ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ALEXANDRE GUARNIERI

 

 

 

 

POEMAS PARA O HIPER-MAR

 

à Dianna and Mark McMenamin

 

 

"[...] o homem brinca de deus quando teima.

ele se consome de porquês e se fabrica problemas.

o homem brinca de deus mas vive no tempo.

e no mar ele nomeia seus medos: mar morto, mar negro,

mar vermelho. o homem é água e enredo. [...]"

 

Marcus Fabiano Gonçalves

 

 

"Iemanjá [...] enxágua o mar/ com seus azuis/

pétalas d'água/ pérolas só luz [...]"

 

Fabiano Calixto

 

 

"[...] Tudo está escrito em algum lugar,

nas Tábuas de Esmeralda, no Popol Vuh,

no Livro Tibetano dos Mortos.

Há quem diga que a espuma no oceano

é uma linguagem. [...]; palavras são detritos

como algas, conchas ou brincos

oferecidos à deusa das águas. Eu só

deslizo as pinças entre possibilidades.[...]"

 

Cláudio Daniel

 

 

 

a página marinha

 

 

~ /hum ~

 

 

~ ( as camadas dançarinas da máquina marinha ~

imersas numa única carroceria cavilhada

de crustáceos por sobre suas mil costelas

de acrílico ~ nestas esteiras líquidas ~

escorregadios entre si, porque diluídos, seus

mancais de alumínio ~ ( sob dilúvios de molusco

~ afluem acordes ao desígnio prístino ~

sobre o prisma do mais íngrime dos precipícios

~ ( rangem os fractais do mar original ) ~

os naufrágios ~ um cântico trágico os

atrai, ária da cantata, tão íntima ao

ritmo contínuo no qual conchas submersas,

nos círculos do sal, são peças de oráculo

à odisséia onde tudo espirala e reveza ) ~

 

 

 

 

~ /dois ~

 

 

~ ( na sua aparelhagem de esmeris há um

diamante lapidando a orla, órbita sólida,

outrora erguida sobre a rocha insólita ~

nos atóis / tanto óticos / quanto táteis /

seu azul total coroado de corais simétricos

/ corola entre pétalas ) ~ os olhos do

oceanógrafo atentos ao cio submergível das

mais secretas pérolas ~ alagado amálgama

de lágrimas e algas cuja superfície

entretecida é sua trêmula e lustrosa

pele de enguia, estrutura lenta e solúvel

onde deslizam os enigmas da hidrodinâmica ~

migram escamas, grinaldas de espuma ~

porque as ondas são muitas roldanas ) ~

 

 

 

 

~ /três ~

 

 

~ ( trinta mil estrelas afogadas sob a água

iodada ~ ( milagrosa lâmina submarina ~

flâmula, simulacro claro ~ essa galáxia

de desastres e luminosidade sufocada ) ~

eis o orgulho do mar à sua massa d'água:

inigualavelmente larga ~ garoupas / corvinas /

orcas retornam a esse aquário maravilhoso ~

de arcas afundadas e naus frágeis ~ a fer-

rugem luta, fracassando o aço de tesouros

obscuros ~ há algo além do H2O ~ ali ~

~ ( e não só lá ) ~ onde o mistério é cego

ao último instante de Atlantis ~ sua piscina

idílica ~ o mar ~ riquíssima a mansão vítrea

habitada por tritões, sereias e marlins ) ~

 

 

 

 

~ /quatro ~

 

 

~ ( um labirinto intramarino ~ tremeluzindo

espelhos vivos ~ de vincos cor de vinho

~ murmúrios / marulho ) ~ o mar possui cristas

dorsais, que eriça ~ seus ladrilhos são

incorpóreos menires sob a fossa abissal ~

e há cariátides de cristal decorando os

recônditos de seu salão principal ~ ( Iemojah,

rainha dos redemoinhos ~ Iemanjá manejando jangadas

na encruzilhada das águas) ~ há um pomar esquecido,

de astrolábios outrora dourados, agora tão

corroídos ~ náufraga morada dos astros ~ de uma

mínima astronomia de ostras / se estrelas-marinhas

são sóis irrisórios ~ nebulosas mergulham / e

polvos retorcem seus tentáculos constelares ) ~

 

