ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 CORPO PRESENTE, CORPO AUSENTE



Foto: Sindri Mendes / Experiência gráfica 4

Claudio Willer

 

 

“A criação artística é a tentativa humana de ultrapassar a barreira entre os dois conjuntos de signos, do corpo e não-corpo”

 

 

Há um ensaio de Octavio Paz, Conjunções e disjunções, sobre a dialética dos signos do corpo e não-corpo, que fornece chaves para um tratamento original do tema do corpo na poesia. Trata do antagonismo entre palavra, linguagem verbal, e corpo; o abstrato e o concreto; a ‘cara’ e o ‘cu’, os signos do corpo e não-corpo. Comenta a expressividade da cara contraposta à inexpressividade do baixo corporal.

A proposta de Paz é ousada: traçar uma história geral das relações entre corpo e espírito, vida e morte, o sexo e a cara; ao mesmo tempo, mostrar o caráter trans-histórico desse jogo de polaridades, assim retomando as cosmovisões de princípios opostos e o pensamento analógico. Chega a afirmar que essa polaridade persiste:

 

Desde que o homem é homem [...], desde que a espécie se ergueu e adotou a posição ereta. Nesse sentido, nossa condição não é histórica: a dialética dos princípios do prazer e da realidade se desenvolve numa zona não atingida pelas mudanças sociais dos últimos oito mil anos. (Paz 1979, p. 17)

 

A criação artística é a tentativa humana de ultrapassar a barreira entre os dois conjuntos de signos, do corpo e não-corpo:

Deste ponto de vista, a arte é o equivalente moderno do rito e da festa: o poeta e o romancista constroem objetos simbólicos, organismos que emitem imagens. Fazem o que faz o selvagem: convertem a linguagem em corpo. As palavras já não são coisas  e, sem deixar de ser signos, se animam, ganham corpo. O músico também cria linguagens corporais, geometrias sensíveis. Ao contrário do poeta e do músico, o pintor e o escultor fazem do corpo uma linguagem. (idem, p. 18)

 

A argumentação de Paz expõe a natureza não-corporal, por ser abstrata, da linguagem verbal. E leva a uma conclusão: que, para ser corporal, para reintegrar-se à corporeidade, a palavra tem que ser não-significativa; ou, reciprocamente, que a relação de significação sanciona a separação entre linguagem e corpo – por requerer a separação entre os signos e seus referentes.

É o que se vê nos comentários, nesse livro, sobre o tantrismo, examinado, à luz da “dialética dos signos”, como resultado de um movimento, do budismo inicial, desencarnado, a rituais eróticos; por isso, oposto àquele que vai do cristianismo primitivo ao ascetismo protestante.

Há, nessa doutrina ou modalidade de culto, em sua variante da “mão esquerda”, que inclui a prática do maithuna, “o coito público, de vários pares ou de apenas um diante dos devotos” (idem, p. 73), uma dupla inversão de símbolos. De um lado, metáforas da união de opostos, do yin e do yang, ou do macro e microcosmo, são tomadas “in concreto”, ao pé da letra (como também observou  Eliade, a propósito de rituais sexuais e orgiásticos em geral, em uma diversidade de povos). Tendem “a interpretar e a realizar literalmente os símbolos”, promovendo a reintegração ao transcender a dualidade:

 

A cópula é real e verdadeiramente a união do samsära e do nirväna, a perfeita identidade entre a existência e a vacuidade, o pensamento e o não-pensamento. Maithuna: dois em um, o lótus e o raio, a vulva e o falo, as vogais e as consoantes, o lado direito do corpo e o esquerdo, o lá em cima e o aqui em baixo. (idem, p. 73)

 

Interessam diretamente à presente argumentação suas observações sobre a linguagem tântrica, “crepuscular”. Consiste em “um idioma em que cada palavra tem quatro ou cinco sentidos ao mesmo tempo” (idem, p. 85); um “hermetismo erótico-metafísico” (idem, p. 78). Por isso, de modo consequente, observou que “essa linguagem é essencialmente poética e que obedece às mesmas leis da criação poética”. Corresponde a “manifestações verbais da analogia universal em que se funda a poesia.” (idem, -p. 79)

 Sua manifestação mais importante é o mantra, a recitação de fonemas não-semantizados; uma linguagem não-significativa, ou com um sentido secreto, acessível apenas ao iniciado. Na tradição literária ocidental, seus correlatos seriam as glossolalias na obra de poetas do século XX: Artaud, Khlébnicov, Michaux, Huidobro, Schwitters.

Cabe lembrar que o termo “poesia crepuscular” chegou a ser sinônimo de simbolismo, ou daquela poesia simbolista que se caracterizou por ser vaga, propositadamente obscura. Paz, contudo, faz um paralelo mais amplo e mais ousado: os textos tântricos

 

[...] também são manifestações universais da analogia universal em que se funda a poesia. Esses textos estão regidos pela mesma necessidade psicológica que levou nossos poetas barrocos a construir um idioma dentro do idioma espanhol, a mesma que inspira a linguagem de Joyce e a dos surrealistas: a concepção da escrita como o duplo do cosmos. (idem, p. 79)

 

Linguagem do corpo: a interpretação simbólica no lugar da leitura literal e da interpretação racional na tradição protestante; as linguagens não-significativas, cifradas. Com uma recíproca, sugerida por Paz: a expressão poética, não-discursiva, é, em si, linguagem do corpo, ao suprimir, perturbar ou subverter a relação de significação; ao apresentar as qualidades do dialogismo, da polivalência, da expressividade anteposta à referencialidade; e, por que não, ao ser deliberadamente obscura.

