ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

PEGADAS DO LOBISOMEM WILSON BUENO


Luiz Carlos Pinto Bueno

Boa noite a todos. Inicialmente eu gostaria de agradecer a equipe promotora e organizadora deste evento, especialmente os poetas Ricardo Corona, Joana Corona e Eliana Borges, pelo brilhantismo do acontecimento e pela dedicação e carinho com que estão tratando dos temas, particularmente no que concerne ao Wilson Bueno.

 

Há muito conversa possível de ser levada sobre o Wilson. De várias perspectivas sobre a obra, sobre a pessoa e sobre a história. Aqui, hoje, falarei sucintamente, principalmente, sobre a sua vida, procurando iluminar as conexões prováveis entre o homem e a sua obra, até o momento em que ele, definitivamente, declara ser escritor e opta por viver de literatura.

 

Falo da posição de parente próximo e de amigo, que com ele conviveu aproximadamente 35 anos. Somos primos pelos dois lados da família e, meus pais, foram seus padrinhos de batismo. Mas falo também a partir da psicanálise, quando o olhar busca identificar na sua história, os traços marcantes da sua linguagem, da sua língua, da sua matéria.

 

Primeiro neto homem, do nosso avô paterno Emídio Pinto Bueno, herdou deste, os traços essenciais do seu caráter: O pioneirismo e a coragem do desbravador do sertão do norte novo paranaense, onde atuou como lavrador, fazendeiro, delegado, comerciante. Com pouco tempo de escola, tornou-se autodidata em todas as áreas que trabalhou. Criou fama como espetacular contador de histórias vividas por ele no sertão.

 

O vovô Emygdio era descendente por parte de pai, de família mineira, Barão de Cocais, de origem portuguesa e por parte de mãe, de uma mulher cabocla. A avó Benedita era, também, de origem portuguesa, mineira. Moravam em Jaguapitã.

 

O Wilson nasceu em terras que pertenciam aos nossos avôs, na água do Salto, região rural de Jaguapitã, pequena cidade do interior do Paraná, em 1949, quando a cidade era apenas um pequeno amontoado de casas de madeira retirada da mata. O tio Valdomiro, seu pai, empreendia as atividades necessárias para manter a propriedade produzindo, numa pequena porção da terra, já que a maior parte da área, naquela época, era composta de mata nativa, habitada por pássaros e animais selvagens.

 

Quando tinha três anos de idade seus pais mudaram para a parte urbana de Jaguapitã, cujo entorno, era ainda um sertão, dividido em pequenas propriedades rurais, sendo devastado por cerras e machados. Viveu ali até os sete anos de idade. Seu pai trabalhou como motorista de caminhão carregando madeira para as serrarias; rica atividade que acompanhava a povoação daquela região.

 

Era comum naqueles tempos a vinda de circos e ciganos, que passavam temporadas na cidade, invadindo os espaços urbanos e privados, provocando estranhamento e curiosidade, com seus comportamentos e vestimentas exóticos. Esses grupos davam um colorido novo ao povoado, agitando aqueles dias da primeira infância do menino curioso, que fazia seu primeiro contato com o mundo externo, carregado de histórias e fantasias. Era comum também, naquela época, a passagem de mascates de origem árabe, com forte sotaque, com suas malas cheias de novidades oriundas das grandes cidades.

 

A tia Cida ficava apavorada com a presença dos ciganos. Mulheres de “má índole” com saias longas e rodadas, brincos, histórias de roubos de crianças, que quando caminhavam pela rua de sua casa faziam-na esconder as crianças: aqui o Wilson já tinha o irmão Nilson. Esse medo só fazia despertar ainda mais a curiosidade do menino.

 

Pelo lado da tia Cida, sua mãe, o Wilson foi muito influenciado pela Dona Custódia Rosa de Cene, que era descendente de índios e portugueses. Esta avó falava o Guarani misturado com o português e contava histórias da mata e de sua vida. Foi ela quem contou para o então menino Wilson, que a sua mãe fora laçada no sertão pelo seu pai, de origem portuguesa. A avó Custódia casou-se com Joaquim Rodrigues de Oliveira. Desta união nasceu a sua Mãe, Seu tio Roseno e mais quatro tios. Foi essa avó que fez o parto do Wilson e, cortou o cordão umbilical, com uma colher em brasa, no rancho onde moravam.

