ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 NU(S)



Foto: Sindri Mendes / Performance: Tatiana Grisel

Cássio Mattar

 

 

“Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
Estampados
Não imagina as grades, os muros
O chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus laços.”

(Iracema Macedo)

 

 

 

 

 

Cada um de nós avalia e se posiciona a respeito das convenções que cercam e regulamentam a economia das vestes e da nudez. Seja desde a folha de parreira, após a mordida da maçã, seja pela mera ação dos agentes físicos, químicos e biológicos que cercaram a formação humana desde seus primórdios, o corpo passou a se (re)vestir de utensílios e adornos além da pele que a genética lhe concede.

Ao longo dos séculos, com a sofisticação da linguagem e dos costumes, essas vestes e adornos foram encontrando facetas de ordens as mais diversificadas, atreladas à inscrição cultural de cada aldeia, feudo, reino ou mais adiante da sociedade burguesa, da mais convencional a que arrisca alternativas. A chamada moda, definida nos dicionários em torno de “s.f.1. Uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo, e resultante de determinado gosto, meio social, região, etc.; 2. Uso passageiro que regula a forma de vestir etc.; 3. Arte e técnica do vestuário; 4. Maneira, modo; 5. Bras. Modinha.”, tenta ancorar todo o arsenal de mutações e funções das vestes e adornos dentro do tecido social.

 

Sem mergulhar em minúcias demasiadas, tentarei nesse ensaio mixar minhas visões pessoais sobre o tema com fatos, conceitos, opiniões, posturas e ordenações sociais que considero relevantes. O pensador e pesquisador Michel Foucault poderia produzir aqui um imenso compêndio, daqueles seus fundamentados até o cerne, mas meu propósito é apenas trazer ao leitor as harmonias (ou dissonâncias...) entre o que citei, tentar iluminar seu campo de pensamento com uma experiência a mais. Instigá-lo, enfim, nada além disso.

 

 

Sendo vestidos

 

Antes do bebê ter seu cordão cortado, na maioria das residências com um mínimo de condições de sobrevivência, já tem seu enxoval a esperá-lo. Junto a este, uma expectativa de sexualidade – antes de sabermos&assumirmos nossos corpos – reveste o processo educacional, moldando-a e inscrevendo-a, de certa forma, em cada ser.

A natural diferenciação homem/mulher, a partir do biológico, inscreve-se desde logo nos corpos marcando-os com as vestes e adornos. É sua alocação dentro do social, seu lugar e papel, independente e desvinculado de quaisquer intimismos outros em cada um de nós.

Simone de Beauvoir proferiu o famoso “não se nasce mulher, torna-se mulher”, referida a todo o baile de máscaras sobre o palco da vida. No pós-moderno, o enfant terrible Jean Baudrillard referendou o dito, mas com um desvio de rota: o tornar-se mulher embute um potencial que abarcaria todo um arsenal colateral. Em “A Transparência do Mal”, já imerso em seu conceito de Simulacro, ele dispara:

 

(...) o corpo sexuado está entregue hoje a uma espécie de destino artificial (...), a transexualidade.Transexual não no sentido anatômico mas no sentido mais geral do travestido, de jogo de comutação dos signos do sexo, e, por oposição ao jogo anterior da diferença sexual, do jogo da indiferença sexual, indiferenciação dos pólos sexuais e indiferença do sexo como gozo. O sexual tem por objetivo o gozo, o transexual tem por objetivo o artifício (...) Seja como for, operação cirúrgica ou semi-úrgica, signo ou órgão, trata-se de próteses, e hoje, em que o destino do corpo é tornar-se prótese, é lógico que o modelo da sexualidade se torne a transexualidade, e que esta se torne em toda parte o espaço de sedução.

Somos todos transexuais. Assim como somos mutantes biológicos em potência, somos transexuais em potência. E não é uma questão de biologia. Somos todos simbolicamente transexuais.

 

Não cabe aqui seguir estrada no raciocínio descabelado e semi-delirante de Baudrillard, que desfia o paroxismo e ditadura da Imagem em nosso tempo. Entrei nesse mérito para abordar a questão do nu e de seu nítido estigma dentro de todas as sociedades.

          Se nos primórdios se mostra de todo óbvia a tremenda dificuldade que havia no lidar com a nudez, vimos que o passar dos séculos não muda tanto esse panorama.

         As práticas de sociedades mais acirradamente moralistas e coercitivas seriam risíveis não fossem sérias, como a que consagrou durante significativo período o uso de camisolão estiloso como último reduto de “proteção” do corpo feminino. A consumação do sexo, feita através de um estratégico corte na ala sul, mantinha a usuária a salvo do olhar concupiscente de seu macho.

 

As vestes e a História

 

Em termos históricos, um bom referencial é “A História da Vida Privada”, de Paul Veyne, Georges Duby, Phillipe Ariès, Roger Charier, Gerard Vincent e Antoine Prost, em 5 volumes, cada um a cargo de um deles, historiadores. Uma epopéia sobre o nu, de onde pinço partes apoiado na meticulosa pesquisa feita por Henrique Ferraz e Nadine L’Apiccirella.

