ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 ANDRÉ BRETON



Tela de Salvador Dalí

 

 A UNIÃO LIVRE

 

Minha mulher com a cabeleira de fogo de lenha

Com pensamentos de relâmpagos de calor

Com a cintura de ampulheta

Minha mulher com a cintura de lontra entre os dentes de tigre

Minha mulher com a boca de emblema e de buquê de estrelas de primeira grandeza

Com dentes de rastros de rato branco sobre a terra branca

Com a língua de âmbar e de vidro friccionado

Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada

Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos

Com a língua de pedra inacreditável

Minha mulher com cílios de lápis de cor das crianças

Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha

Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa

E de vapor nos vidros

Minha mulher com ombros de champanhe

E de fonte com cabeças de golfinhos sob o gelo

Minha mulher com pulsos de palitos de fósforo

Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas

Com dedos de feno ceifado

Minha mulher com axilas de marta e de faia

De noite de São João

De ligustro e de ninho de carás

Com braços de espuma de mar e de eclusa

E de mistura do trigo e do moinho

Minha mulher com pernas de foguete

Com movimentos de relojoaria e desespero

Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro

Minha mulher com pés de iniciais

Com pés de molhos de chaves com pés de calafates que bebem

Minha mulher com pescoço de cevada perolada

Minha mulher com a garganta de Vale d’Ouro

De encontro no próprio leito da correnteza

Com os seios de noite

Minha mulher com os seios de toupeira marinha

Minha mulher com os seios de crisol de rubis

Com os seios de espectro da rosa sob o orvalho

Minha mulher com o ventre do desdobrar-se do leque dos dias

Com o ventre de garra gigante

Minha mulher com o dorso de pássaro que foge vertical

Com o dorso de mercúrio

Com o dorso de luz

Com a nuca de pedra rolada e giz molhado

E de queda de um copo do qual se acaba de beber

Minha mulher com os quadris de escaler

Com os quadris de lustre e de penas de flecha

E de espanador de plumas de pavão branco

De balança insensível

Minha mulher com nádegas de arenito e amianto

Minha mulher com nádegas de dorso de cisne

Minha mulher com nádegas de primavera

Com sexo de lírio roxo

Minha mulher com o sexo de jazida de ouro e de ornitorrinco

Minha mulher com o sexo de algas e bombons antigos

Minha mulher com o sexo de espelho

Minha mulher com os olhos cheios de lágrimas

Com os olhos de panóplia violeta e de agulha imantada

Minha mulher com olhos de savana

Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão

Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado

Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

 

Tradução: Priscila Manhães e Carlos Eduardo Ortolan, 2008 (alterada por Claudio Willer)

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