento em que
é inadiável divulgar a idéia de que, por mais que a humanidade
esperneie ou esprema os miolos, jamais produzirá algo tão
grandioso, tão sublime e tão relevante quanto a punheta.
A humilde, simplória e até mesmo desprezada punheta. Que
alguns débeis-a-menos, ou decibéis-a-mais, costumam chamar,
pejorativamente, de masturbação, como se esta última palavra
fosse, por uma conjunção de acasos fonéticos, mais nobre,
elegante e sonorosa do que a nobre, elegante e sonorosa
"punheta".
Mas um ensaio se desenvolve com lógica rigorosa, argumentos
sólidos, e não com palavreado oco. E o primeiro problema
a resolver está diante de nós, boquiaberto e boquirroto:
a punheta foi um descobrimento, uma descoberta ou uma invenção?
** Empalar é espetar qualquer incerto indivíduo pelo cu
na ponta de uma estaca afiada, feita de pau bem duro, geralmente
ensebada, para que tal indivíduo escorregue com macieza
e presteza. Muito usada como castigo em tempos pretéritos,
a empalação tornou-se um dos arquétipos fundantes dos tempos
modernos, desde Lutero, sofrendo fulgurante insight quando
cagava na torre solitária de um castelo idem, o que propiciou,
em seguida ao duplo fluxo (um a descer e outro a subir),
a fortalecença da burguesia e o desenvolvimento simultâneo
do protestantismo e do capitalismo (cf. Norman Brown, Life
Against Death). Nos dias de hoje, quem não adquire esperteza,
agressividade e maucaratismo suficientes para trepar nas
grimpas do poder sem escorregar é, inevitavelmente, empalado.
*** "Falou e escreveu tanta besteira que tinha mesmo é que
morrer de câncer na boca", murmuravam nas entrelinhas Jung,
Klein, Adler, Rank, Reich, Lacan, Brown, Fromm e Freud (Anna).
1 - A PUNHETA-EM-SI: DESCOBRIMENTO, DESCOBERTA OU INVENÇÃO?
Todos os gramáticos estabelecem que o conceito descobrimento
encobre, na verdade, duas hipóteses, ou duas idéias-metade.
A primeira metade é a que se refere ao ato voluntário ou
involuntário de encontrar alguma coisa em algum lugar: um
botão na rua, uma barata na sopa, ou mesmo o cadáver ainda
quente de uma mulher belíssima, suavemente contorcida e
totalmente semidespida (naquela semidespidez total que fez
a glória do cinema francês ((e criou multidões de cinéfilos-punheteiros
ou punheteiros-cinéfilos, tanto faz)) e a tragédia do cinema
brasileiro ((que criou a trepada me-come-senão-te-enrabo,
a transa mas-essa-calça-sai-ou-não-sai? e ainda a semipornô
vê-se-esse-pau-levanta-que-o-rolo-tá-acabando!))) num lote
vago. A segunda metade é a que faz do descobrimento o ato
de tirar a cobertura de alguma coisa. Chama-se então descoberta.
Por exemplo, tirar os restos de roupa de um cadáver ainda
quente, tirar a carapaça de um cágado ou tirar a casca de
uma ferida semicicatrizada. A terceira metade, invenção,
que se mete onde não cabe nem foi chamada, é a que transforma
o ato de descobrir em ato de inventar, o único de tais atos
que é humano, demasiado humano (cf. Nietzsche, O Deserdado
da Fortuna). Pois se um cachorro encontra um osso, não
inventa a sopa de tutano; se um macaco fuma automóvel ou
dirige cigarro, não constrói cigarros ou enrola automóveis;
se uma formiga dança rebolando a bunda, não paga para rebolar
a bunda numa escola de samba carioca de reboladores de bunda.
Veremos, em seguida, exemplos clássicos de todos os referidos
acasos.
1.1 - A PUNHETA COMO DESCOBRIMENTO
1.1.1 - O CASO DO BOTÃO****
Vai-se andando de mãos nos bolsos, assobiando o mais recente
sucesso do mais recente canastrão da moda, olha-se para
o chão, e lá está ele, nos olhando por sua vez: o botão,
com seus vários olhinhos buracosos. Temos, nesse momento,
duas alternativas: apanhar o botão e enfiá-lo no bolso,
ou seguir em frente, fazendo de conta que nada vimos.
Se apanhamos o botão, é seguramente porque nos falta algum
deles em alguma de nossas roupas, ou seja: somos personagens
de tempos antigos, quando os botões eram raros e caros.
Soldados romanos, digamos, precisando de um botão para abotoar
o quejando; ou filósofos de mosteiros medievais, necessitados
de um botão pra esconder o vivíssimo de cujus, que
teima em miramirar o que não deve ser miramirado: a bunda
do gordo irmão-cozinheiro, por exemplo. E, quase com virtual
certeza, falta um botão igual ou parecido com o encontrado.
Trata-se, naturalmente, de espantoso acaso, do tipo improvável
mas não impossível. Existe ainda a vaga impossibilidade
de que sejamos um moderno colecionador de botões ou até
um apanhador compulsivo. Ou, finalmente, que tenhamos confundido
o botão com uma moeda. Neste acaso, no entanto, é preciso
considerar outras hipóteses: a de que sejamos um mendigo
esfomeado enganado pelo rebrilho do botão ou um míope ofuscado
pelo estribrilho de uma quimera. De qualquer forma, e como
nada disso é relevante para o nosso ensaio, vamos deixar
em suspenso esta pesquisa botônica e passar ao segundo exemplo
da primeira hipótese.
**** Estamos falando, naturalmente, do tempo em que os botões
eram reais e de ouro maciço. Ou seja: do tempo em que só
reis tinham botões. Mas pode-se admitir, naturalmente, que
também estejamos falando dos dias correntes, em que todos
têm botões, simbólicos, alegóricos, eróticos ou sintéticos.
1.1.2 - O CASO DA BARATA NA SOPA
Pequeno funcionário de classe média (ou peqfun inclame,
como referido doravante) numa empresa funerária estabelecida
nas vizinhanças do Hospital General Nacional, que é de onde
os cadáveres mais depressamente são rateados entre os papa-defuntos,
safamo-nos exatamente ao meio-dia para o almoço, dispostos
a gozar pacificamente esse abençoado oásis de lazer, entre
um morto muxibento e um falecido fedorento. Safamo-nos e
sentamo-nos. Numa cadeira, é claro. De um selfisérvice,
é lógico. Mas, de repente, lembramo-nos de duas coisas:
a) selfisérvice não tem garção; b) nem sopa. De modo que
mudamos nosso emprego para o de generente de banco multi,
e nosso almoço para um restaurante chinês, onde pedimos
sopa de barbatana de tubarão, que custa, naturalmente, as
tubas. Ou alguém imagina que os tubarões se deixam bigodear
por um centavo de prosa ou uma migalha de amor? Prosa de
lampreia, é claro; amor de baleia, é lógico, daquelas baleias
bem rabudas? Nécaras. Os coletores de barbatanas de tubarão
têm de ser muito ladinos e usar de muito tato, devendo inclusive
ter curso superior de antropologia, ou não usariam o termo
coletar. Pois bem. Sentados, de guardanapo ao colo, olhamos
para os lados verificando se alguém nos verifica: não, ninguém
nos verifica. Chega a sopa de bar-de-tub, uma papa ridícula,
que tanto pode ser caldo-de-pé-de-frango engrossado com
polvilho azedo da vovó como restos da rabada-com-agrião-sem-agrião
de ontem. Mas chega, seja o que for. E como somos profundos
conhecedores de sopa de barbatana de tubarão, provamos.
E gostamos. No que gostamos, ouvimos, com todos os ouvidos,
o interior, o exterior e o místico, o tímido rumorejo do
suave impacto de dois dentes contra uma terceira coisa.
Alguma coisa capaz de produzir ruídos assim como crééck,
ou crúúnxi, ou próócti. Alguma coisa, enfim, menos dura
que um osso embora mais dura que uma pasta, ou seja: da
duricidade da cartilagem, de que são feitas, como sabemos,
as barbatanas de tubarão. Com a ponta da língua, tateamos
a subtil iguaria. Sim, senhores, e sorrimos para os lados,
embora ninguém nos verifique, como já verificamos: uma verdadeira
sopa de barbatana de tubarão deve conter, com certeza certíssima,
pedaços, ainda que minúsculos, de barbatana de tubarão.