           As intervenções são de minha autoria. Assim:

 

Do Império Romano ao ano 1000 d.C.

Na vida pública, durante a Antiguidade Clássica, houve uma longa sobrevivência da indiferença em relação à nudez. A nudez do atleta, por exemplo, ainda hoje continua sendo um indício de posição, como símbolo de saúde. O papel essencial dos banhos públicos como ponto de reunião da vida cívica clássica fazia da nudez, entre os pares e diante dos inferiores, uma experiência cotidiana inevitável. A postura de um homem (nu ou vestido) é a verdadeira marca de sua condição, uma marca tanto mais convincente quanto minimizada. Para as mulheres, a vergonha social que havia em exibir, de modo inconveniente, constituía uma preocupação, não pelo simples fato de se mostrar nua, pois a nudez diante dos escravos é moralmente tão insignificante quanto a nudez diante dos animais, e a exibição física das mulheres das classes inferiores constitui outro sinal de sua desregrada inferioridade em relação aos poderosos.  

A sociedade do Oriente mediterrâneo se organizava de modo ainda mais conservador acerca da generalização da vergonha sexual. Em Antióquia (Síria), João Crióstomo ousa atacar os banhos públicos, ponto de reunião social, por excelência da elite. Critica o hábito das mulheres da aristocracia de exibirem a uma multidão de servos suas intimidades, cobertas apenas de jóias, que constituíam a marca de sua elevada posição. Na Alexandria (Egito), os farrapos dos pobres deviam provocar no crente visões perturbadoras, medo inconcebível, nos séculos anteriores em que essa nudez parcial era tida como indigna, mas dificilmente como fonte de inelutável perigo moral.

 

Da Europa Feudal à Renascença

 

As narrativas feudais debatem amplamente sobre a exposição do corpo nu, ao olhar de si, de sua captura pelo olhar do outro, da função ambígua do vestuário (como proteção, pudor ou adorno), da percepção e do uso da nudez nas práticas sociais das comunidades fictícias literárias. O recurso ao traje aparece nas narrativas feudais como revelador de desejos exibicionistas e de um sentimento contraditório de vergonha. Através dessa obsessão, "estar nu ou mal vestido", a literatura põe em cena o sentimento de incômodo experimentado pelo sujeito posto nu, a reprovação implícita por outros, que poderia no mesmo instante, encobrir uma forma jubilosa, ao menos nos caso dos nus masculinos, da representação do Eu. Pelo desnudamento e pela evocação da vergonha individual, do olhar de outrem e da relação com o grupo, as representações do corpo nu revestiram-se com insistência da noção de um exílio e de uma rejeição temidos. Pela relação íntima com o corpo e, paralelamente, pela relação com o mundo ordenado segundo leis, os nus - sempre banhados de vergonha - levam o selo de proibições e de tabus que atuam segundo uma distinção sexual. Contudo, de início, o nu feminino, assim como o masculino, se oferece sempre em uma fase de segregação, em uma forma de ruptura com a vida coletiva, por vezes simplesmente com o domínio dos ritos privados (o banho), porém, mais particularmente, sob a forma de uma fase articuladora para os homens tornados selvagens e que rejeitam o vestuário.

Revelar o corpo nu, reservado à clausura, à solidão, ao olhar de um círculo restrito, é fonte de embaraço, de vergonha e de fragilidade. Não nos surpreendemos, portanto, de ver aqueles que encontram o homem nu em seu caminho como curadores que favorecem a caminhada na direção do vestuário. O nu masculino significa destruição de uma ordem anterior, oposição mesmo a um estado anterior feito de ordem, uma anarquia cujas marcas são o abandono do vestuário, a destruição da aparência, a abolição das leis do comportamento, desordem gestual e incoerência do psiquismo: o nu masculino é o significante revolucionário, a representação de uma ruptura. Em compensação, o nu feminino se situa quase sempre na lógica direta de uma lei criada em absoluto, costume de rei ou vontade de imperador: "cumpriremos vossa vontade legítima", admitem as jovens no Roman du comte de Poisiliers, obra literária em que o imperador exige que sejam exibidas aquelas dentre as quais escolherá sua esposa. Além disso, nas narrativas do Cyele de la Gagevre, o nu feminino - cuja privacidade sofre uma invasão ilegítima - está freqüentemente associado a um ganho material (terras, por exemplo). O único caso de um funcionamento auto-suficiente e feliz da nudez feminina encontra-se em narrativas com aspecto matriarcal, em que a mulher serve de sua nudez como de um chamariz.

Se as crianças se apresentam enquanto selvagens que emergem do reino animal progredindo para o mundo da Cultura, os outros nus masculinos são todos oriundos de uma verdadeira regressão em relação aos signos culturais do grupo, um retrocesso que animaliza o homem. Personagens como Bisdravet e Méilon retornam à forma humana depois de um tempo de exclusão, em que conservam sabedoria e memória de homem, e dos traumatizados do amor, dir-se-á por vezes que são muito semelhantes a um lobisomem.

