ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 MAS QUE SEJA INFINITO



Foto: Sindri Mendes / Performance: Josefina Calvo

Verlaine Freitas

 

“A beleza, tomada filosoficamente como o prazer que sentimos devido à harmonia das formas, das cores e dos volumes, possui uma concretude e um significado subjetivo próprios, diferentes da atitude do consumo”

 

 

Na crítica que se costuma fazer ao culto narcisista do próprio corpo, tal como este se fez presente nas últimas décadas, tornou-se quase lugar-comum apontar para o contraste muito claro com o papel que a corporeidade assumia nas doutrinas cristãs, particularmente na era pré-moderna. Em vez de ser um mero receptáculo para uma alma cujos valores eram infinitamente mais elevados, temos agora um objeto de uma série de rituais tomados não apenas como obsessivos, mas também altamente ilusórios, que transformam nossa forma física em objeto de devoção quase religiosa. Nesse cenário, quero ressaltar especialmente a crítica que se dirige ao que seria uma ilusão de todo esse investimento narcísico, fundada na ideia de que, ao contrário dos valores mais elevados não apenas da alma imortal — como também da cultura em suas formas mais nobres, a saber: arte, ciência, filosofia e religião —, o corpo está sujeito às vicissitudes da natureza, por sua vulnerabilidade às doenças e, obviamente, à inevitabilidade da passagem do tempo, ou seja, à velhice. Dessa perspectiva, o prazer com nossa dimensão somática seria tão frágil e efêmero como tudo aquilo que é da ordem da natureza biológica. — De meu ponto de vista, este argumento é essencialmente inválido.

Inicialmente, é preciso dizer que virtualmente qualquer coisa pode ser objeto de consumo, no sentido que Jean Baudrillard conferiu a esse termo, ou seja, em que algum objeto é valorizado, não por suas características e propriedades concretas, não por seu modo peculiar com que responde a um desejo simbolicamente estruturado, mas sim pelo fato de ser mero suporte, um signo, de diversos outros significados por demais abstratos e pouco definidos, como status, jovialidade, alegria, feminilidade etc.

Na medida em que é consumido, o corpo, como todos os outros objetos, perde muito de sua substancialidade, tornando-se, de fato, fonte de um prazer tão vazio quanto, no final das contas, decepcionante. Em virtude dos efeitos da passagem do tempo, temos o consumo exacerbado não apenas de produtos como cremes de beleza e rituais de promoção da saúde em geral, mas de todo um imaginário da corporeidade como alvo de ações específicas de sua manutenção, dirigidas a aspectos artificialmente construídos e sedimentados em virtude das ofertas de bens e serviços no mercado. Nesse último aspecto, é significativo o fato de que o corpo, ao ser tomado como algo a ser cuidado devido a seu envelhecimento, é visto muito mais como fonte de uma ameaça à nossa felicidade, do que fonte de prazer por si mesmo.

Toda essa crítica da atitude consumista, entretanto, além de poder ser aplicada, em vários de seus aspectos, a qualquer tipo de objeto, não dá suporte ao argumento que apontei inicialmente. O ponto de apoio mais significativo deste não é propriamente o esvaziamento do objeto de desejo como apenas um signo de outra coisa, mas sim a impossibilidade concreta de o corpo manter-se como um objeto de desejo significativo, em virtude de sua fragilidade tanto presente quanto ao longo do tempo. Essa é uma diferença fundamental, devido ao fato de que a crítica do corpo como objeto de consumo deixa em aberto claramente a possibilidade de que ele seja alvo de um investimento afetivo mais concreto, simbolicamente refletido e consciente, gerando uma satisfação por aquilo que pode nos oferecer concretamente por sua beleza, vigor e saúde, e não apenas por nos proporcionar status ou pertencimento a um grupo social que compartilha alguma idiossincrasia.