E assim, famintos e orgulhosos de nossa escolha, devoramos
com elegância e compunção a sopa de barbatana de tubarão.
Até que nada resta no fundo do prato fundo de sopa. Mentimos:
resta alguma coisa. Sim, resta. E nos olha, com melancolia
e desgosto.
1.1.3 - O CASO DO CADÁVER AINDA QUENTE
Houve um dia em que, tendo despertado mais cedo do que a
hora costumeira e diuturna, você decidiu ir a pé para o
trabalho, na tal funerária referida acima, e antes que fosse
promovido a generente de multi. Banhado, barbeado, comido
e bebido, lá vai você. Se não houvesse lote vago ao lado
de seu prédio de apês, nada aconteceria. Mas existe um,
apenas um. Exatamente o lote onde os cachorros trepam e
viram latas de lixo, os gatos trepam e viram latas de lixo,
os mendigos trepam e viram latas de lixo. Há muitas latas
de lixo viradas, porém nenhum cachorro, gato ou mendigo.
No entanto, há qualquer coisa de estranho no lote. Uma suave
emanação do Ser Supremo, depositada no dorso aculeiforme
de uma gramínea? Uma gotícula do Eternal Perfume jazendo,
milagrosamente, na haste finíssima de uma arácea? Uma carteira
de couro recheada de dólares? Um quilo de cocaína pura?
Não. Apenas um cadáver.
Mas como deduz você que se trata de um cadáver? Não decerto
por intuição, já que você não é detetive, coisa que nem
existe por aqui, onde o que se chama de detetive são cidadãos-fodidos-e-mal-pagos,
ocupados em perseguir outros cidadãos mais fodidos e ainda
piormente-mal-pagos.
Você sabe, soberbo achado!, porque viu um belíssimo pé luzindo
ao sol, depois uma belíssima perna luzindo idem, depois
uma belíssima etc., até chegar a um rosto igualmente belíssimo,
a um corpo idem - e muitos e muitos idens. Você coça a cabeça,
vira para a direita e para a esquerda, torce o pescoço para
trás, então se descontrai, e olha. Olhai, crianças! Jamais
vereis um país como este! Auriverde pendão da minha terra,
que a brisa do Brasil beija e balança. Alma minha gentil
que te partiste. Sem dúvida você é um poeta. E um tarado,
porque seus olhos buscam, imediatamente, abarcar o Todo,
o Absoluto, o Inefável, o Uno. Mas, além de poeta e tarado,
você é também vidente. E logo enxerga, quase simultaneamente,
as pernas, as coxas, a xisxota, os peitos, as costas, as
bundas e, lá dentro delas, bem no miolinho, os cus. Enxerga
virtualmente, é claro, pois só um cubista que nem Picasso
ou Braque conseguiria enxergar, ao mesmo tempo, a buceta
e a nuca, os peitos e as bundas. E sabe como eles conseguiam?
Muito simples. Botavam a modelo em pé e de costas e, desprezando
o que viam, imaginavam que ela estava de frente e plantando
bananeira. Ou mais prosaicamente, quando cansados de imaginar,
botavam ela de costas mas de frente para um espelho, de
modo que ela estava de frente para eles e também de costas.
Então pegavam os pincéis e as espátulas, pincelavam e espatulavam,
olhando ora o espelho ora a modelo, e no final tinham, totalizado,
o alto e o baixo, o superior e o inferior, a frente e as
costas, o vice e o versa. Tomavam uma? Sei lá. Cheiravam
um? Sei lá. Enrolavam um? Sei lá. Sei-o pouquíssimo, ou
até menos.
Pois bem. Você, peqfun inclame*****, está boquiaberto
diante do cadáver totalmente semidespido. Como degustador
de teledejavisor, tenta se lembrar do que é que faria seu
ator preferido se encontrasse sua atriz preferida morta
e estendida, perdida e achada, num lote vago. Trepar? Nem
pensar! Mas eis que ela está, que nem Inês, rainha depois
de morta******, fresquinha, quentinha, cheirosinha, toda
gostosinha, de modo que você, que nem ao menos sabia que
era tarado-necrófilo (ou necrófago-tarado), vai lá e.
***** Que significa, conforme combinado léguas atrás, "pequeno
funcionário inclame".
****** Essa tal Inês era amante do príncipe dão Pedro, de
Portugal, vivendo ambos no século XIV. O pai dele, que era
muito religioso, mandou matar a tal de Inês, pois lhe parecia
abominável, como católico e rei, ter por herdeiro um pecador
amancebado. Morta Inês, e bem morta, morre também o rei,
subindo ao trono o tal dão Pedro que, imediatamente, prende
os dois matadores da tal de Inês e manda que lhes arranquem
os corações. Enquanto vivos, é claro. Ao primeiro deles,
um tal de Pêro Coelho, mandou arrancar o coração pela frente;
ao segundo, um tal de Álvaro Gonçalves, mandou arrancar
o coração pelas costas. Depois disso, o povo, puxa-saco
como sempre, passou a chamá-lo de Pedro, o Justiceiro.
Todos ficaram famosos e históricos, uma porque foi amada,
outro porque foi justiceiro, e ainda os outros dois, menos
felizes decerto, porque tiveram arrancados os corações enquanto
vivos. Nenhum sobreviveu à fama, tirada a qual não resisto,
embora tirada, e ao ponto, milhares de vezes por escritores
de somenos e até de somais.
1.2 - A PUNHETA COM DESCOBERTA
1.2.1 - TIRAR OS RESTOS DE ROUPA DE UM CADÁVER AINDA
QUENTE
Pois bem. Você, peqfun inclame, está boquiaberto
diante do cadáver totalmente semidespido. Como deleitador
de teledejavisor, tenta se lembrar do que é que faria seu
ator preferido se encontrasse sua atriz preferida morta
e estendida, perdida e achada, num lote vago. Trepar? Nem
pensar! Mas eis que ela está, que nem Inês, rainha depois
de morta, fresquinha, quentinha, cheirosinha, toda gostosinha,
de modo que você, que nem ao menos sabia que era tarado,
vai lá e começa a tirar os restos de roupa dela. Muita roupa?
Nem tanto. Ela está sem sapatos, sem meias, sem calcinha,
sem sutiã, sem vestido ou calça comprida, sem blusa e sem
malícia. Mas se ela não tem nada, o que é que ela tem? Tem
um parangolé legítimo amarrado no tornozelo direito, que
sobe como cobra indiana pelas pernas e vai se enroscar bem
lá no, na, ni. Um parangolé daqueles inventados pelo artista-arteiro
Hélio Oiticica, bem antes de tentar segurar um guarda-parangolés
cheio de parangolés com a testa e não conseguir.*******
******* Não tendo conseguido, desabou-se-lhe o guarda-parangolés
cheio de parangolés em cima. Três dias e três noites jazeu
ali deitado debaixo do guarda-parangolés, imaginando novos
modelos, que não podia desenhar porque estava - lembra-se?
- preso debaixo do guarda-parangolés. Se tivesse sobrevivido,
quando saísse de casa verificaria, consternado, que haviam
decorrido cinqüenta anos terrestres (o tempo, para nós e
até para o finado Einstein, é volubilíssimo, como já vimos
ou veremos alhures neste mesmo ensaio), e que os parangolés,
sua bela invenção-artística-de-vanguarda-brasiliana, eram
agora pura e simplesmente roupas prêt-à-porter de buclames********
e ninclames*********. E morreria de infarto fulminante na
hora mesmíssima em que.
******** Buclame: mulher adulta de classe média. De Buceta
mais Inclame. Admite a variação Boclame, de Boca mais Inclame,
talvez mais poética por mais ambígua.
********* Ninclame: jovenzinha feminina inclame. De Ninfeta
mais Inclame.
1.2.2 - TIRAR A CARAPAÇA DE UM CÁGADO
Na Praia dos Inclames, bem ali no centro de Inclamópolis,
que são todas as cidades do mundo, você está passeando profusamente,
por uma merencória manhã de veranico, com o sol a chacoalhar-lhe
os ex-cabelos e o vento a fazer-lhe cócegas nas mucosas
murchas, quando tropeça numa pedra. Tropeça mas não cai.
Se não cai, não precisa levantar. Irritado, você resolve
dar um chutão na pedra, disposto a quebrar os dedos mas
a se vingar da pétrea criatura. Nesse ínterim, como escreveria
um débil-a-menos, você se lembra daquele pedregoso poema
de Pessoa/Caeiro:
Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei,
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.