 

Em compensação, a função do nu masculino parece estreitamente ligada aos ritos da sociabilidade e às marcas de coesão do grupo, submetidas a provas repetitivas: a tendência exibicionista do homem passa por uma total declaração pelo vestuário. À mulher, ao contrário, é atribuída uma situação de vergonha ("ser vista") e lhe está reservado um modo infeliz de exibicionismo, pois a mulher nua parece viver uma socialização mediatizada do corpo na medida em que - ao lado do vestuário que é para o homem o signo da integração do Eu, recuperado pela coletividade - ela não parece senão um signo entre outros. O processo do nu ao vestido, aparece todo carregado de simbólica coletiva: expulsão e reintegração rituais, são etapas significativas do homem medieval com seu corpo. Em modo menor, a mulher é excluída dessa problemática: posta a nu, admirada, punida, ela serve para fazer nascer o desejo e permanece para o homem um dos trunfos da imensa alegria em si.

Em uma era, a partir de então, destinada ao sentimento de vergonha, o pudor, que se exprime claramente por ocasião dos retornos à aparência humana, e é mais explícito ainda entre as mulheres obrigadas a ficar nuas (com exceção da rainha ativa que só procura reunir confirmações de sua beleza). Mas aquelas, que na torre do imperador devem desnudar-se (submetidas de fato a um teste de virgindade), opõe a ordem cruel, malévola, um processo de despojamento do corpo muito lento e constrangido: tiram seus cintos, rasgam seus laços de seda, abrem o fecho do pescoço - tremem por medo e incômodo.

Reflexo do corpo de Adão, mas invertido como que por um espelho, o corpo feminino (mais permeável à corrupção por ser menos fechado) requer uma guarda mais atenta e é ao homem que cabe a sua vigilância. A mulher não pode viver sem o homem, deve estar sob seu poder. Anatomicamente, ela está destinada a ficar encerrada, submetida em uma cerca suplementar, a permanecer no seio da casa, e só sair dali escoltada, enterrada em um invólucro de vestiário mais opaco. É preciso erguer diante do corpo um muro, o muro "vida privada". Por natureza, ela é obrigada  ao retiro, ao pudor, deve preservar-se. Deve sobretudo, ser colocada sob o governo dos homens, desde o nascimento até a morte, porque seu corpo é perigoso, em perigo e fonte de perigo: por ele, o homem perde sua honra, por ele corre o risco de ser desencaminhado, por essa armadilha tanto mais perigosa quanto está mais preparada para seduzir.

 

Estabeleço um paralelo a essa altura com práticas pervertidas em nosso tempo, onde fica evidente essa mesmíssima relação de poder entre o masculino e o feminino. A fêmea submissa traz em sua bagagem um patrocina-dor, que se intitula DOM ou DADDY, desenterrando o patriarcado radical nos lugares onde é pactuado. Os antigos cinturões de castidade, artefatos impeditivos da consumação sexual, beneficiados pelo aperfeiçoamento da tecnologia moderna, exercem fascínio sobre os escravocratas, lacrando seu “território possuído” e ensinando à usuária quem manda nele. E a respeito das vestes em si, as crenças religiosas com suas tradicionais normatizações, estabelecidas sob o manto da moral de cada cultura, colaboram para essa mesma escravidão da mulher, a ela impondo uma clara e ampla delimitação do que poderá ser desnudado. Cabe pois ao homem, nessas circunstâncias, decidir pelo destino que melhor mantenha sua presa “bem apresentada” e “bem comportada”, assim resguardando os valores das culturas que pactuam com a desigualdade de direitos individuais.

Cabe ressaltar ainda, aqui, um prazer adicional ao pervertido, subalterno, representado na transgressão às leis – no caso as ocidentais, em sua maioria, mais liberais –, configurando uma espécie de poder especial inscrito de forma secreta  dentro do poder explicitado pelo código de conduta e das leis que regem a cultura local.

 

O corpo era objeto de uma moral e de uma prática que o historiador tinha dificuldade em descobrir antes do final do século XIII, porque a arte, decididamente realista, e os escritos sobre esse assunto mascaram quase tudo. O princípio era de que é preciso respeitar seu corpo, pois que ele é o templo do espírito e ressuscitará, cuidar dele, mas com prudência, amá-lo ternamente como, segundo São Paulo, os maridos devem ter afeição por sua mulher: guardando a distância, desconfiando, pois o corpo é tentador como o é a mulher, ele leva os outros aos desejos, leva a desejar os outros. O mais aparente nos textos que nos informam é uma forte tendência a temer seu corpo, e dele libertar-se, levando aos extremos do ascetismo até a abandoná-los aos insetos.

A identidade se perde com o aparecimento do traje, o homem social passa a ser um homem vestido. Há malícia em evocar o nu, em primeiro lugar porque o uso da pele é um dos elementos discriminadores de representação social, em seguida, porque o corpo nu, em uma sociedade de ordem, define o extraviado ou o excluído sob o olhar das pessoas vestidas; enfim, porque a nudez confina o natural do homem. A sociedade passou a se manter de pé, pelo consenso expresso, pela aparência dos indivíduos.

