ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 RUBENS ZÁRATE



Foto: Igor Gaidai  (Shaman Series)

 

Não deixarás viver a feiticeira. (Êxodo, 22:18)

 

Censura pode ser: de ordem moral (envolvendo questão comportamental, sexual ou até mesmo estética); de ordem social (como em caso de racismo, xenofobia, etc.); de ordem política. Hoje o senso comum considera politicamente correto condenar as duas últimas e, ao mesmo tempo, estimular a censura moral. Esse paradoxo curioso é campo fértil para hipocrisias. Sua lógica é a de que é necessário proteger o corpo social – mais notadamente as crianças – da desordem midiática em cujas frestas se infiltram os agentes do crime organizado ou os párias das patologias individuais, que trazem consigo a sedução das drogas, da prostituição de menores, da pornografia infantil. Se até há pouco tempo eram as figuras do homossexual ou do narcotraficante as que pareciam mais ameaçadoras para a ordem familiar, agora  essa imagem desliza para o estereótipo do corruptor sexual de menores, denunciado em tons aberrantes através da palavra pedofilia  – a mais abominável aberração  que poderia rondar os lares on-line da classe média. Só o mais ingênuo dos legalistas pensaria em justificar a censura em redes sociais pela lógica do contrato (“o Facebook é uma empresa e o usuário aceitou obedecer às regras estipuladas em suas cláusulas de adesão”). Mas basta que seja mencionado o termo pedófilo  para que o mais liberal dos internautas recue com horror diante dos riscos que podem acompanhar o exercício da liberdade de informação. A questão que interessa aqui não é a das parafilias, dos desvios sexuais em si, mas das suas representações, da sua carga simbólica no imaginário do  cidadão comum. Seria sociologicamente interessante observar as reações de indignação e repúdio que provocariam a publicação, em algum status facebookiano, de alguns trechos dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, de Freud, caso fosse omitido o nome do autor. Por exemplo: “a vida sexual da criança costuma expressar-se numa forma acessível à observação por volta dos três ou quatro anos de idade”. Ou, pior ainda: “a criança não se comporta de maneira diversa da mulher inculta média, em quem se conserva a mesma disposição perversa polimorfa. [...] Guiada por um sedutor habilidoso, terá gosto em todas as perversões e as reterá em sua atividade sexual. Essa mesma disposição polimorfa, e portanto infantil, é também explorada pelas prostitutas no exercício de sua profissão, […] e é impossível não reconhecer nessa tendência uniforme a toda sorte de perversões algo que é universalmente humano e originário”. Repugnante... O curioso é que os padrões de mentalidade coletiva que repelem com asco a perversa pedofilia são os mesmos que obedecem docilmente aos contratos de mercantilização do erotismo infantil, principalmente através do consumo midiático, do qual as próprias redes sociais fazem parte. Mas Xuxa pode dormir com a consciência tranquila: é uma satanista arrependida, e, mais que isso, uma denunciante.

Fechando com Pasolini: a época da tolerância sexual é a era de um novo fascismo, o fascismo do consumo e da transformação do eros em mercadoria, "alienante até o extremo limite da degradação antropológica”.

 

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Rubens Zárate (São Paulo – SP) é poeta, historiador, antropólogo e produtor cultural.

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