(...)
Sei que a pedra é real, e que a planta existe.
Sei isso porque elas existem.
Sei isso porque os meus sentidos me mostram.
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.
Já que, como ficou demonstrado**********, a pedra existe,
você dá um chutão nela e a pedra sai saltitando que nem
coco vazio pela areia. Coco cinzento. Coco com retangulinhos
muito irregulares. Coco que não é coco. Será talvez, vendo
melhormente, uma tartaruga das pequetitas, uma filhota meio
cambota por força de seu bico de ex-atleta. Mas como o título
pede um cágado, você vê que ali em frente jaz um cágado,
que são também quelônios de carapaça dura e cabecinha oca.
E fica com pena do pobrezinho. Desse modo, condoído, você
o recolhe todo trêmulo (quem está trêmulo é ele, o quelônio),
as patinhas murchas trêmulas, afaga-lhe a cabecinha careca
e enrugada como peru*********** de velho, alisa-lhe as placas
do casco duro e recoberto de anêmonas, algas, restos de
conchas, farelo de ostras, dejetos marinhos, enfim: cacas
do mar, titicas do oceano. E sujíssimas, como toda obra
do gênero. De modo que você, com um pedaço de pedra, começa
a raspalimpar as placas. Raspalimpa que limparraspa, uma
descola. Tomado de frenesi raspalimpante, você raspa-que-limpa-mais.
Descola outra. E mais outra. Vai-se a primeira placa descolada,
vai-se a segunda, vão-se as demais. Enfim, resta-lhe nas
mãos, sem nenhuma placa, um quilo-e-meio de carne palpitante,
branquinha e cheirosa, com perninhas trêmulas e cabecinha
idem. Pobre cágado! Para salvá-lo do triste destino de passar
a noite pelado, tiritando de frio na praia, sujeito a urubus
impiedosos e caranguejos vorazes, você o leva ao restaurante
mais próximo e encomenda ao maître:
- Uma sopa, por favor.
********** Física e metafisicamente, como queria o próprio
Pessoa/Caeiro.
*********** O mesmo que caralho e outras sinonímias apropriadas
ao penduricalho.
1.2.3 - TIRAR A CASCA DE UMA FERIDA SEMICICATRIZADA
Bem, chegamos onde temíamos: à ferida. Alcoólatra desde
os 10 anos (sua idade atual gira em torno dos 40), você
tem uma ferida enorme na perna direita. Uma ferida que mede
um palmo de largura por dois palmos de altura e dois dedos
de profundidade, de modo que ocupa a perna quase toda, do
joelho ao pé. À custa de pomadas antibióticas, confrei e
tanchagem, você consegue obter dela alguns favores, como
coçar menos, feder menos************ e, até, semicicatrizar-se
um pouco de vez em quando. No momento ela está com leve
crosta de uns 5 milímetros de matéria marrom-escura, o que
pode com algum esforço ser considerado de bom prognóstico,
por um médico alcoólatra. Mas, como sabem todos os possuidores
de feridas afins, ela coça pra cacete. É o preço da cicatrização,
quando os tecidos se contraem puxados pelos anticorpos cicatrizantes,
que vão costurando molécula por molécula com linhas neutrinas.
Você tem várias alternativas: tomar um sonífero e dormir
quarenta dias e quarenta noites. Ou: ir ao hospital e solicitar
uma dose de morfina. Ou: ir à esquina e comprar um pouco
de cocaína. Ou: fingir que a perna é de outro alcoólatra.
Ou: tomar um porre. Ou, finalmente, coçar a ferida, como
quem acaricia a cabecinha careca de um cágado ou os cabelos
da mulher amada. Qual dessas hipóteses escolher? Um porre,
é claro, pensa você. Mas hoje a lua está virada e você decide
por coçar-se. Solicita então que a mão direita lhe dê um
adjutório, no que ela concorda. Por sua vez, a mão direita
manda ofício aos dedos direitos requisitando seus serviços.
Embora a contragosto, pois todos os dedos detestam fossar
em feridas, nada podem fazer: ofício recebido e lido, obrigação
assumida. Pura e simples questão de hierarquia neurológica.
************ O fedor das feridas desse gênero pode ser comparado
ao aroma destilado por uma gata recém-parida, no momento
em que devora a placenta em que germinou os filhotes recém-nados.
Ou ao de uma jaca madura, fruto da jaqueira, a mais fedorenta
de todas as frutas, única contribuição do capeta para os
pomares do paraíso terreal.
1.3 - A PUNHETA COMO INVENÇÃO
1.3.1 -ENCONTRANDO UM OSSO O CACHORRO
Certo cãozito, de raça e coloração indefinidas, e cujo apelido
não convém ao acaso, encontrava-se deambulando por aqui
e por ali. De repente, salta-lhe diante dos olhos um osso
magnífico. Mal comparando, seria como um fã absolutamente
idiota dando de cara com um cantor idiota da moda absolutamente
idiota. Encontrado o osso, estaria quase resolvida nossa
equação se, de dentro dele, por já um tanto vetusto, não
surgisse um verme qualquer (exceto um inclame, é lógico),
reclamando-lhe a propriedade que, com alguma propriedade,
por usucapião ósseo, reclamava para si. Vão-se ao meretrício
deslindar a lide, seguido cada qual pelo seu causídico,
pois para isso existem os causídicos: para arengar, parolar,
postergar. Chegam, pois, ao meretrício, e deitam a usual
falação. Propriedade é um direito, blá, uns têm mais outros
menos, blablá, quem tem e quem não tem, blablablá, tempo
de posse, tempo de uso, tempo de viver, tempo de sonhar
& amar etc. O meretrício cochila. Os causídicos fazem a
conta dos 20% para decodificar quanto embolsarão pelos blablablás.
O verme cochila. O cãozito, que não cochila, inventa uma
saída, baseada na Bíblia Sagrada, com B e S maiúsculos,
com preferem os recorrentes crentes:
- E se, arenga ele ao meretrício, que já descochilava. -
E se repartíssemos o osso, proporcionalmente aos tamanhos
nossos?
Descochilaram também os causídicos. E decidiram lá entre
eles o que deveria ser decidido, decisão que não importa
a nós, senão a eles. Importa-nos apenas, a nós, aquilo que
foi uma verdadeira sugestão-intuitiva-plagiária, a do cãozito:
a de partir em algum ponto o ósseo alimento. No entanto,
e deve isto ficar bem claro, em tempo algum se soube que
uma punheta houvesse sido partida, quando muito interrompida.
De modo que fica também claríssimo o que a nós importava
esclarecer, conforme foi esclarecido.
1.3.2 - FUMANDO UM AUTOMÓVEL O MACACO
Você, peqfun inclame,************* tendo subido na
vida como generente de banco multi, e antes de ser enquadrado
numa lei qualquer por extorsão, estelionato, abuso de poder,
corrupção ativa & passiva, superfaturamento, fraude, agiotagem
e alguns outros itens, acaba de comprar um pequeno carro
esporte italiano, que recheia de funcionárias depois do
expediente e antes de ir para casa explicar-se à outra-metade-de-sua-cara.
Claro que recheia no bom sentido, levando-as a todas, exceto
a última, para a casa de cada qual, despedindo-se de qual
cada com três beijinhos, pra dar sorte. Pois bem. Safa-se
você e safam-se elas da agência alegremente, sorrindo-se
entre si e entredentes, rumo ao principal estacionamento
central. Em lá chegando, descobrem, e todos ao mesmo tempo,
que o pequeno carro esporte italiano não se encontra no
box que lhe pertence por direito e por pagamento, pois vá
você deixar de pagar a mensalidade pra ver se o box lhe
pertence por direito. - Aqui, ó, seu bocó! Vá queixar-se
ao bispo, que é o dono-proprietário, por herança episcopal,
do central estacionamento principal, dirá o interlocutor
ao qual, muito do idiotamente, você foi se queixar.
Pois bem, que fazer? Claro que as garotas caem fora, deixando-o
a ver navios, aviões, discos voadores e objetos que tais.