 

 

 

~ /cinco ~

 

 

~ ( apesar das algas bioluminescentes /

afoga o fogo ~ o mar ~ submerge o gênio

sob o afago salgado de seus ângulos ~ (

vértices repletos, que resvalando, são o

jogo côncavo de curvas que circulam / gases

/ cardumes alhures / peixes sem eixo / imensos

lumes borbulham ~ numa anárquica e bizarra

fauna ~ parques de sal  ~ ( subprofundis )

~ onde águas-vivas habitam, em máscaras ~

de vidraria rara ~ como cristais itálicos ~

nos receptáculos de tão pequenas glândulas

lacrimais há toneladas de um sal concentrado

~ ( o que criaria, afinal, a imensa gama

de algas estranhas sob águas instantâneas? ) ~

 

 

 

 

~ /seis ~

 

 

~ ( emaranhado por marés o mar menstrua,

regulado sob os trâmites da lua ~ seu

diafragma flagrado em água máxima ~

múltiplo o acúmulo que flui ~ feminino

e hidrovascularizado ~ e muito embora de-

marcado em cartas náuticas, o mar escoa

para todos os lados ~ entorna e retorna

uma ágora larga, agora sob a aurora ~

aura do arco aquarelado sobre o sal das

catedrais de prata e coral ~ pátria de fúria

e maresia ~ safras de madrepérola e safiras)

~ que Posseidon, o Pai-do Mar ~ armado do único

tridente entre tantas espadas de barbatana,

possui também ~ uma lavoura de azuis ) ~

 

 

 

 

*    *    *

 

 

 

                   dínamo marino

 

vaga enquanto arma a água toda em que

se esvai levando: soma aquosa/ ergue

o quanto anda: carga aonde leva e traz

na água algas agora, sobre cardumes que

alardam/ e se uma gravidade a atrai à

praia, sem freios (um dínamo marino

agindo ao devir sonoro da arrebentação),

na areia outra, contrária, quer devolvê-la

ao oceano doutro lado, (vira e revira no

ir e vir de seus espasmos)/ longa, ondula/

a água alarga e salga — e segue como se

sangrasse: sangria do signo cíano/

e singra para que siga ainda a água,

que o ímã de cada maré adere ou repele/

logra a onda longa aonde aguarda lá

largar-se (inunda fundo onde inúmeras

ondas se ajuntam) à outra onda, longe,

em moto-contínuo, bainha junto à linha

da baía, para quebrar, ad infinitum.

 

 

 

 

*    *    *

 

 

 

 

                          arquipélago

 

4 grupos (vizinhos) de lindas ilhas virginais, reunidas

no arquipélago gregário, desenham este coliseu relegado

a léguas além do continente, módulo duma ilíada meridional;

veleiros trafegam à passeio, entregando alienígenas,

ilustres turistas do istmo ou eventuais criaturas

visitadoras de uma delas em quaisquer das outras sólidas

ilhotas; távolas avistadas n’água, contra o oceano

retilíneo, muito antes dos últimos tsunamis: no refluxo

do pacífico sul ou nos limites do extremo menos terreno

do arco caribenho; a ortodoxia as cria fixas na geografia,

tranquilas ilhas anfíbias ligadas ao velho mapa inalterado

do mundo: cada escama um bloco ligado ao globo (são cimos

de montanhas naufragando; o azul as exulta: o conjunto flutua)

enquanto o mar lhe açoita as franjas, nunca as enxuga,

ao contrário, derruba nuvens de chuva, debruça tufões

durante a estação enfurecida; aves migratórias esperarão

a hora de (re)pousar, passada a ampla tempestade,

                                        nessa arena serena, provisória morada.

