AUTOAJUDA
Cometeria suicídio
tranquilamente
se eu mesmo pudesse depois limpar a casa,
vestir o cadáver, atender as visitas,
consolar os íntimos,
ir ao enterro e voltar
sozinho e conciliado,
livre de mim
e pronto
pra outra.
REFLEXÃO SOBRE A QUEDA
Eu escavo
o meu abismo
para tornar maior
a queda possível
e
em voo
transformá-la.
RIO ÁRIDO
Um rio desce e sobe
estradas de vidas sóbrias
de cansaço e música. Um rio
corre e para como as carpideiras
(irrompendo larvas) sobre pessoas
dolentes e secas.
O rio verte/veste a cidade.
Saturada.
O rio cala e não se cala.
O rio encontra-se com uns poetas
e se estraçalha. A poesia se perde
nas águas desse rio rúptil
ou se acha.
O rio seca. Seca. A poesia
Continua perdida. Ri
(ó)! Parahyba.
Reciclar a aridez desse rio.
Açude a
b
i
s
s
a
l. Fundo
de poeira e
saudade.
Rio doce em sua cor noturna.
A raspa desse rio/
cidade... o tanto-faz das poeiras.
A vaidade dos jaguaribes
calejados. É.
A cidade se recicla no ciclo de seu viço.
Canil. A cidade se recicla no cio.
Há resquício de brilho. Há
Sequelas de pó. Ventos calados.
Raciocínio de rã angústia
em cada poste de luz ou
cada
vela
apagada
na crise dos dias.
O rio suporta a fome.
No trânsito
alinhavado dois carinhos se dissolvem.
Onde encontrar a exata iluminação
do sorriso?
O povo — no mercado central
— não vive — na lagoa geral — não vive.
Vicia-se na azáfama das horas.
Como a mulher que pedira esmolas
e debulhara sua vida de louca.
Ou como a vendedora de doces
adormecida na lassa noite
da praça da gala.
PRAXIOLOGIA
A poesia
por mim buscada
é verbo de ação,
nunca está
nem chove.
O ESPETÁCULO DAS PERDAS
Há um Velho dentro de mim.
Inquieto como uma criança,
o Velho matuta sobre as abstrações
do tempo: o que poderia ter sido
e o que não foi. Ele rumina
o espetáculo das perdas.
Mastiga um sonho desfeito.
Remexe os cacos do sonho.
Coloca alguns na boca.
Se desfazem, os cacos do sonho.
O Velho quer dormir, não pode.
Inquieto como uma criança.
Dentro de mim um Velho
é tudo quanto há de vivo.
Um Velho e as perdas irredimíveis.
AINDA O CÂNTICO
a minha vinha não pude guardá-la
(não olhes para mim eu ser morena)
“beija-me (sim) com beijos de tua boca”
t’a boca donde saltam cantilenas
e saliva tão doce doce amado
q fez perdida minha vinha e solta
ela carrega nela o seu arado
para limpar o chão de nossa choupa-
na(da) me faz pensar apenas gozo
e gozo ante teu leite e sobre o leito
(“com razão se enamoram de ti”)
tu és gostoso lastro onde me deito
para alegrar-me em ti é q fugi
dos filhos de mamãe (eu fico aqui)
A REVOLTA DO MAR
o mar conhece o sal e sabe as ondas
e mata sua sede em seu suor
o mar todo Narciso se afoga
embrulhado (chorando) em seu lençol
depois desconformado bebe a água
vertida de seus olhos tão a esmo
(quando angustiado o rosto é alga)
e ao bebê-la bebe-se a si mesmo
o mar só não conhece o q de ar
se tece acima dele ou sobre a terra
(trata-se do olvido de outra vida
quando ainda nuvem – atmosfera)
p’r’iss’a maré quer se tragar despida
e cavar em seu corpo uma ferida
DESERTO
Eu faço trança na pedra
(você pensa ser poesia o que digo).