As alternativas são: 1) chamar a polícia e sentar pra esperar
até dar calo nas duas bandas; 2) perguntar ao diretor-chefe-general
do dito estacionamento se sabe onde queixar-se, ao que ele
responderá: - "Queixe-se ao bispo, oras!", como acima referido,
já que por direito episcopalício etc; 3) Inventar uma história
bem convincente pra companhia de seguros, tal como a que
se segue:
(Você, diante do diretor-chefe-general-da-companhia-general-de-seguros-nacional:)
- Estava eu dirigindo o carro rumo ao banco, onde sou generente
com poderes generais e terei, naturalmente, o máximo prazer
em servi-lo a juros módicos, quando no retrovisador da direita
me aparece um indivíduo dirigindo um cigarro e fumando um
carro. Esbugalho os bugalhos, esfrego-os, reabro-os, e constato
que lá está o indivíduo fumando o carro e dirigindo o cigarro.
Pelo que percebo, é um cidadão pelado e bastante peludo,
com uns beiços proeminentes e olhinhos pequetitos dentro
de umas órbitas enormérrimas. Seu crânio projeta-se para
trás, como se ventos o levassem. Cabelinho cortado rente,
orelhinhas também pequetitas. Vez em quando, leva o carro
aos beiços e traga-o profusamente. Ao mesmo tempo, mantém
as mãos (peludíssimas, de unhas compridas) grudadas ao volante
do cigarro que dirige. De forma que.
Neste ponto de seu veraz e convincente relato, o di-ch-ge-co-ge-se-nal
o interrompe:
- Embora não sendo eu semanticista, lingüista ou mesmo pedagogo,
me parece que o senhor, por efeito decerto de seus inumeráveis
quefazeres, cometeu um pequeno lapsus linguae, com
diziam antigamente nos anfiteatros romanos os loquazes.
A palavra carro tem cinco letras: 1 c, 1 a, 2 erres e 1
o. Já a palavra cigarro tem sete letras: 1 c, 1 i, 1 g,
1 a, 2 erres e 1 o. Entre elas, portanto, existe uma diferença
de duas letras, precisamente 1 i e 1 g. Se, ao objeto que
o senhor denomina cigarro forem extraídas duas letras, precisamente
1 i e 1 g, ele passará a se chamar carro. E se ao objeto
que o senhor alcunha carro forem intermédias duas letras,
1 i e 1 g, ele passará a se chamar cigarro. E, finalmente,
se o senhor se dispuser a usar tais palavras para os objetos
contrários aos quais se referiu, não lhe parece, afinal,
que seu relato será não só mais primoroso e convincente
como até mais coerente?
- Sim, senhor diral, será. Mas e o cidadão pelado e peludo.
Que faço com ele?
************* Pequeno funcionário de classe média, se você
não se lembra.
1.3.3 - REBOLANDO A BUNDA A FORMIGA
Mas eis senão quando, passando por uma casa de danças etílicas,
viu um formigo duas dúzias de tanajuras rebolando as bandas
ao som de uma bunda de rumba. Ficou quase instantaneamente
de pau duro o formigo. Parou solertíssimo. Trocou de pernas,
botou as mãos nas variadas cinturas. De pau duro. Chegou-se
para ele um cupim-de-chácara desses bem saradões, porém
de pau mole, e lhe disse:
- Vergonha, né, cavalheiro? Aí de mãos nas cinturas e pau
duro. Desaperta daí uns quantos dólares e pode entrar. Melhor
que punhetar, né?
O formigo, no entanto, extraiu ali mesmo o sem-vergonho
e bronhou-se, diante do cupim-de-chácara boquiaberto, o
qual, depois de fechar a boca, disse:
- Não acredito no que vejo. Um formigo jovem, saudável,
cheio de dólares, prefere uma bronha no meio da rua a encarar
uma tanajura rebelando a banda.
Ao que respondeu o formigo:
- Não se trata exatamente do que pensas, caríssimo amigo.
Por um lado, tenho verdadeiro pavor a tanajuras, com essas
bundas escandalosamente enormérrimas. Farofa, vá lá. Mas
transar? Nécaras. Por outro lado, estou aqui na função de
co-autor da trama em que foste, por acaso, enredado. Meu
papelacho, que talvez não tenhas vindo a saber, não sei
por qual motivo, pois não é razoável que a todos os co-autores
não se lhes dêem, e por escrito, conta de suas intervenções,
meu papelecho, pois, é exatamente este, o de demonstrar
que bronhar é melhor que transar. Acrescento, ademais, que
aceitei com a máxima satisfação o papelicho que me foi,
em boa hora, oferecido. Teria, talvez, vacilado, caso quem
dançasse, e como sugere o título deste esquete, fosse uma
formiga rebolando a bunda. Mesmo assim, e embora talvez
não me acredites, sempre prefiro uma boa bronha a uma boa
trepada, como já disseram alhures e não sei quando.
Boquiabriu-se ainda mais o cupim-de-chácara que, depois
de boquifechar-se, disse:
- Embora reconheça a inferioridade inata dos cupins diante
dos formigos, coisa que não me cabe questionar, sendo como
é determinação insondável do Altíssimo, boquiabro-me diante
de ti, pois não sei como podes preferir uma boa bronha a
uma boa trepada, ainda que eu mesmo reconheça, honestamente,
serem as bandas das tanajuras excessivas até para mim, que
também só as suporto afarofadas, bem tostadas e, é natural,
acompanhadas de pimenta malagueta vermelha ou dedo-de-moça
verde. Poderias, acaso, elucidar-me a propósito daquilo
que acima referiste?
Muito educadamente, retrucou o formigo:
- Estimado amigo. Sabes, com certeza, apesar de tuas deficiências
intelectivas, que reconheço serem determinações inescrutáveis
do Altíssimo, sabes, repito, que as transações ao vivo comportam
pelo menos dois indivíduos, quando não se tratam de surubas,
com número variabilísimo de atores. Fiquemos no pari passu,
para simplificar. Ora, tais indivíduos, por serem eles mesmos
coisas-em-si, autônomas e autopensantes, têm características
que os distinguem uns dos outros. A individualidade é indivisível,
como diria um físico. Sendo assim, e quando transacionam
pelo sistema convencional do rela-rela, eis que um goza
antes do outro, deixando esse outro a ver navios, ou barcos,
se preferes. Tem então esse outro de correr empós o primeiro,
para ver se o alcança, e a seu gozo, antes que finde. Ou
um goza e o outro não, deixando ao primeiro com a cabeça
nas nuvens e, ao segundo, com o gozo na mão. Ou nenhum deles
goza, ficando ambos num duplo mea culpa miserabilíssimo,
de que muito mais freqüentemente resultam dores que prazeres.
Enfim, existem muitas e muitas outras situações que poderíamos,
com risco de enfadar o leitor e a ti, enumerar. Basta, por
ora, que saibas quão insatisfatória é a transação real e
ao vivo. Quanto à punheta, não me é necessário circunscrevê-la
aqui. Basta que voltes às páginas anteriores, até à primeira,
e, em seguida, que prossigas em direção ao fim, se é que
não preferes fazer o caminho inverso, ou seja, do fim para
o princípio. Em nosso caso, e neste tratado, a ordem dos
fatores não altera o produto, como diria um matemático.
Creio, portanto, que vos deixo esclarecido, e bem esclarecido,
sobre as razões da minha, para ti, inusitada atitude. Vale.
Ao que o cupim-de-chácara, inteiramente boquiaberto, retorquiu:
- Vale.
2 - CARACTERÍSTICAS GRAMATICAIS DA PUNHETA
2.1 - DO GÊNERO
A punheta possui três gêneros: o masculino, o feminino e
o neutro. O masculino é quando um punhado de dedos, irritado
além do limite suportável, decide estrangular o pobre-coitado-careca-e-cabeludo.
Careca no topo e cabeludo na base, é lógico. O feminino
é quando um, dois ou três dedos massageiam, amorosamente,
a cabecinha-gordinha-da-coisa-em-si. O neutro é quando algum
objeto fálico e não-humano (banana, bico-de-garrafa, cenoura,
cabo-de-vassoura etc.) penetra no o-de-trás.
2.2 - DO NÚMERO
A punheta possui apenas um número, pois jamais foi sabido
que alguém pudesse bater, simultaneamente, duas, três ou
cem punhetas.
2.3 - DO GRAU
A punheta é um substantivo concreto-abstrato. Por
punheta como substantivo concreto entendemos o ato-em-si,
ou seja: a ação iniciada, mediada e finada.