 

A sociedade no fim da Idade Média se desenvolveu economicamente e multiplicou os estatutos. O vestuário se tornou assim uma das marcas essenciais de convivência social, destinando a cada parte do povo, seu papel e seu lugar. A nudez é o sinal de uma regressão em relação à ordem coletiva, de uma ruptura com os círculos da sociabilidade medieval. Na literatura, a nudez feminina significa luxúria e exibição forçada das prisioneiras cativas entre as quais um imperador de romance escolhe uma mulher. Quanto à nudez masculina, estava associada, nas representações literárias, aos fantasmas da loucura ou da vida selvagem, assim como o menino-lobo.

Outras origens se erguem e fazem da nudez uma invenção da cultura cristã: Adão, o glorioso, e Jesus, o suplicado, impõem ao povo fiel o esplendor do corpo virgem e dor do corpo martirizado. No final da Idade Média, na pintura do norte da Europa, a partir do século XV, traz a nudez triunfante de Adão e de Eva e a nudez de Cristo torturado até a morte.

O diálogo entre o homem e sua imagem, tal como refletem os artistas, participa da consciência nova que os homens e as mulheres do fim da Idade Média tiveram seu corpo revelado, sem se iludir sobre o corpo delicioso e pecador, do qual a alma escapará no último suspiro para ir habitar na monotonia do corpo sofredor no purgatório, diante do nu reconciliado no fim da Idade Média, que não se espere conhecer o íntimo. A intimidade é bem o último círculo do privado, mas passa necessariamente pelo corpo oferecido e despojado. A nudez supõe um olhar, um olhar percebido, desde o apelo que ressoou no paraíso nesta etapa, o olhar que os homens e mulheres do final da Idade Média lançaram sobre seu próprio corpo.

                                   

Creio que nesse ponto pode-se falar num esboço de estratificação da nudez, onde signos mais claros são delineados. E como tal precisarão ser normatizados como os autores abordam a seguir. Caberiam aqui, em ousada especulação e fugindo ao rigor e plena pureza do viés histórico, visões dessas tendências, as quais contam com o privilégio do saber que se acumulou nos séculos seguintes. De minha parte, vejo uma espécie de evolução fenomenológica, como que codificando em progressão o conjunto de olhares sobre os fatos dentro do cotidiano. A complexidade de cada sociedade obriga cada indivíduo a recodificar a si mesmo, e adiante a conviver com uma ideia mais maleável de possibilidades e de valores. E por esse mesmo corredor, junto àquilo que é evolutivo, vem se inserir o inevitável: o véu da censura, tanto no tecido social quanto a autocensura.

 

Da Renascença à Revolução Francesa

 

Evidentemente, é sobre o corpo que as normas da civilidade se exercem com maior rigor. Não é ele ao mesmo tempo a base das paixões, uma incansável moralização das condutas ordena que se esqueça o corpo e respeite a presença divina. Ela traça um caminho difícil e cheio de contradições. "Foi o pecado que nos impôs a necessidade de vestir-nos e cobrir de roupa nosso corpo", portanto a vestimenta deve obedecer a uma norma religiosa e moral que em todos os casos associa a nudez ao pecado original.

Em determinados casos essa evolução sobre o corpo e a nudez começou muito antes do século XVIII. A decência específica, exigida na época de início, era que "algumas partes do corpo o pudor natural nos leva a esconder". Depois, a relação com o corpo ficou mais severa: É muito honesto para uma criança pequena manusear suas partes pudendas, mesmo com vergonha e pudor.

Mas tudo não passa de uma única teoria: "O julgamento moral está totalmente integrado à experiência corporal". Ainda que se trate aqui de uma função considerada vil e repulsiva, no entanto com relação aos gestos mais cotidianos, progressivamente, se impõe uma distância que, do corpo ao corpo, tende a intercalar o espaço neutro de uma tecnologia que governa a ameaçadora espontaneidade da sensualidade. Assim como quando se está deitado, não se devia deixar que as cobertas sugerissem a forma do corpo, assim como, "quando sair da cama não se deve deixá-la descoberta, nem colocar a touca de dormir em algum assento ou outro lugar onde outros possam vê-la. A vigilância se tornou tão estreita que acabou proibindo toda relação imediata consigo mesmo: o decoro exige também que, ao nos deitarmos, escondamos de nós mesmos o nosso corpo e evitemos lhe lançar até os menores olhares". Negação radical de qualquer intimidade.

Às vésperas do Iluminismo, toda uma gama de práticas corporais cai, assim, numa clandestinidade furtiva, vergonhosa. Organiza-se ao redor do corpo uma esfera do silêncio e do segredo. Do privado ao público, do íntimo ao secreto: não forçaremos porém, as linhas de uma evolução extraordinariamente complexa. Se é clara a direção em que os comportamentos mudam entre o século XVI e o começo do XIX, tais transformações se efetuaram em ritmos e segundo cronologias muito variáveis. As funções corporais logo são subtraídas ao campo da civilidade.

Do final da Idade Média a meados do século XVIII, nossos tratados em particular ignoram o corpo, à exclusão do rosto e das mãos, que são as únicas partes expostas. Os cuidados concentram-se no visível, na roupa e, sobretudo, na roupa branca, cujo frescor ostentado na gola e nos punhos constitui sinal autêntico do asseio. Porém, ao mesmo tempo, é inseparável de uma ideia do corpo que rejeita a água como um agente perigoso, suscetível de penetrar por toda parte.