Essa distinção entre consumir e se apropriar concretamente de um objeto, na verdade, pode ser dita em relação a virtualmente qualquer coisa. Alguém pode perfeitamente comer um sanduíche da rede McDonald's tendo como motivação mais substantiva o prazer que sente com seu sabor, sem dar a menor importância ao modo com que tais produtos são propagandeados, ou seja, pela veiculação ostensiva de um modo jovial, alegremente festivo e, sobretudo, conectado ao universo da cultura norte-americana. De forma análoga, gostar de  cultivar a beleza do próprio corpo não significa ter uma atitude consumista, em virtude do fato de que a beleza, tomada filosoficamente como o prazer que sentimos devido a harmonia das formas, das cores e dos volumes, possui uma concretude e um significado subjetivo próprios, diferentes dessa atitude do consumo. Podemos dizer que a própria beleza pode ser consumida, no sentido de que, por exemplo, alguém compra um carro importado que, devido a sua beleza, torna-se signo de status e distinção perante as outras pessoas. Desse modo, a beleza do próprio corpo pode ser índice de um prazer,  não com as próprias formas, mas sim pelo fato de conferir a satisfação de pertencimento a um seleto grupo de pessoas que cultivam um suposto "bom gosto" e refinamento da sensibilidade. Nesse sentido, a beleza equivaleria, como suporte de significados, a diversas outras coisas, que podem igualmente veicular significados, valores e atitudes, mas ela não é, por si mesma, índice de atitude de consumo.

 

Efemeridade

 

Aquele argumento inicial, ao contrário dessa abertura a uma possibilidade concreta de apreciação do corpo, toma o desejo em relação a este como algo ilusório em virtude da dimensão concreta de efemeridade de seu objeto. Dito de forma bem direta e sucinta: uma vez que seu objeto é frágil e finito, logo o desejo é ilusório e tende à decepção.  Em contraste com isso, eu digo: a vida é efêmera, e isso não a torna menos desejável. A juventude e a beleza cristalina da pele, a força e robustez dos músculos, a agilidade dos reflexos, tal como a lucidez do raciocínio também marcam momentos de nossa existência, não nos acompanham indefinidamente do nascimento à morte, e também não são menos dignos de nossa afeição e investimento afetivo. Para que a satisfação de nosso desejo seja substantiva, duradoura e “verdadeira”, não é necessário que seu objeto garanta, factualmente, um suporte material indestrutível, “eterno” ou algo semelhante. Necessário é que em cada momento de nossa existência perdure a sobriedade com que percebemos não apenas sua mutação em suas vicissitudes, mas também tenhamos em mente que muito do vigor da própria vida consiste nos seus ciclos que se alternam indefinidamente.

Que se tenha apenas uma infância, apenas um período de adolescência, que a maturidade de nossos juízos alcance um ápice para inapelavelmente dirigir-se à senilidade é um índice do que a vida precisa para nutrir a si mesma. Não faria sentido fantasiar que vivêssemos mil anos para amadurecermos “muito mais” nossa perspectiva de mundo. A realidade de que temos um ciclo bem menor do que esse deve nos instruir, na verdade, a perceber o quanto é parte substancial de nossos desejos o fato de que nossas satisfações são momentâneas.

Cada fase, período e momento da vida solicita um determinado tipo de investimento afetivo que pode ser — e eu diria que inevitavelmente o será em alguma medida — insípido, ridículo e mesmo incompreensível da perspectiva de outro — e isso independente das possibilidades objetivas de satisfação conferidas pela realidade, seja ela de nosso próprio corpo ou das opções de prazer que o mundo nos oferece. Paixões ardentes em relacionamentos momentâneos e sem compromisso podem ter perfeitamente todo o apelo para alguém em uma época da vida, sem que isso necessariamente resulte em decepção e arrependimento quando, posteriormente, esta mesma pessoa passe a cultivar o gosto por relacionamentos estáveis e com profunda cumplicidade mútua. Da mesma forma, toda a exuberância corporal pode ser, sim, objeto de um desejo significativo sem se mesclar a nenhuma desilusão, conquanto seja usufruída como um ingrediente da mutabilidade indefinida do viver. O que torna ilusório o desejo não é a efemeridade de seu objeto, mas sim a fantasia metafísica de um prazer lastreado por algo que transcenda a efemeridade da vida.

 

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Verlaine Freitas é professor de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Filosofia pela UFMG, pós-doutorado pela University of Windsor, Canada. Autor do livro "Adorno e a arte contemporânea"; organizador do livro "Káthasis. Reflexos de um conceito estético"; autor de vários artigos sobre Filosofia e Psicanálise.

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