Por punheta como substantivo abstrato entendemos não
o que se passa no objeto corpóreo que a pratica e
no ato de praticá-la, desde a ponta do objeto-em-si
até os cabelinhos eriçados da nuca, mas do
ponto de vista de um observador colocado a mais de dois
e a menos de dez metros de distância, e que, obviamente,
não seja míope. Nem esteja em movimento perpétuo,
à maneira dos átomos, das galáxias
e dos inclames. Em qualquer destes acasos, a punheta é
sempre superlativíssima.
3 - ENTREVISTA À REVISTA DAS GENTES PELADAS
Repórter: - Quantas punhetas o senhor já bateu, e
quantas mulheres usou?
Sebunes - Impossível responder, meu caro. Quantos
milhares, centenares de milhares? Nem eu sei. Entre os 14
e 16 anos, podemos calcular, se você dispuser de uma pequena
calculadora. Ponha aí: 365 dias vezes 3 anos, dividido por
2. Deu quanto? 547,5 punhetas? Deve ser isso. Nesses 3 anos
iniciais de minha filosofice punhética, impus-me uma regra
deliciosa. Punheta dia sim, dia não. Espantoso, não é? A
maioria dos meninos bate punheta quando acorda, durante
o café, na hora do almoço, de tarde... Mas que falta de
graça, não é mesmo? Tem vontade, punheta. Viu uma perna,
punheta. Uma mina olha de banda, punheta. Ora, e o espaço
da imaginação criadora? E o gosto da espera? E o gesto de
alisar o pau? Eu, não. No dia a seco, lembrava saudoso o
dia anterior e antegozava maravilhado o dia seguinte. Lembro
bem que nos três primeiros meses só tive uma mulher: Xxxx
Xxxxxx, uma artista de cinema magra e comprida, de maiô,
em foto a cores, numa página inteira da revista X Xxxxxxxx.
Dia sim, dia não, durante esses meses de iniciação, eu a
possuí (palavrinha meio besta, não é?) com uma paixão avassaladora.
Degustando, naturalmente. Deitado na cama, com o res dominus
bem duro apertado no colchão (uma de minhas posições preferidas:
eu chegava a cavar reguinhos no colchão para encaixar bem
o de cujus), ia abrindo devagarinho a revista, começando
pelos pezinhos dela, ia subindo pelas pernas... Me lembro
que ela estava meio de lado, um pé dobrado contra a perna,
o outro estendido para a frente, tocando levemente o chão
com a ponta dos dedos. Então eu abria a revista onde sabia
que estava a pontinha do pé estendido, ia abrindo a diagonal
em direção ao outro pé. Quando chegava lá, na macia planta
apoiada na perna, já tinha uma boa visão da parte inferior
de seu corpo. Então ia subindo...
Repórter (impaciente): - Sei, sei. Xxxx Xxxxxx foi
a primeira. Se não morreu deve estar bem velhinha, um caquinho,
uma bruxa, muxiba pura, a julgar pela aparência do senhor.
E depois, quem foi a segunda?
Sebunes: - A segunda foi a cantora Xxxxxx Xxxxx,
de maiô inteiriço, na praia de Xxxxxxxxxx, encostada num
coqueiro e também a cores, na mesma revista X Xxxxxxxx.
Tinha umas coxinhas redondas, um dos pés também dobrado
contra a perna. Com ela a fidelidade durou menos, mesmo
porque era menos gostosa que Xxxx Xxxxxx, mas também inesquecível,
como todas as primícias. Mas, veja: as revistas ficaram
bem guardadas durante anos, e volta-e-meia eu degustava
Xxxx Xxxxxx, saboreava Xxxxxx Xxxxx, num repente de saudosa
tesão.
Repórter (meio desanimado): - Que tal a gente passar
aos números?
Sebunes: - Pois sim: então foram 3 anos, dos 14 aos
16. Digamos que nos primeiros anos, incluindo Xxxx Xxxxxx
e Xxxxxx Xxxxx, tenham sido 1.642,5 mulheres, a uma média
de 3 mulheres por punheta. Pois, como você certamente sabe,
iniciam-se os exercícios preliminares com uma semideusa,
no meio da primeira sustentação passa-se para outra, no
anteclímax vem uma terceira, afinal no clímax podem sobrepor-se
5, 10 ou mesmo 20 semideusas semidespidas em torvelinho
e desalinho, embora às vezes a gente fique monógamo mesmo.
Depois dos 16 anos, deixei de lado a regra inicial do dia-sim,
dia-não. Adotei a punheta diária e até a dupla punheta diária.
Mas como às vezes falhava um dia, coloque aí uma por dia
dos 16 aos 28 anos, quando me casei pela primeira vez. São
365 dias versus 13 anos. Se consideramos que minha taxa
de fidelidade baixou para uma mulher por semana, divida
por 7 (a mola propulsora) e multiplique por 21 (as molas
de retenção, contenção, acalanto e repique). Resulta que
nesse período de 13 anos transei com 14.234,9 mulheres.
Então, da primeira punheta ao primeiro casamento, espalmei
cerca de 5.292,5 punhetas e transei com mais ou menos 15.877,4
mulheres. É razoável, portanto, que não me lembre senão
das mais gostosas, das que me tesaram mais.
Repórter (tentando esconder a irritação): - E o senhor
se lembra de muitas? A essa altura, sua memória não deve
ser lá essas coisas.
Sebunes: - Sem dúvida, rapaz, sem dúvida! Não sei
se sabe, mas quanto mais os dias se sucedem uns aos outros,
como formigas em fila, mais a memória se aviva. É paradoxal,
mas qualquer psicólogo de sarjeta pode assinar embaixo isto
aí em cima.
Repórter (disfarçando a felicidade extremada): -
Infelizmente, a fita acabou e me esqueci, tolamente, de
trazer outra. Continuaremos noutro dia, ok?
Sebunes: - Ok. Mas não demore. Tenho quaquilhões
de coisas pra racontar sobre tão envolvente, saltitante,
espumante e filosófico assunto.
4 - DAS POSIÇÕES ECUMÊNICAS
4.1 - DEITADO EM COLCHÃO
De posse de uma revista de mulher pelada, ou de homem pelado,
conforme o caso, e tendo-se antes verificado se os peladões
(donas) são adequados à performance desejada, ocupa-se posição
paralela ao comprimento do colchão, de barriga para baixo.
De barriga para baixo, o performático, é lógico, e não a
revista ou o colchão. Isto feito, coloca-se a revista sobre
o travesseiro, naturalmente aberta em página previamente
marcada. (Parêntese I: pode-se, a critério próprio, marcar
mais de uma página. Não há qualquer restrição quanto a isso.)
Em seguida, deve-se erguer o pescoço até altura adequada
a: 1) ver com inteireza toda a página escolhida; 2) não
sofrer câimbras ou dificuldades respiratórias. (Parêntese
II: sabe-se de vários casos, especialmente entre japoneses,
que amam erguer em demasia o pescoço, de casos, repetimos,
de obnubilação visual, pela impossibilidade de que o ar,
no momento máximo da performance, alcance prestamente o
cérebro, irrigando-o e propiciando imagens ricas em detalhes
e mesmo em foco.) Logo após, já começando a antegozar o
gozável, verifica-se se o penduricalho se transformou em
duricalho. Se ainda não, recomenda-se sacudi-lo à perfeição,
como se se tratasse de estrangular um ator de novela de
bigodinho escovado. Obtida a duricalhação, mete-se a mão
direita (ou esquerda, no caso dos canhotos) entre o calção
e o colchão. O restante do processo é auto-explicável por
contigüidade dos performáticos, desde que a mão consiga
penetrar no escasso espaço entre o colchão e o calção. Não
sendo possível, o que ocorre na maioria absoluta das vezes,
recomenda-se a variação 4.2.
4.2 - DEITADO EM COLCHÃO COM REGUINHO NO SÍTIO ADEQUADO
Repete-se ipsis litteris o procedimento anterior, com apenas
a seguinte variação: antes de deitar-se, cava-se com as
próprias mãos, socando-o, um reguinho de 30 cm de comprido
por 10 cm de largo no acima referido colchão, direcionado
para o travesseiro, e outro reguinho de comprimento que
baste para ir da margem direita (ou esquerda) do colchão
até o outro reguinho preliminarmente cavado. A largura deste
segundo reguinho deve ser adequada à suave intromissão da
mão direita (ou esquerda) entre a calça e o penduricalho
que deverá, a essa altura, ter-se tornado duricalho. Sucede
porém, freqüentemente, tratar-se de colchão excessivamente
duro, não permitindo reguinhos cavados à mão, por mais que
se soque, ou por mais que se enfatize o socamento. Cavá-los
à picareta, pá ou enxada está fora de questão. Deve-se nesse
caso, também bastante comum, usar a alternativa 4.3.
