ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - home ]

 

 

SEBASTIÃO UCHOA LEITE, O POETA À BEIRA DA NAVALHA
 


Claudio Daniel

 

Sebastião Uchoa Leite (1935-2003) foi o poeta de uma época de mitologias obsessivas, uma era (fera) regida pelo culto à tecnologia, ao mercado e à mídia, avessos a todo tipo de ética ou metafísica. Com sua escrita irônica e concisa, o autor inseriu no papel imagens fragmentárias desse tempo tão contrário ao artista e à obra de arte, valendo-se não da retórica mas do enigma, do paradoxo, da sutileza e do humor, seguindo o seu peculiar "antimétodo" de composição. Em A Regra Secreta, seu último livro publicado em vida, o poeta abordou, sobretudo, temas como a doença, a perplexidade e a dúvida, sem evitar a auto-ironia, descartando qualquer tentativa de lirismo. Em Memória das Sensações, ciclo de peças que abre o volume, a memória da experiência vivida mistura-se ao imaginário, a referências de leituras, filmes e sonhos, num discurso descontínuo, em camadas de leitura que variam da prosa à poesia, numa ordenada desordem: "lembra-se primeiro de alfinetes penetrando por dentro do corpo e de estar sonhando com o diabo um segredo psicanalítico de polichinelo (...) o vômito de uma voragem cósmica desse caos-gosma que é o nosso tempo de violência calada estilhaçando-nos o cérebro como uma bala de pistola de 9mm". O cenário do hospital, já presente em A Ficção Vida, reaparece aqui, com as lentes voltadas ao ambiente da unidade de terapia intensiva, mas sem a previsível demanda compassiva, trocada pela sátira cortante ("Eis a história de quem / Se parte a espinha dorsal / Limpo como se fosse / Coisa mental / Único remédio: sair / À luz-metal do sol / Respirar o ar sujo de tudo").

Poeta da matéria, em sua rude secura de madeira nordestina, Sebastião permitiu-se zombar da medicina, essa nova crença religiosa, onde não faltam dogmas, tabus e liturgias ("Os médicos: do branco Olimpo"). Com o olhar atento ao panorama de seu tempo, nova Babel ensandecida, o poeta registrou imagens em cromos verbais que  dialogam com a narrativa do cinema e das histórias em quadrinhos, dando movimento e agilidade às seqüências. Assim, por exemplo, no poema A história presente: chelsea ("eles riam / enquanto atiravam"), denúncia do racismo e da intolerância presentes na sociedade norte-americana. O cotidiano temporal, nesta composição sóbria, feita de cortes e montagens, longe de ser reduzido à crônica banal de magazine, com diminutivos piegas à Manuel Bandeira, é recriado como um sistema de tensões, estrutura de signos que dialogam entre si, com outras linguagens, o tempo e o mundo. Uma arte densa, metálica e à beira da navalha. É estimulante observar, na leitura de A Regra Secreta, a coerência do poeta, seu caminho de rigor construtivo, que reduz a sintaxe ao mínimo, buscando obter o máximo rendimento de cada palavra, em seu som e sentido. A "normalidade" do discurso, a fluência prosaica da leitura, é abalada pelo uso imprevisto da metáfora, da metonímia e de outras figuras, sem excessos ornamentais, mas com economia e alta concentração verbal. Como um desenho de breves traços, cada linha surge de contornos mínimos e precisos, que reforçam a expressão e a consistência da imagem ou idéia, não raro unidas em um só ícone, símbolo ou "rouxinol-conceito", para citarmos Eduardo  Milán.

