ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ABRAHÃO COSTA ANDRADE

 

 

 

 

AUTOAJUDA

 

Cometeria suicídio

tranquilamente

se eu mesmo pudesse depois limpar a casa,

vestir o cadáver, atender as visitas,

consolar os íntimos,

ir ao enterro e voltar

sozinho e conciliado,

livre de mim

e pronto

pra outra.

 

 

REFLEXÃO SOBRE A QUEDA

 

Eu escavo

o meu abismo

 

para tornar maior

a queda possível

 

e

em voo

transformá-la.

 

 

RIO ÁRIDO

 

 

Um rio desce e sobe

  estradas de vidas sóbrias

    de cansaço e música. Um rio

       corre e para como as carpideiras

     (irrompendo larvas) sobre pessoas

    dolentes e secas.

  O rio verte/veste a cidade.

     Saturada.

        O rio cala e não se cala.

 

O rio encontra-se com uns poetas

   e se estraçalha. A poesia se perde

     nas águas desse rio rúptil

ou se acha.

  O rio seca. Seca. A poesia

     Continua perdida.   Ri

(ó)! Parahyba.

 

     Reciclar a aridez desse rio.

Açude a

              b

                 i

                   s

                     s

                       a

                          l.         Fundo

                                     de poeira e

                                    saudade.

Rio doce em sua cor noturna.

 

 

            A raspa desse rio/

cidade... o tanto-faz das poeiras.

     A vaidade dos jaguaribes

               calejados.  É.

A cidade se recicla no ciclo de seu viço.

   Canil. A cidade se recicla no cio.

 

 

Há resquício de brilho. Há

   Sequelas de pó.  Ventos calados.

      Raciocínio de rã angústia

    em cada poste de luz ou

cada

vela

apagada

            na crise dos dias.

 

O rio suporta a fome.

 

 

                        No trânsito

alinhavado dois carinhos se dissolvem.

    Onde encontrar a exata iluminação

do sorriso?

 

 

O povo — no mercado central

     — não vive — na lagoa geral — não vive.

Vicia-se            na azáfama das horas.

    Como a mulher que pedira esmolas

e debulhara sua vida de louca.

   Ou como a vendedora de doces

adormecida na lassa noite

da praça da gala.

 

PRAXIOLOGIA

 

A poesia

por mim buscada

é verbo de ação,

 

nunca está

 

nem chove.

 

 

O ESPETÁCULO DAS PERDAS

 

Há um Velho dentro de mim.

Inquieto como uma criança,

o Velho matuta sobre as abstrações

do tempo: o que poderia ter sido

e o que não foi. Ele rumina

o espetáculo das perdas.

Mastiga um sonho desfeito.

Remexe os cacos do sonho.

Coloca alguns na boca.

Se desfazem, os cacos do sonho.

O Velho quer dormir, não pode.

Inquieto como uma criança.

Dentro de mim um Velho

é tudo quanto há de vivo.

Um Velho e as perdas irredimíveis.

 

 

AINDA O CÂNTICO

 

a minha vinha não pude guardá-la

(não olhes para mim eu ser morena)

“beija-me (sim) com beijos de tua boca”

t’a boca donde saltam cantilenas

e saliva tão doce doce amado

q fez perdida minha vinha e solta

ela carrega nela o seu arado

para limpar o chão de nossa choupa-

na(da) me faz pensar apenas gozo

e gozo ante teu leite e sobre o leito

(“com razão se enamoram de ti”)

tu és gostoso lastro onde me deito

para alegrar-me em ti é q fugi

dos filhos de mamãe (eu fico aqui)

 

A REVOLTA DO MAR

 

o mar conhece o sal e sabe as ondas

e mata sua sede em seu suor

o mar todo Narciso se afoga

embrulhado (chorando) em seu lençol

depois desconformado bebe a água

vertida de seus olhos tão a esmo

(quando angustiado o rosto é alga)

e ao bebê-la bebe-se a si mesmo

o mar só não conhece o q de ar

se tece acima dele ou sobre a terra

(trata-se do olvido de outra vida

quando ainda nuvem – atmosfera)

p’r’iss’a maré quer se tragar despida

e cavar em seu corpo uma ferida

 

 

DESERTO

 

Eu faço trança na pedra

(você pensa ser poesia o que digo).

Faço trança

e em seguida dou um nó

no umbigo

da pedra

até me renascer a madrugada

e eu voltar a sonhar

com as possíveis criaturas que sou.

Mas enquanto em meus olhos remanescer

a cegueira

(essa carência de ser homem de carne)

continuarei a trançar a pedra

até encontrar mulher e seus cabelos

e poder desfazer-me da pedra

(essas palavras)

displicentemente.