4.3 - DEITADO COM BURACO NO TRAVESSEIRO
Deixando os colchões de lado, é conveniente recorrer aos
travesseiros, quase sempre bastante macios, exceto os de
hospital, cuja dureza é considerada parte integrante da
pena reservada ao pecador que o utiliza, dureza esta calculada
em proporção direta à gravidade dos pecados cometidos. Mas
não nos convém, por agora, tratar de teologia, inclusive
por conflitar em certos aspectos, e pelo menos em tempos
pretéritos, com a ciência que ora nos ocupa. Fiquemos pois
nos travesseiros bastante macios. É indispensável, neste
caso, lembrar que os travesseiros são, em quase todos os
casos conhecidos, muito inferiores, tanto em comprimento
quanto em largura, aos colchões. Os reguinhos, portanto,
devem ser cavados em toda a extensão do indivíduo em questão,
seja ele de espuma ou de plumas. É preciso ainda considerar
que, quanto à altura, os travesseiros conflitam costumeiramente,
variando dos magrinhos aos gordinhos. Após rigorosos testes
com os vários tipos disponíveis no mercado, foi proposta
a padronização dos travesseiros destinados à punheta, quando
deverão ter altura máxima de 10 cm, ou o usuário corre o
risco de ficar na ridícula posição de, com a mão no duricalho,
ver-se de pernas e tronco para o ar, com sérias dificuldades
para a obtenção da gratificação a que faz jus após tão extenuante
e profícuo labor. Mas, ainda assim, pode o usufrutuário
considerar bastante ridícula a posição suspensa, ainda que
minimamente, sobre o travesseiro. Somos obrigados nessa
eventualidade, e agora de maneira mais radical, a propor
o abandono puro e simples de cama, colchões e travesseiros
como objetos adequado aos exercícios punhetísticos. Passemos,
portanto, a algo mais prosaico, embora não menos validoso,
como desenvolvido no item 4.4.
4.4 - SENTADO NO VASO
Trata-se de situação corriqueira, a que estamos sobejamente
habituados, por utilizá-lo uma ou mais vezes ao dia. Ao
vaso, queremos dizer, quando nele depositamos o troco dos
procedimentos físico-químicos conhecidos como refeições.
Age-se da seguinte maneira: 1) abre-se a porta do reservado
e, lá dentro, se se trata de local público, deve-se trancar
a portinhola do reservado menorzinho, incluso no maiorzinho,
depois de verificar se alguém não esqueceu, no chão, uma
polpuda carteira recheada de dólares. Nessa feliz eventualidade,
deve-se escapulir imediatamente e alugar a suíte presidencial
do hotel mais caro da cidade, onde é bastante mais confortável
a prática da punheta. Não havendo, contudo, carteira ou
dólares, deve-se sentar no vaso, como se se fosse proceder
à devolução do troco já referido. A repulsa, observada inúmeras
vezes pelos usufrutuários contumazes da punheta em relação
a essa prática, é devida ao fato de que o penduricalho,
gravemente ofendido pelos odores desprendidos anteriormente,
em pretéritas devoluções de troco, algumas delas mais demoradas
outras menos, algumas mais líquidas outras mais sólidas,
se recuse a olhar, altaneiro, para a frente e para o alto,
ou seja, a tornar-se duricalho. Para convencê-lo a assumir
o papel que lhe é inerente, e pelo qual se tornou eternamente
responsável, é conveniente praticar o fetiche relatado no
item 4.5.
4.5 - COM PULSEIRA DOURADA ENROLADA NO PAU
Cumpridas as preliminares do item 4.4, e tendo-a trazido
no bolso, desenrola-se suavemente uma bela pulseira de ouro
fino, cravejada ou não de pedrarias variegadas e, suavemente,
deve-se envolver com ela, como se fosse delicado pescoço
de agradável jovem, o emurchecido penduricalho. Com massagens
enérgicas deve-se tentar soerguê-lo, mesmo que a princípio
pareça recusar-se ao soerguimento que lhe é solicitado.
Recomenda-se, pois, bastante paciência diante do teimoso
bastardo, que às vezes, por pirraça, volubilidade ou simples
desfastio, persiste na recusa durante horas e horas, ou
mesmo dias e dias. No caso de manter-se ele irredutível
por mais de 24 horas ininterruptas, e de acordo com o vasto
repositório de experimentações realizadas em todo o mundo
por psicólogos e punheteiros notáveis, a melhor solução
é mesmo estrangulá-lo sem qualquer piedade, por mais que
berre e esperneie, com a mesma pulseira que deveria ter,
mas não teve, a oportunidade de assessorá-lo na execução
de sua invejada e nobilíssima função. Estrangulado, deve-se
deixá-lo entregue à própria sorte, ou seja, dependurado,
eternamente, de cabeça para baixo.
4.6 - VARIANTES, DERIVAÇÕES E DESVARIOS
A seguir, e a título de mera sugestão, enumeramos diversas
formas usuais de punheta masculina ou feminina (testadas
e aprovadas pelo Ministério da Saúde e pelas associações
médicas mais respeitadas do país e do mundo). Não há contra-indicações,
estando sua prática liberada para todas as idades, sem discriminação
de raça, cor, sexo, filiação partidária ou religiosa.
DENTRO DE SAPATO, EM GRAVATA DE SEDA, NO CINEMA, DURANTE
O BANHO, EM BOLSO DE BLASER, EM FRENTE AO CAIXA DE SUPERHIPERMERCADO,
OUVINDO MÚSICA ERUDITA, PLANTANDO BANANEIRA, DURANTE O COOPER,
DIRIGINDO NUMA AUTOESTRADA, MALHANDO, EM BANHEIRO DE AVIÃO
DURANTE TURBULÊNCIA, LENDO, NO MOMENTO DE FISGAR UM PEIXE,
EM CONCERTO DE ROCK, AO SER ASSALTADO, JOGANDO FUTEBOL,
EM FILA DE BANCO, INDO PARA O TRABALHO, FINGINDO TRABALHAR,
ALMOÇANDO OU JANTANDO, NO MOMENTO DO INFARTO, DURANTE IMPLANTAÇÃO
DE PONTE DE SAFENA, SENDO OPERADO DE CÂNCER, INTERNADO EM
UTI, TREPANDO, ESPERANDO VAGA NO INFERNO ETC&TAL.
Como se vê, são infindáveis as variantes à disposição do
punhetante. Descrevemos algumas, usando como exemplo o penduricalho
masculino, apenas para não encompridar excessivamente este
tratado. E não aceitaremos que nos venham questionar sobre
possível pleonasmo: embora não seja um penduricalho generoso,
nem por isso o órgão gozativo feminino deixa de ser um penduricalhozinho,
às vezes mínimo, outras vezes levemente avantajado, e até,
em casos raros, é verdade, capaz de causar inveja e despeito
aos mais robustos penduricalhos masculinos. Mas, regra general,
apoda-se penduricalho única e exclusivamente ao vivíssimo
de cujus masculino. Devemos anotar ainda, e antes
de passarmos às indispensáveis conclusões, que todas as
exemplificações acima são polissexuais, bastando mutatis
mutandis, como é de praxe nos tratados científicos mais
sérios, mais rigorosos e mais obedientes aos cânones acadêmicos,
nos quais nos permitimos, modestamente, inserir.
5 - CONCLUSÕES PRELIMINARES: DA IMAGINAÇÃO CRIADORA
De modo general, e deixando para colegas mais eruditos os
indispensáveis e revolucionários desenvolvimentos deste
ensaio, podemos concluir que a punheta foi, ao mesmo tempo,
descoberta, descobrimento e invenção, reunidos os três fenômenos
em uma única e extraordinária explosão de imaginação criadora.