A higiene reabilita a intimidade corporal. Enfocada pela medicina e depois levada às escolas, logo se tornará, aliás, o dispositivo inédito de uma forma de controle coletivo dos comportamentos. Vemos que a socialização das técnicas do corpo, por mais que sejam expressamente reguladas, na verdade, só conseguem impor-se através de registros de representações e de práticas estabelecidas, ao mesmo tempo que ultrapassam o campo específico da civilidade.

A roupa foi usada com a função  de esconder a superfície do corpo. Mas faz da intimidade corporal o objeto de investimentos autônomos. A história do asseio não é isolada, em todo caso, convida a reconhecer no mundo dos gestos reprovados a outra forma silenciosa de intimidade. (e que curioso mecanismo de estímulo psíquico em todos  nós, mortais comuns!...)

 

Chamo a atenção aqui, para o papel de nossos pagãos tupiniquins no processo, descoberto no século XVI pelos grandes navegadores. A função do fascínio da descoberta dos “paraísos perdidos”, em confronto com o moralismo rígido imposto pelas normas próprias de cada cultura colonizadora. É através dessa via que os padres obrigam os indígenas a usarem vestes, assim como a mulher, em muitas sociedades e ainda sob a égide de “criatura demoníaca” e pivô do pecado, é obrigada a proteger do olhar a maior parte de seu corpo e mesmo do semblante, como os cabelos. Ou, ainda sobre estes, a crença de que seriam o “véu da mulher”, protegendo a liberação facilitada – digamos assim... – das provocadoras tentações que de seu corpo emanariam.

Ainda no olhar do desenvolvimento colonizador/colonizado, os costumes do indígena abrem questões além da pudicícia, como as da higiene e dos fetiches corporais. Surpreendentes adornos e hábitos corporais chocam o olhar e a moral do colonizador, impondo uma ordenação psíquica íntima destes a respeito, da mesma forma que se passara com as vestes.

 

Da Revolução Francesa à Primeira Guerra

 

Cento e cinquenta anos depois, a sala de banho é transformada em santuário, fecha-se sobre a nudez dos senhores que já não toleravam ser vistos por seus criados, "madames se vestiam sozinhas e penteavam-se pessoalmente. Ela se tranca em sua toalete e é muito difícil que alguém tenha direito de entrar" (Diário de uma criada de quarto). Mostra-se que essa expulsão foi precedida por uma "relação mais exigente do indivíduo consigo mesmo". Essa exigência de mais intimidade não se manifesta apenas no banheiro, mas, também, no dormitório e em toda a casa.

Os ricos, principalmente, viviam sobre as vistas dos criados, comiam, dormiam sob os olhos deles. Acabaram por perderem as intimidades a dois (os casais). E a exigência de recusa aos criados o transformou num intruso, no século XIX. Em 1830 começa a moda dos retratos, de famílias, de pessoas e parentes passados que morreram ou amigos. Mas esse processo favorece por fim a vulgarização e a contemplação da imagem da nudez. Tende a modificar o equilíbrio dos modos de simulação erótica, a difundir um novo tempo de desejo, testemunha-o prestígio do nu. O legislador percebeu-o bem depressa e, desde 1850, uma lei proíbe a venda de fotos obscenas em vias públicas. Após 1880, a foto pública de amador suprime o intermediário profissional, alivia o ritual da pose, abre de par em par a vida privada para a objetiva, a partir de então ávida de imagens íntimas.

No início do século XIX, é no seio do espaço privado que o indivíduo se prepara para afrontar o olhar dos outros; ali configura-se sua apresentação em função das imagens sociais do corpo. Impõe-se nessa época a elaboração de uma estratégia de aparência, um sistema de comunhões e ritos que visam somente a esfera privada. Assim, ao cabo de décadas, a camisola de dormir deixa aos poucos de ser tolerada fora do quarto. Tornou-se símbolo de uma intimidade erótica e menor alusão a ela. Outro fato histórico renova então as condutas privadas: o inaudito sucesso da lingérie. A extrema sofistificação da vestimenta invisível valoriza a nudez, dando-lhe maior profundidade. Enquanto se multiplicavam os estágios do despir-se (no final do século), a acumulação erótica ainda era um tabu. As mulheres usavam corpetes para manter a silhueta esbelta e acentuar as curvas das ancas e dos seios.

No final do século XIX, o corpo já está mais livre. Os gestos e as posturas são permitidos e o corpo deixa de ser percebido como exterior à pessoa. Os prazeres do corpo nu em meio a fluidez de um banho de mar já não é tão julgado.

 

Além do leque de possibilidades de prazer ao se contemplar a nudez, surge então o das surpresas e aprendizados possíveis a esta ligados. Numa extensão também especulativa acerca da intimidade ainda maior, a descoberta de uma nudez ainda mais ampla, contemplando a epiderme totalmente nua, deságua e inaugura, em ondas e modismos, ritos de raspagem. Axilas, sobrancelhas e pelos púbicos personalizam-se, expostos ou selados no segredo da pudicícia íntima: cada corpo passa a encontrar sua economia funcional, dentro das regras da contemplação própria e daquilo que será concedido a terceiros.

