POEMAS PARA O HIPER-MAR
à Dianna and Mark McMenamin
"[...] o homem brinca de deus quando teima.
ele se consome de porquês e se fabrica problemas.
o homem brinca de deus mas vive no tempo.
e no mar ele nomeia seus medos: mar morto, mar negro,
mar vermelho. o homem é água e enredo. [...]"
Marcus Fabiano Gonçalves
"Iemanjá [...] enxágua o mar/ com seus azuis/
pétalas d'água/ pérolas só luz [...]"
Fabiano Calixto
"[...] Tudo está escrito em algum lugar,
nas Tábuas de Esmeralda, no Popol Vuh,
no Livro Tibetano dos Mortos.
Há quem diga que a espuma no oceano
é uma linguagem. [...]; palavras são detritos
como algas, conchas ou brincos
oferecidos à deusa das águas. Eu só
deslizo as pinças entre possibilidades.[...]"
Cláudio Daniel
a página marinha
~ /hum ~
~ ( as camadas dançarinas da máquina marinha ~
imersas numa única carroceria cavilhada
de crustáceos por sobre suas mil costelas
de acrílico ~ nestas esteiras líquidas ~
escorregadios entre si, porque diluídos, seus
mancais de alumínio ~ ( sob dilúvios de molusco
~ afluem acordes ao desígnio prístino ~
sobre o prisma do mais íngrime dos precipícios
~ ( rangem os fractais do mar original ) ~
os naufrágios ~ um cântico trágico os
atrai, ária da cantata, tão íntima ao
ritmo contínuo no qual conchas submersas,
nos círculos do sal, são peças de oráculo
à odisséia onde tudo espirala e reveza ) ~
~ /dois ~
~ ( na sua aparelhagem de esmeris há um
diamante lapidando a orla, órbita sólida,
outrora erguida sobre a rocha insólita ~
nos atóis / tanto óticos / quanto táteis /
seu azul total coroado de corais simétricos
/ corola entre pétalas ) ~ os olhos do
oceanógrafo atentos ao cio submergível das
mais secretas pérolas ~ alagado amálgama
de lágrimas e algas cuja superfície
entretecida é sua trêmula e lustrosa
pele de enguia, estrutura lenta e solúvel
onde deslizam os enigmas da hidrodinâmica ~
migram escamas, grinaldas de espuma ~
porque as ondas são muitas roldanas ) ~
~ /três ~
~ ( trinta mil estrelas afogadas sob a água
iodada ~ ( milagrosa lâmina submarina ~
flâmula, simulacro claro ~ essa galáxia
de desastres e luminosidade sufocada ) ~
eis o orgulho do mar à sua massa d'água:
inigualavelmente larga ~ garoupas / corvinas /
orcas retornam a esse aquário maravilhoso ~
de arcas afundadas e naus frágeis ~ a fer-
rugem luta, fracassando o aço de tesouros
obscuros ~ há algo além do H2O ~ ali ~
~ ( e não só lá ) ~ onde o mistério é cego
ao último instante de Atlantis ~ sua piscina
idílica ~ o mar ~ riquíssima a mansão vítrea
habitada por tritões, sereias e marlins ) ~
~ /quatro ~
~ ( um labirinto intramarino ~ tremeluzindo
espelhos vivos ~ de vincos cor de vinho
~ murmúrios / marulho ) ~ o mar possui cristas
dorsais, que eriça ~ seus ladrilhos são
incorpóreos menires sob a fossa abissal ~
e há cariátides de cristal decorando os
recônditos de seu salão principal ~ ( Iemojah,
rainha dos redemoinhos ~ Iemanjá manejando jangadas
na encruzilhada das águas) ~ há um pomar esquecido,
de astrolábios outrora dourados, agora tão
corroídos ~ náufraga morada dos astros ~ de uma
mínima astronomia de ostras / se estrelas-marinhas
são sóis irrisórios ~ nebulosas mergulham / e
polvos retorcem seus tentáculos constelares ) ~
~ /cinco ~
~ ( apesar das algas bioluminescentes /
afoga o fogo ~ o mar ~ submerge o gênio
sob o afago salgado de seus ângulos ~ (
vértices repletos, que resvalando, são o
jogo côncavo de curvas que circulam / gases
/ cardumes alhures / peixes sem eixo / imensos
lumes borbulham ~ numa anárquica e bizarra
fauna ~ parques de sal ~ ( subprofundis )
~ onde águas-vivas habitam, em máscaras ~
de vidraria rara ~ como cristais itálicos ~
nos receptáculos de tão pequenas glândulas
lacrimais há toneladas de um sal concentrado
~ ( o que criaria, afinal, a imensa gama
de algas estranhas sob águas instantâneas? ) ~
~ /seis ~
~ ( emaranhado por marés o mar menstrua,
regulado sob os trâmites da lua ~ seu
diafragma flagrado em água máxima ~
múltiplo o acúmulo que flui ~ feminino
e hidrovascularizado ~ e muito embora de-
marcado em cartas náuticas, o mar escoa
para todos os lados ~ entorna e retorna
uma ágora larga, agora sob a aurora ~
aura do arco aquarelado sobre o sal das
catedrais de prata e coral ~ pátria de fúria
e maresia ~ safras de madrepérola e safiras)
~ que Posseidon, o Pai-do Mar ~ armado do único
tridente entre tantas espadas de barbatana,
possui também ~ uma lavoura de azuis ) ~
* * *
dínamo marino
vaga enquanto arma a água toda em que
se esvai levando: soma aquosa/ ergue
o quanto anda: carga aonde leva e traz
na água algas agora, sobre cardumes que
alardam/ e se uma gravidade a atrai à
praia, sem freios (um dínamo marino
agindo ao devir sonoro da arrebentação),
na areia outra, contrária, quer devolvê-la
ao oceano doutro lado, (vira e revira no
ir e vir de seus espasmos)/ longa, ondula/
a água alarga e salga — e segue como se
sangrasse: sangria do signo cíano/
e singra para que siga ainda a água,
que o ímã de cada maré adere ou repele/
logra a onda longa aonde aguarda lá
largar-se (inunda fundo onde inúmeras
ondas se ajuntam) à outra onda, longe,
em moto-contínuo, bainha junto à linha
da baía, para quebrar, ad infinitum.