Dizemos que foi "uma extraordinária explosão de imaginação
criadora" porque, incerto dia, estando em falta de indivíduo
fêmea de sua espécie, e mesmo de substitutos usualmente
considerados como satisfatórios, como galinhas, cabras,
vacas e macacas-de-bunda-vermelha, desconhecido Homo
sapiens passou a esfregar o que lhe coçava. Coça que
coça, sentiu prazer inefável nesse coçamento. Matutou. Espremeu
uma espinha que lhe crescia no nariz. Olhou em seu entorno:
viu árvores, nuvens, insetos voando bestamente para cá,
para lá, para acolá. Considerou se o prazer que sentia,
coçando o que se lhe coçava, seria idêntico ao que obteria
coçando árvores, nuvens ou insetos voadores. Concluiu que
não, não seria. Como era, e para sorte general de todos
nós, espírito científico apuradíssimo, coçou-se um pouco
mais, o que lhe aumentou o prazer e, ao mesmo tempo, o animus
coçandi. Deduziu daí a Primeira Lei da Punhetística
General, que formulou assim:
"O prazer de coçar o coçável é diretamente proporcional
à freneticidade do coçamento e inversamente proporcional
à distância do que se coça."
Magnífico! É espantoso que lei tão extraordinária, e de
alcance tão general, tenha sido formulada antes mesmo de
concluída a pesquisa! Só mesmo uma inteligência privilegiadíssima!
Aliás, como sabemos hoje em dia, Einstein e Planck, um tanto
invejosos do rigor e também da inabalabilidade da Primeira
Lei, tentaram por todas as formas refutá-la. Só desistiram
do esforço, apesar de se coçarem um ao outro freneticamente
e em todas as posições imagináveis, quando deixaram o ginásio,
ou o primeiro grau, ou coisa que o valha, lá pelos 14 anos,
passando a tratar de problemas mais simples de física elementar,
como sabem todos e, por isso, nos dispensamos de repisar.
Pois bem, continuando suas rigorosas pesquisas genitais,
por aceleração do coçar-se, o cientificíssimo Homo sapiens
logo deduziu a Segunda Lei General:
"O prazer do coçamento está indissoluvelmente ligado ao
próprio corpo de quem se compraz em coçar-se."
Foi essa Segunda Lei que Einstein e Planck conseguiram,
sabiamente, reformular, acrescentando-lhe um corolário general:
"O prazer de coçar outro corpo, que não o próprio, é um
prazer virtual e tanto maior quando mais próximos se encontrem
os corpos que se coçam."
Com isso, queriam dizer que coçar uma árvore próxima é mais
prazeroso do que, por exemplo, coçar uma nuvem. Ou que coçar
o colega ao lado é também mais prazeroso que coçar um inseto
voejante. Foi um acréscimo notável, sem dúvida, e importantíssimo,
à Segunda Lei.
Em seguida, nosso Homo sapiens acelerou ainda mais
o coçamento, uma vez que lhe crescia cada vez mais o penduricalho
(já então transformado em duricalho), ao mesmo tempo que
se lhe ampliava o animus coçandi. E tanto o acelerou,
ao coçamento, que chegou afinal ao clímax, ao êxtase e -
até poderíamos acrescentar, sem que nos acusem de exagero
- ao satori, ao nirvana, ao insight primevo. Bom.
Nesse ponto, saciado e relaxado, o cientista notável espremeu
uma segunda espinha no nariz, enquanto pensava. E tanto
pensou que a noite desceu, com suas características próprias,
entre elas o brilho distante das estrelas, o sono, a falta
do que fazer e o medo do escuro. Fitando longamente as estrelas,
o gênio criador da punhetística formulou a Terceira e última
Lei General, que é descrita assim:
"O clímax do coçamento, ao ser atingido, alcança densidade
sempre igual ou superior à de uma supernova no momento da
explosão, qualquer que seja sua dimensão espacial ou temporal,
ou seja, sua existência na tridimensionalidade."
Excepcional formulação! A partir dela, vários conceitos
se originaram, como o de "Punheta Supernoiva", "Explosão
Punhestética" e "Densidade Espermótica", entre tantos outros,
com inegáveis desdobramentos importantes para a teoria e
a prática da punheta.
E foi assim que, graças à genialidade de nosso extraordinário
e remoto antepassado, nos tornamos conhecedores das características
fundamentais que cercam uma boa punheta, isto é: dos fundamentos
basilares da punhetística general. Quanto ao fato de ser
a punheta invenção, descobrimento ou descoberta, concluiu-se,
ao longo dos séculos e de laboriosos trabalhos, que é "um
só ato general de imaginação criadora" e também "três-revelações-em-uma-só-persona".
Assim, existe hoje o consenso de que é descoberta **************
porque, logo nas preliminares, soergue-se o pelame que recobre
o bálano, o que configura claramente um desvelar-se de oculto
objeto, até então subposto a uma ou mais camadas superiores
ou envolventes. É também descobrimento porque, em algum
momento inefável da curiosidade infanto-juvenil, revela-se
o oculto entre panos e pêlos, propiciando novas e renovadas
pesquisas do inóspito território. E é, finalmente, invenção,
porque todos os Homo sapiens, em algum momento de
sua vida, inventam a punheta, sendo essa invenção mais comum
entre os 12 e os 14 anos, pouco mais ou menos, como demonstraram
tantos psicólogos em tantos experimentos, cuja enumeração
seria, ademais, tediosa e excessiva.
Cremos, assim, bem concluída esta conclusão sobre a imaginação
criadora, mãe de todas as virtudes, inclusive da sublime
virtude que ora nos ocupa.
************* Consideramos, para nossa demonstração, apenas
indivíduos do sexo masculino, como já referido acima. Para
os demais sexos, basta mutatis mutandis.
6 - CONCLUSÕES FINAIS: DA IMAGINAÇÃO REDUNDANTE
Suponhamos, simplificadamente, que a Terra possua 6 bilhões
de seres humanos. Desses, 10% superaram os 80 anos, e podem
ser descartados do rol dos punheteiros. Outros 30% ainda
se acham na fase pré-punheta, ou seja, têm menos de 12 anos.
Temos portanto 60% de Homo sapiens em idade punhetal. Assim,
6.000.000.000 x 60 ÷ 100 = 3.600.000.000
Isto é, existem na Terra, atualmente e grosso modo, três
bilhões e seiscentos milhões de punheteiros, com todos os
direitos e deveres inerentes. Considerando que dos 12 aos
79 anos pratica-se o coçamento numa média***************
de uma vez por semana, temos, então
3.600.000.000 punhetas semanais
25.200.000.000 punhetas mensais e
302.400.000.000 punhetas anuais.
Estes dados corroboram e embasam nossa arrojada afirmação,
ao considerarmos a punheta o maior de todos os atos de invenção,
descobrimento e descoberta humanos, e não apenas a maior
invenção, ou descobrimento, ou descoberta de todos os tempos.
A punheta é, até onde podemos supor, a síntese superior
da capacidade criadora do Homo sapiens, se não de
todos os seres vivos.
Por outro lado, e baseado nas Leis da Punhetística General,
ficou solidamente demonstrada sua importância como ato supremo
da imaginação criadora. E, finalmente, pela enormidade dos
números alcançados em nossa demonstração matemática, fica
ainda provado que a punheta é também o mais extraordinário
e abundante dos atos criativos, elevando cada Homo sapiens,
se não cada um de todos os seres vivos, a Criador Supremo.
Neste último acaso, estaria comprovada cientificamente a
panspermia, ou seja, a teoria de que a vida, tendo
se originado em alguma parte do Universo, expandiu-se através
do espaço, levada por meteoros ou poeira cósmica, sendo
farta e generosamente existente em inumeráveis planetas
intergalácticos, e não apenas egoísmo particular da Terra.
Pois seria inadmissível que, como Criador Supremo, O Supremo
Punheteiro, que é todos e cada um de nós, limitasse sua
atuação ao mesquinho, desprezível e ridículo planeta Terra.
Em resumo - e deixemos essa tarefa para sábios mais atilados
que nós -, seria importantíssimo determinar a psicologia,
a química, a estética e a ética da punheta, de modo que
pudéssemos legar aos pósteros uma análise profunda do maior
e mais constante de todos os atos do Homo sapiens,
desde que, pequeno, torto, desengonçado e cabeludo, começou
a trilhar o áspero caminho descendente que o levaria, por
involução específica e general, à inclamidade. O que é,
por contraste com a punheta, lamentabilíssimo.