 

 

CERCEAMENTO

 

o amor é só palavra

(proibida). Mar sem estrada

, tormenta, o amor

 

o amor é só palavra

(interdita). Areia movediça

, unguento, o amor

 

o amor é só palavra

(de altura). Asas sem ser pássaro

, só vento. O amor.

 

 

SEMÂNTICA

 

como o sêmen

erupta        quente

do falo

 

 

da fala

erupta como vento

o sema

 

o falo goza (e/ou) semeia

a fala semeia (e) glosa.

 

 

HERMENÊUTICA

 

A palavra vem
antes do sentido.

A palavra é ave,
e o sentido voos
improváveis.

 

 

PRIMEIRO POEMA DE AMOR

 

Agora vem o canto das Sereias:

pois o Amor

de tanto ser palavras

abriu-se em bicho

para além da larva

e como bicho

agora se alimenta em minhas veias.

 

 

PATÉTICO

 

Pare o ônibus, Senhor.

Estamos perto.

 

Cada dia mais perto

do que antes de nascer

 

já nos espera.

Não nos persegue, Senhor.

 

Nós a perseguimos.

Pare o ônibus.

 

E fiquemos aqui,

desolados.

 

O certo: nos enganamos

quando, sedentos, continuamos.

 

Então, o ônibus, Senhor,

Pare-o bem logo.

 

A morte é em nós

como um farrapo

 

(não é desastre!)

 

um farrapo grudando-se

no motor do tempo.

 

 

ÍXION

 

Quando grito

o que grito em mim

é nome

de Satãs furiosos de ciúme.

Quando calo

o que se cala em mim

não some,

vibra aceso

como lâmpada

sobre um cume

de uma casa perdida na lembrança

(a cidade sem cor,

janelas mortas)

de choros escondidos de criança,

de criança escondida atrás da porta.

 

Quando grito o que grita em mim se cala

como calo se guarda ao cós do corpo —

esse inferno, esse inferno e seus gemidos.

 

Do vazio (e só dele) é que sou dono,

e o vazio é um poço de perigos.

 

 

INTERROGAÇÕES


o que sabias da vida
(eu digo da vida, não dos livros),
quando tinhas esses anos?
talvez um filho
filtrara a luz para tuas retinas!

tirando isso, não te concedo mais nada:
não há nada que tenhas bebido
que em mim já não ultrapassara a embriaguez!

nada que tenhas engolido, um pássaro noturno
invadindo solidões adentro
muito adentro do anúncio
de manhãs
nos desafinados silvos dos canários.

sim, meu caro, o meu mundo é dos peixes;
das águas salgadas;
do enjôo em alto mar.

aliás, eu sou como o mar:
insuportável
e belo e
perigoso.

 

 

NARCISO ÀS AVESSAS

 

A água, um dia espelho,
agora está diante dos olhos
da moça diante do rio
como Narciso à margem da fonte:

A moça não se contempla nela.
Mas, agudo olhar introspecto,
mira-se no espelho
de sua própria alma.

E,
enquanto pensa,
é o rio que a si mesmo
nela

se contempla.

E, enquanto o tempo verte
debaixo da ponte
e do corpo da moça
a sua água,

é o rio que nela
para sempre
se afoga.

 

 

 

Definição

 

 

 

amar

é desde

o sangue:

 

da ponta de um dedo

ao avesso do corpo.

 

tutano nervo

palavra alma

osso.

 

amar é dentro de si,

no outro.

 

 

AGAVE

 

A poesia e seus estragos

no coração de quem ler

deixam firmes mãos vividas

no desespero da posse.

 

A poesia – esse estrago –

no coração do leitor

deixa em riste mãos tremidas,

aprendizes remotas do afago.

 

A poesia – esse extrato –

por sob a casca da leitura

deixa em risco mãos curtidas

na posse, no afago, na loucura.

 

A poesia – ou é tortura? –

sabe delícias em nós

e nos desata do medo.

 

 

*

 

Abrahão Costa Andrade é poeta e ensaísta. Nasceu em 1974, na cidade de Areia, interior da Paraíba. Cursou Filosofia na UFPB (1995); realizou mestrado e doutorado em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) É professor na Universidade Federal da Paraíba. Em 1992, publicou Afroameríndia (Tratado de sensibilidade); em 1994, Mulãria da macambária recebeu o Prêmio Silvino Olavo da Secretaria de Educação do Estado da Paraíba e saiu pela Editora A União; em 1996, foi a vez de O idioma dos pães receber o primeiro Prêmio Novos Autores Paraibanos e ser publicado pela Editora da UFPB. Entre 2000 e 2008, publicou livros de ensaios filosóficos e de estudos literários. Em 2010 saiu seu título mais recente, Educação do esquecimento.

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