Sabendo que "o belo é negativo" (no dizer de Valéry), incorporou ao som o silêncio, o corte elíptico, integrando em seu método compositivo presença e ausência, discurso e lacuna. Esta é uma arte de quem aprendeu "com o bambu, a lição do bambu; com o pinheiro, a lição do pinheiro", com a suave disciplina de um mestre de esgrima japonês. Porém, assim como acontece em Leminski, esse artesanato singular é embasado no humor, que corrói toda pretensão a uma "seriedade lírica", pretendida por poetas de vocação mais acadêmica. Sebastião, poeta consciente da linguagem como forma artística e índice ideológico, não pratica a elegia, a écloga, o soneto, mas o anti-hino de crítica à banalidade na vida e no poema (tendo já torcido "O pescoço da plumagem / A eloquência da linguagem"). Suas referências ao repertório da cultura erudita despedem a tentação narcísica, tão comum em poetas de hoje, fascinados pelos quadros de Renoir que decoram as salas de jantar da burguesia. O que anima Sebastião é a ironia por trás de personagens, situações e citações que revelam diferentes aspectos do absurdo, do non sense, do grotesco de nossa vida cotidiana (o "mal-estar do fora-de-foco", para citarmos novamente o autor de O ex-estranho). Assim, por exemplo, nos poemas finais de A Regra Secreta, que convocam Ludwig van Beethoven e Gottfried Benn como testemunhas de nossa perplexidade e orfandade espiritual. O tempo de violência, de insanidade, é representado também no diapasão da paródia, dialogando com o romance noir e o filme de horror, no poema Um assassino inglês: "Bebia o sangue delas / Ritualmente / Depois dissolvia as partes / Em tonéis de ácido". Nenhuma singeleza, aqui; nenhuma concessão de "bom velhinho", de vate laureado e enfadado, entregue ao ócio de diluir a si mesmo. Só a temperatura elevada, a fratura exposta, o nervo à flor da pele. A poética de Sebastião é radical, no sentido próprio da palavra, de "agarrar as coisas pela raiz", no dizer de Marx (em carta a Engels). Talvez justamente por essa força e energia vital, esse compromisso com a modernidade, sem dar colher de chá ao conformismo tacanho, o poeta tenha sido alvo de notório tablóide fascista, editado em Curitiba, que motivou imediata campanha de solidariedade ao autor, cuja saúde se encontrava, já nessa época, em estado precário. A ausência de Sebastião, sua partida de nosso convívio, no mesmo ano em que perdemos Haroldo de Campos e Wally Salomão, foi um golpe doloroso. Para os seus leitores e os poetas mais jovens, fica o seu exemplo de resistência ao banal, ao canonizado e mumificado, e a busca incessante do lugar incomum. Esta foi, talvez, a sua regra íntima e secreta.

 

Poemas de A Regra Secreta

Antimétodo

Desoriento-me
Sem qualquer
Método
Ou sem
Qualquer fim
Vou e não vou
Mas vou
Caio sem qualquer
Alarde
O que é
E não é: mas é
Desorientar-me
É meu antimétodo


A história presente: chelsea
 

indo para a 7ª Avenida
de volta
com o jornal
vou para um miniparque
vem uma cega (negra)
quase cai
de bengala e tudo
no subway
felizmente
não há só o álcool na vida
seguro-lhe o braço
impropérios
chamo alguém
(PLEASE
HELP ME!)
alguém (branco)
vai de braços com ela
volto (direção: parque)
ansioso
por notícias da
"trench coat gang"
eles riam
enquanto atiravam

 

Aos que perguntam

certo texto de gottfried benn
(nem parece dele mas
de um outro
de tripas
+ sensíveis)
indaga
de onde vem a modéstia
de certas almas
logo ele
afundado em corpos mortos
e que ouviu
um cadáver cantar
não vem de lugar algum
é igual indagar
aos suicidas em grupo
aos camicases
aos adeptos
do haraquiri
composita anima:
requiescat in pace!


Um assassino inglês

Certo gentil Haigh convidava
Damas old people
Para ver a sua fábrica
Perto de Londres
E serem suas sócias
O galpão
Era uma fábrica da morte
Esquartejava-as
Bebia o sangue delas
Ritualmente
Depois dissolvia as partes
Em tonéis de ácido
Com máscara e luvas
Interrogado confessou enfim
Com orgulho
Seu labor artístico
Após o patíbulo o busto
No museu de cera:
Bigode sorriso olhos azuis


Um enigma de Ludwig

Quase às vésperas da morte
(1827)
Ele escreveu
(em 1826)
Em cima do
"Quarteto em fá maior opus 135"
a anotação
"Muss es sein? Es muss sein"
("É preciso? É preciso")
Já totalmente surdo
Que queria dizer
Nosso herói pós-romântico?
Jamais se soube

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2005 ]