 

Em 1956 meus tios e primos mudaram para Curitiba, cidade fria comparada com Jaguapitã. A viagem foi feita de trem. A primeira casa que habitaram foi a de número 811 da Saldanha Marinho. Pouco tempo depois passaram a morar no número1283 da Rua Augusto Stellfeld, entre a Rua Desembargador Motta e a Presidente Taunay. É nesta casa que o Wilson passará o resto da sua infância. Seu pai conseguiu serviço como motorista de ônibus. A tia Cida aprendeu corte e costura e trabalhava como costureira, para ajudar nas despesas da casa.

 

Foi alfabetizado em Curitiba, estudando na escola da Federação Espírita do Paraná, onde fez o primário. Na Rua Augusto Stellfeld ele conheceu o Luiz Manfredini, morador do número 1274, seu melhor amigo de infância. Nos estudos o Wilson foi brilhante, sendo sempre o melhor aluno e, desde o início, demonstrou facilidade para lidar com as letras.

 

Quando o Wilson tinha aproximadamente nove anos dona Custódia, sua avó adoeceu e, algumas vezes, se deslocou do norte do Paraná, para passar uns tempos em Curitiba, sob os cuidados da tia Cida. Foram momentos então, de grande convivência, novamente, com a vó cabocla. Algumas vezes ele acompanhou seu retorno, de trem, até Londrina, onde morava seu tio Roseno.

 

A tia Cida tinha o hábito de contar os filmes que assistia para os meninos. Contava do seu jeito, alterando um pouco, quando a história não era tão adequada para crianças, mas contava. Essas estórias narradas pela mãe e pela avó acendiam a imaginação do Wilson.

 

Também, conviveu com o avô paterno, que já morava em Curitiba, no final dos anos cinqüenta. Passava horas ouvindo os causos, que o avô contava para a família e os amigos reunidos.

 

Aos nove anos ele começou a ler Monteiro Lobato e outros clássicos infantis.

 

O velho e o mar foi o primeiro livro de boa literatura adulta, que ele conheceu. Os primeiros livros que ele e o Luiz Manfredini, seu amigo, devoraram, foram indicados pelo Jair, um senhor, vizinho, que amava e gostava de discutir literatura. Leu de tudo, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, etc. Cazuza de Viriato Correia despertou-lhe grande paixão.

 

Com dez anos de idade o Wilson e o Luiz produziram seu primeiro jornal. Utilizavam como escritório, a pequena construção nos fundos da casa dos Manfredini. Através da Biblioteca Pública do Paraná, conseguiram um mimeógrafo e, rodaram duas edições de mais de mil exemplares cada uma. Era o começo. As discussões entre os amigos giravam em torno da literatura. Leram escritores norte americanos como Steinbeck, Mark Twain, Jack London, Faulkner, etc.

 

Cursou o ginásio inicialmente no Colégio Estadual Rio Branco e concluiu no Moyses Lupion, sendo sempre o primeiro lugar da sala. Suas redações sempre foram elogiadas pelas professoras, bem como seu comportamento. Sua fama de bom aluno ultrapassava as fronteiras da família, o avô paterno tinha muito orgulho do neto.

 

No início do ginásio já escrevia contos.

 

Decidido a avançar por esse caminho procurou conhecer pessoas ligadas à literatura, estabeleceu laços com Josete, poeta e irmã do Jair seu primeiro guia em literatura. Através dela conheceu outras pessoas. Soube de Dalton Trevisan, que começava a ser reconhecido na época, foi conhecê-lo juntamente com o Luiz; foram presenteados pelo “Novelas nada exemplares” e, foi ainda dessa vez que o Dalton emprestou aos dois o “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria Rilke, lhes dizendo que aprenderiam ali muita coisa.

