ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ÁLVARO FALEIROS

 

 

 

 

hoje dias doem

em todos seus nervos

quase já não podem

os fios dos invernos

 

arde desde ontem

rasgado e severo

ainda o mesmo mote

frio de tanto inverno

 

treme dentro frágil

fecha a mão sem voz

fosse assim tão fácil

 

aquecer os pés

faria um adágio

no vapor dos nós

 

 

* * *

 

diria um refém

enclausurado

amordaçado

de um certo desdém

 

            dizem ser arcaico

tento vetusto

pouco robusto

            pseudo-mallarmaico

 

            no melhor do acaso

soneto tosco

pleno d’enrosco

            digno de descaso

 

já que a vida hoje glosa

com cachorros da prosa

 

as nuvens de árvores

e seus tristes sons

o trincar dos ossos

no seco dar vozes

 

olhos desfolhados

quase que não vistos

fiquei sem dormi-los

sonhando acordado

 

pântanos de vidro

sim ao longe vê-los

de perto duvido

a matéria os selos

 

quase sempre assombra

sair sem redoma

 

 

* * *

 

 

silêncio aí   um anjo passa

passa um segredo   um homem passa

súbito segue   atrás a caça

silêncio aí   falta um pedaço

 

só um que canta   achando espaço

a flecha aflora   além do arco

o aço revira em descompasso

o ar respira   embala a vácuo

 

silêncio do corpo que falta

abandona sozinho a sala

no suspiro que nos assalta

 

a canção sabe o som que falha

a melodia sobressalta

precisa naquilo que cala

 

 

* * *

 

 

from trakl’s blues

 

águias de sono e morte

rondam, a noite espera

habita a sua cratera

a sombra de um consorte

 

engolida pela onda

de eternidade – peças

o corpo as que arremessa

bate no recife onde

 

há imagens de um homem –

e só uma voz lamenta

por sobre o mar sem nome

veja irmã a tormenta

 

afunda aquela nau – te

toca o rosto da noite
 

 

*


Álvaro Faleiros é professor de Literatura Francesa da USP. Publicou os seguintes livros de poemas: Coágulos (Iluminuras, 1995), Amapeando (Nankin, 1997), Transes (publicado na França em 2000), O Retirante que virou presidente (Cordel, 2002), O Auto do Boi d’Água (cordel, 2003) e Meio mundo (Ateliê, 2007). Como tradutor publicou, entre outros: Latitudes: 9 poetas do Québec (Noroît/Nankin, 2003); O Bestiário de Guillaume Apollinaire (Iluminuras, 1995); Descabelados de Yosano Akiko (Ed. UnB, 2007), com Donatela Natili; e Caligramas de Guillaume Apollinaire (Ateliê, 2008). Escreve também canções, algumas gravadas em seu CD Água Minha (2003).

*

 

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