ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 WALT WHITMAN



Tela de Frederic Leigthon

 

 

EU CANTO O CORPO ELÉTRICO

 

1

 

Eu canto o corpo elétrico.

 

As legiões daqueles a quem amo me envolvem e são por mim envolvidas,

 

Pois não me largarão enquanto eu não for com eles e atendê-los,

 

E purificá-los e vigorizá-los inteiramente com o vigor da alma.

 

Há quem duvide de que todo aquele que perverte o corpo

 

esconde a si mesmo?

 

E de que todo aquele que profana os vivos seja tão perverso quanto quem profana os mortos?

 

E se o corpo não valer tanto quanto a alma?

 

E se o corpo não for a alma, o que será a alma?

 

2

 

O amor ao corpo do homem ou da mulher rejeita explicação, o simples corpo rejeita explicação,

 

O do homem é perfeito e perfeito é o corpo da mulher

 

A expressão da face rejeita explicação,

 

Mas a expressão de um homem bem feito aparece não apenas em seu rosto,

 

Está em seus membros e articulações, está curiosamente nas articulações de seus pulsos e quadris,

 

Em seu andar, na postura do pescoço, no fletir da cintura e dos joelhos, que as vestes não escondem,

 

A forte e suave qualidade que ele tem transluz através do algodão e da flanela;

 

Vê-lo passar comunica tanto quanto o melhor poema, talvez mais,

 

E te demoras a contemplar seu dorso, a parte posterior de seu pescoço e as laterais dos ombros.

 

O espernear e a exuberância dos bebês, os seios e as cabeças das mulheres, as dobras de suas vestes, sua elegância quando passamos pela rua, o contorno de suas formas descendentes,

 

O nadador desnudo na piscina, visto como se nadando através do

 

brilho transparente e verde, ou volta a face para cima ou gira

 

suavemente para cima e para baixo no deslocar da água,

 

A flexão para frente e para trás dos remadores em seus barcos a remo — o cavaleiro em sua sela,

 

Moças, mães, governantas, em todas as suas atividades,

 

O grupo de trabalhadores sentado ao meio-dia com suas marmitas abertas, e as esposas esperando,

 

A mulher acalentando a criança — a filha do fazendeiro no jardim ou no curral das vacas,

 

O moço que capina o milharal —  o condutor de trenó conduzindo seis cavalos através da multidão,

 

A luta dos lutadores, dois jovens aprendizes, já robustos, saudáveis, de boa índole, ali do lugar, lá fora no terreno baldio, ao entardecer, já depois do trabalho,

 

Os paletós e os bonés atirados ao chão, o enlace de afeto e resistência,

 

A pega por cima e a pega por baixo, os cabelos amarfanhados a lhes tapar os olhos;

 

A marcha dos bombeiros em seus uniformes, o movimento dos músculos masculinos através das calças bem talhadas e dos cinturões,

 

A lenta volta do incêndio, a pausa quando a sineta volta a soar de novo, os ouvidos em alerta,

 

As atitudes naturais, perfeitas, variadas — a cabeça inclinada, o pescoço curvado, a contagem,

 

A esses assim eu amo — deixo-me levar, corro livremente, estou no seio da mãe com a  criancinha,

 

Nado com os nadadores, luto como os pugilistas, marcho em forma com os bombeiros, e paro, presto atenção e conto.

 

3

 

Conheço um homem, um fazendeiro comum — pai de cinco filhos;

 

E neles estavam os pais de filhos — e neles estavam os pais de outros filhos.

 

Era um homem de extraordinário vigor, calmo, uma pessoa bela,

 

A forma de sua cabeça, o amarelo pálido e branco de sua barba e dos cabelos, e a expressão imensurável de seus olhos negros — a plenitude e extensão de suas maneiras,

 

Gente assim é que eu gostava de visitar — era também uma pessoa sensata,

 

Um metro e oitenta de altura, mais de oitenta anos de idade — os filhos eram robustos, sadios, barbudos, queimados de sol e vistosos,

 

Eles e as irmãs o amavam — todos os que o viam o amavam;

 

Não o amavam por tolerância — amavam-no com um sentimento pessoal;

 

Ele só bebia água — seu sangue escarlate se mostrava através da pele amorenada de sua face;

 

Caçava e pescava com frequência — ele mesmo velejava seu barco – tinha um muito bom, que lhe fora presenteado por um carpinteiro-naval — possuía caçadeiras que lhe foram dadas por pessoas que o amavam;

 

Quando ele vinha caçar e pescar com seus cinco filhos e muitos netos, era fácil considerá-lo o mais belo e vigoroso do grupo.

 

Qualquer um gostaria de ficar muito tempo em sua companhia — sentar-se a seu lado no barco, com seus corpos se tocando.

 

4

 

Percebo que estar com aqueles de quem gosto é o bastante,

 

Ficar em companhia deles pelo resto da noite é o bastante

 

Ser rodeado pela carne bela, curiosa, palpitante, sorridente é o bastante,

 

Passar entre eles, ou tocar todos eles, ou  descansar meu braço mesmo bem de leve em torno ao ombro dele ou dela por um momento — o que significa isto, então?