 

Caminhando pelos espaços literários é que descobriram o Centro de Letras do Paraná. Mas logo se distanciaram desse lugar, por conta da grande caretice e formalidades ali existentes. Era necessário usar terno e gravata para freqüentar o Centro de Letras. Além do que, as discussões ali empreendidas, nada tinham a ver com os seus objetivos na literatura. Chegaram a escrever contos, ironizando a situação do Centro de Letras do Paraná, se deslocando, ainda sem o saber, para a contracultura, sua primeira marca, priorizando desde cedo a liberdade e a autenticidade. Era o início dos anos sessenta, que provocariam verdadeira revolução na cultura.

 

Com catorze anos, já com uma produção literária importante para a sua idade, decidido a viver de literatura, foi procurar o diretor da Gazeta do Povo, Dr. Francisco Cunha Pereira Filho. Queria publicar a sua produção. Apresentou-lhe uma pasta contendo vários textos. O Dr. Francisco leu alguns contos, duvidou serem daquele garoto. Mas propôs definir um tema semanal, para o adolesceste desenvolver e ser publicado aos domingos, assim teria certeza da autoria. O Wilson atingira o objetivo e, assim, começou a escrever para a Gazeta do Povo, no Caderno Literário, onde também publicavam autores como Dalton Trevisan e Serafim França.

 

Com o salário recebido pela publicação dos contos e crônicas passou a investir em livros. Comprou sua primeira máquina de escrever. Começou também a trabalhar no diário da tarde, onde o seu chefe era o Nelson Padrella. Nas horas de folga da escola e do trabalho escrevia e lia.

 

Quando tinha quinze anos conheceu o Jamil Snege, que passaria a ser o seu padrinho literário. Freqüentou a boca maldita. Ia muito ao cinema. Conviveu também com Fábio Campana, Carlos Eduardo Mazza, Aramis Millarch, Nilo do Previdi, João Manoel Simões etc.

 

Aos dezesseis anos mudou-se para a Rua João Batista Trentin, 749, na Vila Tingui, primeira casa própria dos seus pais. Foi nesta casa que a avó Custódia veio a falecer em 1965. Momentos antes da sua morte o Wilson conversava com ela sobre o sertão, sobre Jaquapitã.

 

Ela morreu enquanto o jovem escritor ia até a cozinha pegar um copo de água para ela. Morte tranqüila, deitada na cama, que para ele foi sua grande perda na adolescência.

 

Aos dezessete anos passou a trabalhar, também, na Rádio Globo, como redator do noticiário de futebol e cidades. Conviveu na rádio com Vinicius Coelho, Ayrton Cordeiro, Algaci Túlio, Aroldo Murá, entre outros. Aqui neste momento o jovem escritor já era um intelectual arrojado.

 

Em 1967, após a conclusão do segundo grau, resolveu mudar para o Rio de Janeiro, dando um passo decisivo, na carreira de escritor, que a esta altura já amadurecera o suficiente para ele abrir mão da faculdade.

 

Eram os anos loucos, tempos de desbunde, tempo do Solar da Fossa sob o império da ditadura militar.

 

O Wilson era pop, rock, criação, invenção, MPB. Cinelândia, Penha, Copacabana. Torturado pela ditadura militar, o Wilson era contestação, crítica, infiltração, contaminação, praga, atrevimento, desconforto, abuso. O Wilson era Curitiba, era o novo, o legítimo, o primeiro. Droga, conquistador. Wilson era a volta por cima. Era pioneiro, vencedor.  Era a qualidade, a beleza, autenticidade, era sexo, sofisticação. Era paz, era amor. O Wilson era, saibam todos, sobretudo, mais de vinte anos de psicanálise, apenas, com o João Perci Schiavon.

 

O Wilson é o Mar paraguaio, Meu tio Roseno a Cavalo, Cristal. Nicolau, Pincel de Kyoto...

 

A sua língua é única, com seus matizes especiais, herdados da avó Custódia, dos ruídos da mata, da Água do Salto, das figuras circenses, dos ciganos, dos mascates que passavam por Jaguapitã.

 

O Wilson é a continuação da narrativa das histórias encantadas, contadas por sua avó, pela sua mãe e dos causos do vô Emidio. É, principalmente, a magia, na tradução literária da sua vida intensa, invulgar, conectada ao mundo, onde é protagonista.

 

O Wilson hoje é, por que não, uma lenda.

 

 

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