            Cada geografia corporal assume a identidade de seu(sua) usuário(a), conservador ou revolucionário passando pelas escalas diversas no percurso, entre permissividades e liberalismos aleatórios, ao sabor das veleidades humanas, e com óbvios desdobramentos nesse conjunto de liberalismos e censuras espraiados pelo social.

 

Da Primeira Guerra aos dias atuais

 

A rebelião do corpo certamente constitui um dos aspectos mais importantes da vida. Com efeito, ela modifica a relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros. A novidade no final do século XX são as atividades físicas: surgiram para o culto ao corpo, pela aparência, bem-estar e realização. "Sentir-se bem na própria pele" se torna um ideal.

O espelho surge (e não é uma invenção novecentista, mas sua banalização e a forma de usá-lo são próprias desse século): a pessoa não se olha mais no espelho com o olhar de outro, ela se olha de uma maneira que, de modo geral, ninguém está autorizado a fazer: sem maquilagem, sem roupa, totalmente nua. Assim, as manifestações narcisistas do banheiro são percorridas por sonhos e lembranças. Cuidar do corpo é prepará-lo para ser mostrado.

A roupa se torna funcional, prática e confortável, mesmo contra os costumes, passa a valorizar o corpo e deixar adivinhar suas formas, realçando-as e, por vezes, revelando-as. Exibe o bronzeado, a pele lisa e firme, a flexibilidade. Aliás, mostra-se cada vez mais o corpo: cada etapa desse desnudamento parcial começa provocando certo escândalo, depois se difunde rapidamente e acaba se impondo, pelo menos entre os jovens, aumentando a distância entre gerações. É o caso da minissaia nos meados dos anos 60 ou 70, depois do mono-biquíni nas praias, mostrar os seios e as coxas deixa de ser indecente. Nas cidades, durante o verão, vêm-se homens de bermuda, camisa aberta, mostrando o tronco nu. O corpo não é apenas assumido e reabilitado: é reivindicado e exposto à visão de todos.

Para as normas do entre guerras, o avanço do nu é o avanço da indecência, no mínimo da provocação. Para a nova norma, é o contrário, uma coisa muito natural, uma nova maneira de habitar o próprio corpo. Prova disso é o fato que o nu avança não só nos lugares públicos, mas, também, no universo doméstico. As famílias no verão sentam à mesa em trajes de banho. Os pais vão e voltam do banheiro para o quarto nus, sem se esconder dos filhos. É difícil saber até que ponto essas práticas prevalecem, o que certamente depende dos meios e das gerações. Mas sua mera possibilidade mostra que não se trata de depravação, e sim de uma mudança de normas.

De fato, o corpo se tornou o lugar da identidade pessoal. Sentir vergonha do próprio corpo é sentir vergonha de si mesmo.

 

Do lado de baixo do Equador, onde segundo uma canção de domínio público “não existe pecado”, vemos famílias almoçarem em restaurantes usando trajes de banho. Nas praias e piscinas os trajes se tornam sumários, a nudez parcial passa a ser aceita e assumida por boa parte da sociedade.

A lingerie cria modelos visando mais e mais estabelecer uma identidade do que se propõe sensual, estimulante à idéia e prática do sexo. O bojo de ousadias atinge tal escala que mesmo corpos pouco tratados ou atraentes adotam essa régle-du-jeu, e são ofertados ao mercado do olhar.

Pode-se falar num dialeto dos diversos estágios e estilos da nudez. No Velho Mundo pratica-se/vive-se um propalado nudismo com menos tempero erótico-obrigatório, ou – de forma mais acurada, em meu ponto de vista – fingindo ignorar aquilo que escandaliza, numa variante cumulativa de energias&sinergias a ser metabolizada por cada participante. Nas primeiras cenas da magnífica dramatização da trajetória do grupo Baader-Meinhof (Uli Edel, 2008), que formou três braços de diferentes gerações em ações terroristas, tudo se inicia placidamente numa praia nudista...

A mistura dos temperos íntimos aos sociais pode, pois, tomar vias as mais imprevisíveis. Tanto os movimentos estudantis de 1968, quanto alguns com  identidade similar (ainda que não idêntica) ao do Baader-Meinhof, passam a estabelecer regras próprias de conduta, alheias às sacramentadas pelas leis de suas sociedades.

 

Pudicícia e nudez

 

A história da oscilante economia das vestes e adornos entre a ala pudica e a exibida foi assumindo sofisticações cada vez maiores, ao longo das décadas. Como um apaixonado pela Literatura, vejo a palavra como fator importante nesse processo, agindo como catalizador e fator instigador do imaginário, afora seu eventual uso crítico aos costumes de cada cultura.