 

Não exijo nenhum deleite maior que este — nado nele, como num mar.

 

Há algo em se permanecer junto a homens e mulheres, a olhar para eles, sentir-lhes o contato e o odor, que agrada tanto a alma,

 

Tudo agrada a alma — mas isso lhe agrada bem.

 

5

 

Eis a forma da mulher;

 

Uma divina auréola se desprende dela da cabeça aos pés,

 

Atrai com furiosa e incontestável força!

 

Sou arrastado por seu hálito como se não passasse de um simples

 

vapor —  tudo se desfaz em torno menos eu e ela,

 

Livros, arte, religião, tempo, a terra visível e sólida, a atmosfera e as nuvens, e tudo o que esperamos do céu ou tememos do inferno, agora se desvanece;

 

Filamentos insanos, rebentos desgovernados dela emanam — a reação igualmente ingovernável.

 

Cabelos, seios, quadris, curva das pernas, mãos que tombam negligentes, tudo difuso – eu também difuso;

 

Fluxo ferido pelo refluxo da maré e refluxo ferido pelo fluxo — carne amorosa que se dilata e dói deliciosamente;

 

Ilimitados e límpidos jatos de amor, quentes e enormes, trêmula  geleia de amor, branca ejeção e delirante suco;

 

Noite nupcial do noivo adentrando seguro e suave pela prostrada aurora;

 

Ondulando no complacente e desejoso dia,

 

Perdido na fenda apertada da carne tenra do dia.

 

Eis o núcleo — assim como a criança nasce da mulher, o homem nasce da mulher;

 

Eis o banho do nascer — o surto do pequeno e do grande, e novamente a saída.

 

Não se envergonhem, mulheres – seu privilégio engloba o resto, e é a saída para o resto;

 

Vocês são as portas do corpo, e são também as portas da alma.

 

A mulher contém todas as qualidades e sabe condicioná-las — está em seu lugar e movimenta-se em perfeito equilíbrio;

 

É tudo quanto está devidamente velado, tanto o passivo quanto o ativo;

 

Feita para conceber tanto filhas quanto filhos, e tanto filhos quanto filhas.

 

Quando vejo minha alma refletida na natureza,

 

Quando vejo através da neblina o Ser de inexprimível integridade e beleza,

 

Vejo a cabeça inclinada e os braços cruzados sobre o peito – estou vendo a Mulher.

 

6

 

O homem não é menos alma, nem é mais — também ele está em seu lugar;

 

Também possui todas as qualidades — é ação e poder;

 

Nele está o ímpeto do universo conhecido;

 

O desdém lhe assenta bem, o apetite e o desafio também lhe assentam bem;

 

As paixões mais amplas e selvagens, deleites que são extremos, dores que são extremas,lhe assentam bem – o orgulho foi feito para ele,

 

O orgulho explosivo do homem é acalmador e excelente para a alma;

 

O conhecimento lhe convém — ele sempre o aprecia — toma todas as coisas como um teste de si mesmo;

 

Seja qual for a busca, seja qual for o mar e a vela, é afinal aqui apenas que ele atira as sondas;

 

(Onde podia atirá-la senão aqui ?)

 

O corpo do homem é sagrado, e sagrado é o corpo da mulher;

 

Não importa quem seja, é sagrado;

 

É um escravo? É um desses imigrantes de face sombria que acabam de chegar ao cais?

 

Cada um deles pertence a este ou a outro lugar, tanto quanto os ricos — tanto quanto tu;

 

Cada homem ou mulher tem seu lugar no desfile.

 

(Tudo é desfile;

 

O universo é um desfile, com seu movimento perfeito e ritmado.)

 

Conheces tanto a ti mesmo para chamares de ignorante ao mais humilde deles ?

 

Achas que tens direito a um bom lugar, e que ele ou ela não tenha esse direito ?

 

Achas que a matéria se condensou de seu estado fluido — que o solo esteja na superfície, e as águas corram e a vegetação germine,

 

Apenas para ti, e não para ele ou para ela ?

 

7

 

O corpo de um homem em leilão,

 

(Pois antes da guerra constumava ir ao mercado de escravos para assistir aos leilões,)

 

Ajudo o leiloeiro, o desleixado mal conhece o seu ofício.

 

Cavalheiros, vejam esta maravilha!

 

Sejam quais forem os lances dos licitantes, jamais serão suficientemente altos para ele;

 

Para recebê-lo o globo se preparou durante quintilhões de anos, sem um animal ou planta;

 

Para ele os ciclos recorrentes rolaram unívocos e perfeitos.

 

Nesta cabeça o instigante cérebro,

 

Nele e abaixo dele a saga dos heróis.

 

Examinem estes membros, vermelhos, negros ou brancos — são tão destros em tendões e nervos,

 

Vamos descobri-los para que os possam ver.

 

Sentidos aguçados, olhos vivazes, garra, determinação,

 

Camadas de músculos peitorais, pescoço e espinha flexíveis, carne rija, braços e pernas bem proporcionados,

 

E outras maravilhas internas.