* * *
arquipélago
4 grupos (vizinhos) de lindas ilhas virginais, reunidas
no arquipélago gregário, desenham este coliseu relegado
a léguas além do continente, módulo duma ilíada meridional;
veleiros trafegam à passeio, entregando alienígenas,
ilustres turistas do istmo ou eventuais criaturas
visitadoras de uma delas em quaisquer das outras sólidas
ilhotas; távolas avistadas n’água, contra o oceano
retilíneo, muito antes dos últimos tsunamis: no refluxo
do pacífico sul ou nos limites do extremo menos terreno
do arco caribenho; a ortodoxia as cria fixas na geografia,
tranquilas ilhas anfíbias ligadas ao velho mapa inalterado
do mundo: cada escama um bloco ligado ao globo (são cimos
de montanhas naufragando; o azul as exulta: o conjunto flutua)
enquanto o mar lhe açoita as franjas, nunca as enxuga,
ao contrário, derruba nuvens de chuva, debruça tufões
durante a estação enfurecida; aves migratórias esperarão
a hora de (re)pousar, passada a ampla tempestade,
nessa arena serena, provisória morada.
* * *
|( os órgãos internos )|
\( persegue as vértebras a massa dos sangues coligidos /(
dentre os quais há indício, de que alguns (mais ou menos
líquidos)\ cada qual a seu tempo, distintos, consolidem
sacos coagulados do caldo biológico \( carnes que existem
da diferença entre si de seus tecidos /( se especializaram
as células, em aparelhos e sistemas )/ delas monta-se um
puzzle cujas lacunas se completam )\ o corpo expande, mas se
destrói quando mais o rígido osso fratura, pelo escasso
cálcio /( conforme a vida lhe habita, o conjunto luta sob o
mesmo pulso \(o mesmo insumo bruto lhe insufla a labuta /(
plantada já na samambaia dos nervos \( enclausura-lhe
a amarra elástica dos músculos /( a obstrução sob medida
de uma única fornalha viva )\ trocam fluidos entre si tantas
partes aparentemente separadas \( interno o mar hemorrágico,
apenas visitável numa viagem fantástica /( mas quando lhe
autopsiam a frio \(sangria & bisturis /( se mostra, monstro
sob as próprias ataduras \(um frankenstein exposto, que,
apenas por medo do escuro, só morto poderiam demonstrá-lo )\
* * *
orla modular
) ornato em pedra mas repleto de areia cor de pérola,
as praias recortadas da imensidão de seu tecido,
modeladas de um círculo macio ( pássaros sonoros
o rodeiam, santuário, revoando com o vento dos verões
entre dunas que se arredondam e ondas de onde sopram,
plenos, horizontes remotos ) da área plana à beira-mar,
à barreira rochosa, se espalham os módulos da orla
e a vida de sua órbita, sempre recolocada no longo
diálogo com o oceano, bem além da seda da enseada )
os ares da maresia na zona fronteiriça entre os
alumínios do azul e a amarelhidão molhada da areia
fina enquanto ondas a reviram no refino ) ainda (
* * *
[| a pele |]
homem-bomba vestindo roupa de escafandrista, seu
neoprene pressurizado capta estímulos, e por entre
pêlos mínimos, válvulas regulatórias fazem-na suar
ou ressecar, contra as condições do habitat (algo
se interpõe aos poros, ou impermeabiliza as fi-
bras); seus sensores de calor vigiados de uma
torre de comando, enquanto é mantida viva, (hi-
dratado adequadamente cada intrincado recanto)
como a máxima peça, de uma alfaiataria das mais
complexas: seria tão errado reduzi-la ao tato cos-
turando ao tecido apenas um, dos cinco sentidos?
* * *
penhasco
as escarpas de aço/ o espaço entre o ar
e o mar embaixo: quase raso/ bordas estáticas,
afiadas, como as de uma faca árabe, arqueada:
cimitarra/ o que as navalhas da erosão erigem é
um conjunto de rochedos degolados/ assim
o penhasco largo, vasto: ponto turístico
para narcisos e suicidas; amplo plenário de pedra
d'onde se observa o sol nascer (ou se pôr):
platô sólido/ observatório possível: existe
essa muralha terrena, lugar de uma solidão extrema,
avizinhando o mar a esse chão de limites.
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