Interessantes discrepâncias fluíram dos diversos hábitos adotados pelas sociedades, e muitos foram alvo de artistas, sobretudo pintores escultores e escritores. À época do lançamento do magnífico filme Les Liaisons Dangereuses (Stephen Frears, 1988), nomeada ao Oscar de atriz por seu soberbo desempenho, Glenn Close declarou em entrevista, vaidosa, “adorei o desempenho dos meus seios!” Os enormes e pesados gowns, tendo sob si um arqueado em material  que lhes conferia a forma arredondada, tinham ainda anáguas por debaixo, além é claro do último reduto de proteção da intimidade. Na parte alta, no entanto, tornou-se costume em algumas sociedades europeias do século XIX os seios praticamente à mostra, arfando junto com sua proprietária, ambos à beira de abandonar sua complacente guarita.

O que parece imune a modificações é a inscrição do lugar onde a nudez é permitida ou aceita. Estabelece-se assim – seja por lei seja ao sabor do hábito – a logística onde poderá atuar/atuará o baixo meretrício, as praias e resorts para prática do naturalismo, as festas fechadas com regras próprias. O poder compartimentaliza o quesito da mesma forma que faz com as demais instituições, como Foucault bem demonstra. Nossa naturalista mais fogosa, Dora Vivacqua, bailarina nascida no Espírito Santo e conhecida como Luz del Fuego, chegou ao ponto de fazer acontecer o lugar de se exercer como mais gostava, ao comprar a Ilha do Sol, propriedade onde ficava à vontade e recebia amigos e afins.

Em Amsterdam as meretrizes são exibidas em vitrines, como mercadorias em boutiques ou automóveis em concessionárias. E nuas ou seminuas.

A obra-prima Women in Love (Ken Russell, 1969) baseada no romance de D. H. Lawrence, centraliza as temáticas mais gratas ao escritor usando um gueto na sociedade inglesa local onde se desenrola o drama. As regras de permissividade e os hábitos ali são alternativos, em relação ao lá fora, a nudez não choca – ou se presume que... – os frequentadores.

A nudez se faz emblemática dentro do tecido social através da institucionalização do que se batizou strip-tease, uma sucessão de atos e gestos calculados visando extasiar plateias específicas. Num palco, a protagonista que já surgira com vestes de alguma forma provocantes, vai se desnudando entre ameaças e refugos daqui e dali, fazendo caras e bocas em meio a manifestações de estímulo e prazer dos assistentes. Uma música condizente com o que se passa no ambiente dá o contorno a seu número.

strip-tease consagrou estrelas nele especialistas, tornando-as musas de um grande número de admiradores. Gipsy Rose Lee e Dita Von Teese escreveram seus nomes na história da nudez através dele, assim como o cinema, em seu núcleo voyeurista, trouxe provocações de toda ordem na área. Surgiram sutilezas, como a metonímia de nudez em Gilda, com Rita Hayworth cantando a antológica Put the Blame on Mame, se esmerando entre beicinhos, rebolados, rodopios, cabelos cacheados chicoteando a própria testa, axilas depiladas exibidas com as mãos erguendo as melenas e valorizando as longuíssimas luvas junto a um provocante tomara-que-caia, até retirar a primeira delas devagarinho e atirar a segunda a um babão na primeira mesa da casa noturna.

O tecnicismo tornou capaz a estilização consagrada em 9 ¹/² Weeks, com Kim Basinger protagonizando um showzinho particular para seu parceiro-plateia, premiando o espectador com sua nudez na penumbra, enquanto Joe Cocker com sua voz rouca prega na trilha “you can leave your hat on”...

Em todo esse arsenal de hábitos, regras, leis, normas, éticas e limites interpessoais, ligados ao tema, cabe aqui a deliciosa assertiva do controverso teatrólogo e articulista Nelson dos Tigres, digo Nelson Rodrigues. Numa de suas várias tiradas polêmicas, dispara “Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo podia-se andar nu.”

 

Nus aceitos – ou nem tanto

 

Nas diversas formas e representações de nudez, a que se materializou através da Arte foi uma das aceitas pelos cânones sociais. Nem senhoras ou casais carolas e moralistas refutam estátuas clássicas nuas, ainda que em espaço público, como a réplica do Davi de Michelangelo na praça central de Firenze.

Pinturas clássicas como a “Maja Desnuda” de Goya podem gerar insinuações e velados comentários desabonadores de alguns, mas entraram para o rol da aceitação plena enquanto Arte. Especula-se que a modelo seria a amante do Duque de Alcudia, da corte espanhola, e foi a primeira pintura a retratar pelos púbicos exibida.

Tive a sorte de ver uma exposição de gravuras eróticas de Pablo Picasso, no MoMa/Manhattan, tratava-se basicamente de erotismo franco, bastante explícito porém sem chegar ao pornográfico. Uma dupla de senhoras sessentonas, logo atrás de mim, mostrava-se perplexa com o que via, e comentou I can’t believe he’s painted this!... (a título de mera informação, sempre que instado a constatar se uma obra era um fake ou autêntica, Picasso afirmava ser falsa, va savoir).

Já a célebre escultura A Porta do Inferno, de Auguste Rodin, inspirada no Inferno de Dante, traz a nudez atrelada a imagens fortes de conflitos humanos. Dividida em oito quadros, alude a temas e passagens abordados pelo bardo italiano, como O Beijo, do Canto V, narrando o romance adúltero entre Paolo e Franccesca Rimini; o de Ugolino e seus filhos, baseado no Canto XXXIII – que narra o trágico resultado de um conflito político em que o pai acaba por comer os próprios filhos; e também O Pensador, que seria o próprio Dante.