*************** Essa média foi determinada a partir da Constante
de Huxley-Wallace, usada originalmente para medir a freqüência
de relações sexuais entre os babuínos, que é a seguinte:
MPS = IC ÷ IF (IC - IR) + AEI, onde
MPS = Média Punhetística Semanal
IC = Idade Cronológica
IF = Idade Fisiológica
IC = Imaginação Criadora
IR = Imaginação Redundante
AEI = Anos de Existência Individual
7 - EPÍLOGO: DA SUPERIORIDADE DA PUNHETA SOBRE AS DEMAIS
ARTES LIBERAIS
Como atividade individual e, principalmente, solitária,
a punheta possui inegável superioridade sobre qualquer outra
arte liberal.
A primeira de suas vantagens é poder ser praticada a qualquer
hora e em qualquer lugar, exceto em público, devido a preconceitos
arraigados e de difícil extinção. Mas esses mesmos preconceitos
acrescentam um toque de exotismo e mistério à punheta, dado
que cada qual bate punheta à sua maneira, raramente havendo
punheta em grupo, sessões de punheta pública ou mesmo exibições
de punhetismo para grandes ou pequenos auditórios. Por outro
lado, o instrumento principal da punheta é, não só portátil,
como incorporado ao corpo do punheteiro, de modo que não
há como esquecê-lo em casa, no escritório ou no caixa do
superhipermercado. Pela sua portabilidade, é muito mais
fácil de usar que instrumentos de outras artes liberais,
quase sempre mais avantajados. Na música, por exemplo, usam-se
pianos, harpas e órgãos; violões, violinos, violas, violoncelos
e contrabaixos; trombones, saxofones, pistões e clarinetas;
bumbos, tambores e tímpanos, etc. Os únicos instrumentos
que se aproximam de nosso, em tamanho e portabilidade, são
a flauta doce soprano e o flautim, este aliás bem assemelhado,
exceto pelos materiais de que é confeccionado, e pelo som,
um tanto estridente e desagradável, ao contrário da punheta,
que é sempre muda.
Não vamos, naturalmente, dissecar cada uma das artes liberais,
bastando lembrar que várias outras usam instrumentos bem
maiores e de transporte muito mais difícil.
Os escritores modernos, por exemplo, usam computadores que,
mesmo se portáteis, sempre precisam de energia elétrica
ou bateria, que demandam fios ou carga, tornando inúteis,
em sua falta, qualquer esforço produtivo. Já os antigos,
aferrados a suas velhas máquinas de escrever ou a penas
de pato e ganso, afiadas com estiletes, estão em fase de
extinção e nem é preciso mencioná-los. Além disso, até que
seus escritos sejam publicados, há uma infinidade de etapas
intermediárias, das quais as mais importantes são os editores,
que aceitam ou recusam a obra, os revisores, que sempre
fazem vista grossa para os erros mais cabeludos, além dos
leitores, que compram ou deixam de comprar os livros, podendo
ainda ler ou não ler, mesmo tendo comprado, o que torna
frustro todo o trabalho anterior. E, para nosso triunfo,
nunca aconteceu de uma punheta ter sido recusada, mal revisada
ou largada, abandonada e entregue às traças, nas prateleiras.
Teatrólogos e cineastas necessitam de aparatos complicadíssimos,
que nem precisamos mencionar, já que todos conhecem - ou
ouviram falar - de câmeras, fios, gravadores, gruas, atores,
atrizes, contra-regras, subdiretores e, muito especialmente,
de toda a parafernália ligada à iluminação, que exige horas
de montagem e teste. Isto sem falar em locação, caminhões
de transporte, guarda-roupas e, também muito especialmente,
de produtores, que entram com a grana e reclamam todo o
tempo, dizendo que, a continuar desse jeito, o prejuízo
é certo. Ora, jamais se ouvir dizer que punheta desse prejuízo.
E assim por diante, de modo que deixaremos à imaginação
criadora dos leitores a tarefa, sem dúvida agradável, de
comparar a prática da punheta com a de qualquer outra das
artes liberais, tão gritante é sua, dela, punheta, superioridade.
Resta-nos, contudo, argumentar sobre a importância da solitude
que cerca a punheta, tornando-a a mais flexível de todas
as artes, mas o faremos abreviadamente.
Tomemos, para exemplo, uma bela atriz, ou um belo ator,
tanto faz. Como somos do gênero masculino, fiquemos com
a bela atriz. Se formos diretores de teatro ou cinema, nos
veremos de imediato às voltas com o estrelismo, as birras
e pirraças de nossa escolhida para o papel principal. Sem
contar com os ciúmes, birras e pirraças das coadjuvantes,
insatisfeitas com o segundo plano. Mas passemos aos escritores.
Lá estamos nós, o Grande Escritor, diante do computador
e da tela levemente azulada, puxando para o cinza. Cadê
a inspiração? Em que mundos, em que estrelas se escondeu,
embuçada nos céus? Horas e horas de suor e desespero, espremendo
os miolos, resultam em meia dúzia de linha mal alinhavadas,
exceto se formos, é claro, escritores de telenovelas, crônicas
jornalísticas ou livros pra vender em superhipermercados,
aos quilos. Mas, mesmo nesse caso, de escritores vendidos
aos inclames e ao consumo, como se produzissem tomates ou
berinjelas, sempre existe o esforço de escrever ao correr
do teclado durante tantas e tantas horas, tomadas ao ócio
e às fotos e entrevistas. Em casos extremos, sempre existe
o desagradável ato de pagar a outro autor para que nos escreva,
ou copidesque, o próximo e notável bestecélere.
Mas voltemos à solitude da prática punhetística. Tudo o
que precisamos se resume no instrumento de trabalho e na
imaginação criadora. O instrumento já temos, pois está à
mão constantemente e em tempo integral, sempre disposto,
fiel e de cara boa. Quanto à imaginação criadora, podemos
utilizá-la, por exemplo, para retirar da bela atriz o estrelismo,
as birras e as pirraças. Vejamos como, no próximo parágrafo.
Instalados numa das posições referidas acima (ver 4 - Das
Posições Ecumênicas), fechemos os olhos e imaginemos. No
que imaginamos, lá vem ela, a bela atriz. Está um pouco
gorda? Nossa imaginação a submete a uma lipoaspiração localizada
e, em segundos, ei-la enxutérrima como sempre foi. Está
emburrada? Nada nos custa colar-lhe, sobre o rosto, um sorriso
meigo e apaixonado, que nos enche de ternura. Sofre de conjuntivite
e tem um dos olhos azuis - o direito, digamos - terrivelmente
congestionado? Lá está ele, o colírio de nossa imaginação
criadora, que, com apenas duas gotas e em somente dois minutos,
refaz-lhe a integridade azul celeste do olho direito. Veste-se
mal, como dama da alta inclamidade? Não importa. Numa fração
de segundos está semidespida, só de calcinha e sutiã, ou
mesmo metida numa transparente camisola de seda esvoaçante,
acessórios que, lentamente, com os dedos ágeis da imaginação,
iremos sublimando de seu corpo. E, como vimos até aqui,
ela nada disse, sequer se moveu. Silêncio absoluto, imobilidade
total. Tudo o que fez foi ficar lá onde a pusemos desde
o início. E, durante toda nossa sublime performance punhetística,
nada dirá ou fará, exceto aquilo que lhe pusermos na boca,
nos olhos, nas mãos e em todas as demais partes necessárias
à perfeita execução da planejada punheta que, com a amável
licença de leitores e leitoras, devemos agora finalizar
solitariamente, na companhia de nossa bela e apaixonada
atriz de olhos azuis, que nos espera sorridente, meiga e
amorosa, além de totalmente semidespida.
FINIS
Sabião
Bestunes, que é também
Sebastião Nunes e outros, publicou Antologia mamaluca e
poesia inédita, volumes 1 e 2 (reunião de 11 livros de
poesia editados entre 1968 e 1989); Somos todos assassinos
(S. Paulo: Editora Altana 2000), História do Brasil - novos
ensaios sobre guerrilha cultural e estética de provocaçãm
(S. Paulo: Editora Altana 2000) e Decálogo da classe média
(Sabará: Dubolso, 1998), os três de ficção satírica,
além de Sacanagem pura (Dubolso, 1995), ensaios sacanas
sobre publicidade. É, ainda, autor de sete livros de literatura
para jovens, pela RHJ 1998), de Belo Horizonte), e pela Dubolsinho
(2000), cooperativa constituída por 37 escritores, ilustradores
e outros amigos de livros, da qual é generente, almoxarife
e faxineiro. Atualmente prepara uma série de "animações desanimadas",
para vídeo e cinema, sobre sua poesia intersemiótica.
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