 

 

 

 

*    *    *

 

 

 

 

                                 |( os órgãos internos )|

 

\( persegue as vértebras a massa dos sangues coligidos /(

dentre os quais há indício, de que alguns (mais ou menos

líquidos)\ cada qual a seu tempo, distintos, consolidem

sacos coagulados do caldo biológico \( carnes que existem

da diferença entre si de seus tecidos /( se especializaram

as células, em aparelhos e sistemas )/ delas monta-se um

puzzle cujas lacunas se completam )\ o corpo expande, mas se

destrói quando mais o rígido osso fratura, pelo escasso

cálcio /( conforme a vida lhe habita, o conjunto luta sob o

mesmo pulso \(o mesmo insumo bruto lhe insufla a labuta /(

plantada já na samambaia dos nervos \( enclausura-lhe

a amarra elástica dos músculos /( a obstrução sob medida

de uma única fornalha viva )\ trocam fluidos entre si tantas

partes aparentemente separadas \( interno o mar hemorrágico,

apenas visitável numa viagem fantástica /( mas quando lhe

autopsiam a frio \(sangria & bisturis /( se mostra, monstro

sob as próprias ataduras \(um frankenstein exposto, que,

apenas por medo do escuro, só morto poderiam demonstrá-lo )\

 

 

 

 

*    *    *

 

 

 

 

                                    orla modular

 

) ornato em pedra mas repleto de areia cor de pérola,

as praias recortadas da imensidão de seu tecido,

modeladas de um  círculo macio ( pássaros sonoros

o rodeiam, santuário, revoando com o vento dos verões

entre dunas que se arredondam e ondas de onde sopram,

plenos, horizontes remotos ) da área plana à beira-mar,

à barreira rochosa, se espalham os módulos da orla

e a vida de sua órbita, sempre recolocada no longo

diálogo com o oceano, bem além da seda da enseada )

os ares da maresia na zona fronteiriça entre os

alumínios do azul e a amarelhidão molhada da areia

fina enquanto ondas a reviram no refino ) ainda (

 

 

 

 

*    *    *

 

 

 

 

                           [| a pele |]

 

homem-bomba vestindo roupa de escafandrista, seu

neoprene pressurizado capta estímulos, e por entre

pêlos mínimos, válvulas regulatórias fazem-na suar

ou ressecar, contra as condições do habitat (algo

se interpõe aos poros, ou impermeabiliza as fi-

bras);  seus sensores de calor vigiados de uma

torre de comando, enquanto é mantida viva, (hi-

dratado adequadamente cada intrincado recanto)

como a máxima peça, de uma alfaiataria das mais

complexas: seria tão errado reduzi-la ao tato cos-

turando ao tecido apenas um, dos cinco sentidos?

 

 

 

*    *    *

 

 

 

 

                                    penhasco

 

as escarpas de aço/ o espaço entre o ar

e o mar embaixo: quase raso/ bordas estáticas,

afiadas, como as de uma faca árabe, arqueada:

cimitarra/ o que as navalhas da erosão erigem é

um conjunto de rochedos degolados/ assim

o penhasco largo, vasto: ponto turístico

para narcisos e suicidas; amplo plenário de pedra

d'onde se observa o sol nascer (ou se pôr):

platô sólido/ observatório possível: existe

essa muralha terrena, lugar de uma solidão extrema,
avizinhando o mar a esse chão de limites.

 

 

 

*

 

Alexandre Guarnieri nasceu no Rio de Janeiro (em 1974), é Arte-educador habilitado em História da Arte pelo Instituto de Artes da UERJ, e Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ (ECO). Integrou, a partir de 1993, o movimento carioca da poesia falada. Fez parte da primeira formação do grupo performático "V de Verso", coordenado pelo poeta Chacal na UERJ. Junto com o poeta Flávio Corrêa de Mello, coordenou o NCP (Núcleo de Criação Poética) no Sobrado Cultural, centro cultural na zona norte do Rio, onde mantinham o recital mensal "Poesia no Sobrado". Publicou poemas em jornais e revistas, dentre eles o Panorama da Palavra (do qual foi colaborador), a Revista Urbana, La Isle.com, a Revista O Carioca, o Suplemento Literário de Minas Gerais, a Revista Eutomia. "Casa das Máquinas" (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estréia.

 

email: alex.guarni@gmail.com

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