Projetando o que Paz expõe e sugere em Conjunções e disjunções, pode-se reler e reinterpretar a poesia de Baudelaire como expressão do conflito, ou de uma contradição profunda entre linguagem e corpo. E a de Rimbaud como exacerbação ou radicalização desse confronto, em seus poemas mais sombrios; e como manifestação de uma linguagem corporal em seus poemas herméticos, criados após a leitura de obras de alquimia e ocultismo que o haviam impressionado; e nas prosas poéticas, com suas ambiguidades, seus duplos sentidos e tentativas de confundir o leitor, com a deliberada destruição da relação de significação. Rimbaud seria, então, um poeta integralmente erótico, independentemente do tema de cada poema ou prosa poética.

Resta examinar como o próprio Paz, que, além de ensaísta, foi um dos principais poetas do século XX, projetou essa visão das relações entre palavra e corpo em sua poesia.

Conjunções e disjunções foi escrito durante o tempo em que morou na Índia, na então Nova Delhi, como embaixador mexicano. Do mesmo período e sob a mesma inspiração são algumas de suas criações literárias de maior envergadura. Uma delas, El mono gramático, prosa poética alternando-se com ensaio e crônica, também sobre a linguagem. Outra, Ladera este (Ladeira leste), com alguns de seus mais importantes poemas, como Blanco – aqui traduzido por Haroldo de Campos como Transblanco[1].  Esse poema é inteiramente estruturado em polaridades, encontros ou confrontos de categorias opostas:

 

Não e Sim

Juntos

Duas sílabas amorosas

 

Se o mundo é real

A palavra é irreal

Se é real a palavra

O mundo

É a brecha o esplendor o remoinho

Não

As desaparições e as aparições

Sim

A árvore dos nomes

Real irreal

São palavras

Ar som são nada

A fala

Irreal

Dá realidade ao silêncio (etc – apud Suzuki 1987, p. 167)

 

É como se, no modo sintético, através de imagens poéticas, dissesse o mesmo que expôs em Conjunções e disjunções. E também em outros dos poemas de Ladera este. Um deles, extenso e dividido em partes, é intitulado Maithuna, designando especificamente o ritual tântrico e com a mesma estruturação em opostos. Outro, Custódia, chega a ser uma tentativa de ilustrar o tema, de criar, não propriamente um ideograma, mas um emblema ou caligrama erótico:                    

 

O nome

Suas     sombras

O homem          A fêmea

A maça                  O gongo

A i                                    O o

A torre                              O poço

O índice                                   A hora

O osso                                     A rosa

O orvalho                                 A poça

O veio d’água                 A chama

O tição                      A noite

O rio                  A cidade

A quilha             A âncora

O fêmeo  A macha

O homem

Seu corpo de nomes

Teu nome em meu nome Em teu nome meu nome

Um frente ao outro um contra o outro um em torno ao outro

O um no outro

Sem nomes

 

 

 

                                                                                               (Paz 1975, p. 127) [2]

 

 

BIBLIOGRAFIA:

ELIADE, Mircea, História das Crenças e das Idéias Religiosas; quatro volumes; tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 1979;

PAZ, Octavio, Conjunções e Disjunções. Trad. Lúcia Teixeira Wisnik. São Paulo, Perspectiva: 1979;

PAZ, Octavio, Ladera Este, México D. F: Joaquín Mortiz, 1975;

PAZ, Octavio, O Arco e a Lira, tradução de Olga Savary, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982;

PAZ, Octavio, Presencia y presente: Baudelaire crítico de arte, em El signo y el garabato, Mexico D. F, Joaquín Mortiz, 1975.

SUZUKI Jr. e Nelson Ascher, organizadores, Folhetim: poemas traduzidos, São Paulo: Folha de São Paulo, 1987;

 

Nota explicativa: este texto é um fragmento do ensaio inédito Alguns Poetas do Corpo, de Baudelaire aos Contemporâneos: Misticismo, Elevação, Degradação que será publicado em livro

 

Notas:

[1] Deixei de perguntar a Haroldo porque ele havia sacrificado a polissemia do título do original – “blanco”, em espanhol, é branco, e também alvo, inclusive no sentido do alvo de um tiro. Traduzir por “Alvo” teria, obviamente, conservado esse duplo sentido.

[2] Tradução de Claudio Willer 

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Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor. Publicações recentes, Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio; Geração Beat, ensaio; Estranhas Experiências, poesia. Traduziu Lautréamont, Ginsberg e Artaud. Doutor em Letras na USP, onde fez pós-doutorado. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about

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