Faço trança
e em seguida dou um nó
no umbigo
da pedra
até me renascer a madrugada
e eu voltar a sonhar
com as possíveis criaturas que sou.
Mas enquanto em meus olhos remanescer
a cegueira
(essa carência de ser homem de carne)
continuarei a trançar a pedra
até encontrar mulher e seus cabelos
e poder desfazer-me da pedra
(essas palavras)
displicentemente.
CERCEAMENTO
o amor é só palavra
(proibida). Mar sem estrada
, tormenta, o amor
o amor é só palavra
(interdita). Areia movediça
, unguento, o amor
o amor é só palavra
(de altura). Asas sem ser pássaro
, só vento. O amor.
SEMÂNTICA
como o sêmen
erupta quente
do falo
da fala
erupta como vento
o sema
o falo goza (e/ou) semeia
a fala semeia (e) glosa.
HERMENÊUTICA
A palavra vem
antes do sentido.
A palavra é ave,
e o sentido voos
improváveis.
PRIMEIRO POEMA DE AMOR
Agora vem o canto das Sereias:
pois o Amor
de tanto ser palavras
abriu-se em bicho
para além da larva
e como bicho
agora se alimenta em minhas veias.
PATÉTICO
Pare o ônibus, Senhor.
Estamos perto.
Cada dia mais perto
do que antes de nascer
já nos espera.
Não nos persegue, Senhor.
Nós a perseguimos.
Pare o ônibus.
E fiquemos aqui,
desolados.
O certo: nos enganamos
quando, sedentos, continuamos.
Então, o ônibus, Senhor,
Pare-o bem logo.
A morte é em nós
como um farrapo
(não é desastre!)
um farrapo grudando-se
no motor do tempo.
ÍXION
Quando grito
o que grito em mim
é nome
de Satãs furiosos de ciúme.
Quando calo
o que se cala em mim
não some,
vibra aceso
como lâmpada
sobre um cume
de uma casa perdida na lembrança
(a cidade sem cor,
janelas mortas)
de choros escondidos de criança,
de criança escondida atrás da porta.
Quando grito o que grita em mim se cala
como calo se guarda ao cós do corpo —
esse inferno, esse inferno e seus gemidos.
Do vazio (e só dele) é que sou dono,
e o vazio é um poço de perigos.
INTERROGAÇÕES
o que sabias da vida
(eu digo da vida, não dos livros),
quando tinhas esses anos?
talvez um filho
filtrara a luz para tuas retinas!
tirando isso, não te concedo mais nada:
não há nada que tenhas bebido
que em mim já não ultrapassara a embriaguez!
nada que tenhas engolido, um pássaro noturno
invadindo solidões adentro
muito adentro do anúncio
de manhãs
nos desafinados silvos dos canários.
sim, meu caro, o meu mundo é dos peixes;
das águas salgadas;
do enjôo em alto mar.
aliás, eu sou como o mar:
insuportável
e belo e
perigoso.
NARCISO ÀS AVESSAS
A água, um dia espelho,
agora está diante dos olhos
da moça diante do rio
como Narciso à margem da fonte:
A moça não se contempla nela.
Mas, agudo olhar introspecto,
mira-se no espelho
de sua própria alma.
E,
enquanto pensa,
é o rio que a si mesmo
nela
se contempla.
E, enquanto o tempo verte
debaixo da ponte
e do corpo da moça
a sua água,
é o rio que nela
para sempre
se afoga.
AGAVE
A poesia e seus estragos
no coração de quem ler
deixam firmes mãos vividas
no desespero da posse.
A poesia – esse estrago –
no coração do leitor
deixa em riste mãos tremidas,
aprendizes remotas do afago.
A poesia – esse extrato –
por sob a casca da leitura
deixa em risco mãos curtidas
na posse, no afago, na loucura.
A poesia – ou é tortura? –
sabe delícias em nós
e nos desata do medo. |