Sobre O Beijo, Francesca conta sua história a Dante, dizendo que Paolo era irmão de seu marido, e ela se apaixonara por ele enquanto liam o romance de Guenevere e Lancelot du Lac, e ao consumar o amor com um beijo, seu marido os flagra e os assassina. Tal amor proibido e os danos que ele causa se tornaram um dos temas preferidos de Rodin.

A obra expressa muito sentimento e doçura, caracterizada por uma composição em espiral, e fazendo oposição à imagem de Ugolino, que expressa muita agressividade.

  

Nudez e pós-moderno

 

Sabemos bem da força do preconceito a respeito do tema, mesmo em 2012 A.D. Mudam preceitos daqui e dali, enquadres e regulamentos, mas é nítido o embaraço humano em lidar com a moral e ética da nudez.

As normas e regras estabelecidas por cada sociedade esbarram no inevitável transbordamento da transgressão, na vivência do proibido, e mesmo na codificação de receptividade. Certa vez, ouvi de uma amiga médica, em meio às éticas do setor e as situações daí geradas, um desabafo curioso: ela se dizia agredida/invadida pela nudez muitas vezes intempestiva e imediata de alguns clientes. Eu ri, argumentei “Ué!?... pode-se tentar um diagnóstico vendo a lesão...”, ao que ela rebateu “Sim, mas não dessa forma!!” Na contrapartida – e trazendo o corpo masculino ao centro do palco – organizam-se festas femininas fechadas com strip-tease masculino, com direito a gritinhos e exclamações de excitação, de tocar o corpo do protagonista, sendo esta uma plateia que deseja a nudez ostensiva e desinibida.

O leque de variantes parece sem fim, atiçando o imaginário humano. Em seu filme Exotica (1994), Atom Egoyam figura uma casa noturna onde as moças dançam sobre as mesas, cada uma representando um fetiche clássico. Estão ali para serem apreciadas, não podem ser tocadas pelos fregueses.

Tornando a desembarcar abaixo do Equador, mais precisamente nos centros urbanos mais populosos e influentes na cultura regionalsurgem mais incongruências. Nosso Brasil varonil lança com sucesso amplo a tanga, paródia da antiga vestimenta indígena, constituída de cordinhas sustentando minúsculos pedaços de tecido, a cobrir pontos estratégicos do corpo feminino. Para escândalo dos moralistas de plantão, um número tão inesperado quanto suficiente das moças da sociedade adere à novidade, e se antes apenas às vedetes era reservado expor com mais generosidade suas formas, agora estas estão liberadas para as paladinas do movimento. 

Seja como for, experiência por experiência de cada cabeça, vejo uma nítida dicotomia entre avanços e retrocessos, de mão dadas e atrelados em arestas absurdas, plenas em desvarios éticos&estéticos. Se nosso país é tido e havido como uma espécie de bobo da corte internacional, algo “para não ser levado a sério”, ao mesmo tempo ele mesmo é capaz de gerar confissões de admiração daqui e dali. Somos “os inventores do fio dental” para as mulheres – e o mundo ocidental agradece por desnudarmos nossas mulheres e excitarmos a fantasia universal... A má, indefectível e velha hipocrisia, pois, assim cristalizada. Eles – a civilização – continuam sérios, puros e incólumes. Nós, os bárbaros trogloditas, somos os pervertidos, sátiros, provocadores e possíveis demolidores do crème de la crème por eles construído.

Sutilezas, enfim. Cada um de nós terá suas opiniões e posturas a respeito, e como frisei no início, tentei instigar os pensamentos em torno do tema.

Falidos os paradigmas, desacreditados os ismos – capitalismo, comunismo, socialismo, cristianismo, protestantismo, islamismo, etc., –, desmoronado o patriarcado, o matriarcado e colocada em xeque a família, resta ao mortal comum reordenar suas crenças, em foro íntimo.

Não há como fazer previsões a essa altura. Só espero que não seja necessário agir como o pai de Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968), que desiludido e sem esperanças se desnuda em casa e... volta ao deserto.

 

 

BIBLIOGRAFIA:

 

VEYNE, Paul. História da vida privada: do Império Romano ao ano Mil. Companhia das letras, 1990, 14ª edição.

DUBY, Georges. História da vida privada: da Europa Feudal à Renascença. Companhia das letras, 1990, 10ª edição

ARIÈS, Philippe, & Charier, Roger. História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. Companhia das letras, 1991, 8ª edição

DUBY, Georges, & Aries, Philippe. História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Companhia das letras, 1995, 1ª edição

PROST, Antoine, & Vincent, Gerard. História da vida privada: da Primeira Guerra aos dias atuais. Companhia das letras, 1995, 1ª edição

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Cássio Mattar é psicanalista, autor de vários artigos e ensaios. Inimigo dos juros abusivos, aprendiz do amor, defensor entusiasta da alegria e paulistano que aposta num Brasil melhor.

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