 

Dentro corre o sangue,

 

O mesmo sangue de sempre!

 

O mesmo sangue rubro corre!

 

Aqui um coração dilata-se e bombeia, aqui todas as paixões, desejos, alcances, aspirações,

 

Acham que eles não as têm porque deles não se fala nas salas de visita e nos salões de conferências?

 

Este não é apenas um homem — este é o pai daqueles que por sua vez serão pais,

 

Nele está o começo de países populosos e prósperas repúblicas,

 

Dele surgirão vidas imortais sem conta e incontáveis encarnações e júbilos.

 

Como sabem quem virá das descendências de sua descendência através dos séculos ?

 

De quem acham que saíram, se pudessem retroceder através dos séculos?

 

8

 

Um Corpo de mulher em hasta pública!

 

Ela tampouco é apenas ela, mas a fértil mãe de mães;

 

A portadora daqueles que crescerão para se tornarem os companheiros dessas mães.

 

Já apreciaram alguma vez o Corpo da mulher ?

 

Já apreciaram alguma vez o Corpo do homem?

 

Não veem que são exatamente os mesmos, em todas as nações e tempos, em qualquer parte da terra ?

 

Se algo é sagrado, o corpo humano é sagrado,

 

E a glória e a doçura do homem o emblema da humanidade imaculada ,

 

E no homem ou na mulher um corpo são, forte, musculoso, é mais belo do que a mais bela das faces.

 

Já viram o insensato que perverteu o próprio corpo? ou a insensata que perverteu o próprio corpo dela?

 

Pois eles não se escondem, não podem esconder-se a si mesmos.

 

 9

 

Ó meu corpo! Não ouso fugir ao que preferes em outros homens e mulheres, nem as preferências de algumas de tuas partes,

 

Creio que tuas preferências se erguerão ou cairão com as preferências da alma, (e que elas são a alma,)

 

Creio que as tuas preferências se erguerão ou cairão com meus poemas — e que elas são poemas,

 

Poemas do homem, da mulher, da criança, do jovem, da esposa, do marido, da mãe, do pai, do rapaz, da moça,

 

Cabeça, pescoço, cabelo, ouvidos, lóbulos e tímpanos,

 

Olhos, órbitas, íris, sobrancelhas, e o acordar e adormecer das pálpebras,

 

Boca, língua, lábios, dentes, céu da boca, maxilares, e as articulações,

 

Nariz, narinas, e o septo nasal,

 

Faces, têmporas, testa, queixo, garganta, nuca, fossa jugular,

 

Ombros fortes, barba viril, omoplatas, espáduas, e a ampla arcada do peito,

 

Bíceps, axilas, o pilão do cotovelo, ante-braço, tendões, os ossos do braço,

 

Pulso e as articulações do pulso, a mão, a palma, os nós dos dedos, polegar, indicador, as articulações, as unhas,

 

O amplo arcabouço do peito, os cabelos ondulados do peito, os ossos do peito, as laterais do peito,

 

Costelas, ventre, espinha dorsal, as junções da espinha,

 

Quadris, cavidades do fêmur, a força dos quadris, as chãs internas e externas, os testículos, a raiz do homem,

 

Forte conjunto de coxas, belos suportes do tronco acima,

 

Filamentos da perna, joelho, rótula, alto da coxa, barriga da perna,

 

Tornozelos, a curva do pé, o peito do pé, os artelhos, as articulações, o tornozelo;

 

Todas as atitudes, todas as simetrias, todas as propriedades do meu ou do teu corpo, de qualquer um, homem ou mulher,

 

As esponjas pulmonares, a bolsa estomacal, os intestinos limpos e saudáveis,

 

O cérebro com suas circunvoluções na caixa craniana,

 

O nervo simpático, as válvulas cardíacas, as válvulas palatais, a sexualidade, a maternidade,

 

A feminilidade e tudo o que é da mulher — e o homem que provém da mulher,

 

O ventre, os seios, os mamilos, o leite materno, as lágrimas, os sorrisos, o pranto, olhares amorosos, perturbações do amor e excitações,

 

A voz, a dicção, a linguagem, o murmúrio, os gritos altos,

 

Comida, bebida, pulso, digestão, suor, sono, passeios, natação,

 

O equilíbrio dos quadris, os saltos, as flexões, os braços que se curvam para abraçar as pernas,

 

As modificações contínuas dos movimentos da boca e em torno dos olhos,

 

A pele, o bronzeado que o sol lhe causa, as sardas, o cabelo,

 

A curiosa sensação que se tem quando se apalpa a carne desnuda de um corpo,

 

Os círculos recorrentes da respiração, aspirando e expirando,

 

A beleza da cintura, e logo dos quadris, e ainda para baixo em direção aos joelhos,

 

Os pequenos glóbulos vermelhos dentro de ti ou de mim — os ossos e a medula dentro deles,

 

A fantástica conscientização da saúde;

 

Ó eu digo que estas não são apenas partes e poemas do Corpo, mas também da Alma,

 

Digo mesmo que elas são a própria Alma!

 

Tradução: Ivo Barroso. Fonte: Gaveta do Ivo

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