ANA MARQUES GASTÃO
EFÍGIE HEMAFRODITA
Escuto, escrever é escutar,
ver, calar, deslizar,
a ritmo de hamadríades
que nascem e morrem
dentro d’uma árvore oca.
Se eu fosse essa árvore,
de linhas preponderantes
e ouvidos de sol,
efígie hermafrodita
de tromba sugadora,
impiedosa e melódica
– mas sou apenas máscara,
sombra da sombra de mim.
ADORNOS
Valho-me de um ouvido
que quase não ouve
porque vê
em retrocedido olhar
do touro as asas.
Ó incorrupta voz
de suaves fragrâncias
e tons de cáscara,
não exasperado
é teu lugar de adornos.
RETORNO IMPERCEPTÍVEL
Alongo com os dedos
o ruído do cabelo;
– essa dinâmica
de texto sonoro,
quase imperceptível,
leva-me a concluir
que o indeterminado
em mim se determina
pelo correr do tempo.
Ouço, a intervalos
de semínima, a dança
dos cachos de cabelo
como quem vive
por entre o ténue
barulho da vegetação.
Tudo se move, sobe,
mas o tempo não
se subordina, rebelde,
ao movimento, é
consciência, cesura,
estalido ocorrido
num ouvido reprodutor.
TANTO SOM
Poiso as mãos
nas madeixas,
de ondulação frouxa,
e escuto o refrão,
eterno-retorno
ou melodia esquiva.
Tal como na antiga
hermes baby
o som sustém,
a ritmo de tinta,
o que nem peso tem
– esse vapor
de te saber invisível.
OUVIDO IRREAL
É nítido o zumbido.
Sacudo a cabeça,
esvazio-a de palavras,
demasiadas palavras
para uma tensa tuba.
Deito-a na almofada,
fecho os olhos,
mas a intensidade,
a frequência são
de ordem irreal.
Diagnostico sintomas
aurais de quem
oscila na corda e vive
para romper
um palaciano véu.
INSUSTENTÁVEL PUREZA
Começo a caminhar
entre corredores,
na casa as janelas
são ora ovais
ora redondas,
o acesso à porta
depende da minha
tenaz susceptibilidade.
Sendo insuportável
o triangular zunido,
é como um eco,
múltiplo eco que
de tanto ser múltiplo
se torna em um.
Só de um cavo,
páreo combate,
de uma insustentável
doce pureza,
nasce a música.
PASSOS MECÂNICOS
Visível e móvel,
o som que produzo
no papel vê, sente
fluxos, refluxos,
explosões, turbilhões,
é a acção de uma gota
sobre um lago
nascida
de uma inarticulada
ressonância gráfica.
As ondas irreais
da tua fala
são perturbações
mais que ondulatórias.
CHUVA DE VOZ
É chuva de voz, clamor,
xilofone abafado,
ruído em fuga rápida,
castigo chamejante,
chilreada sem dó,
imparável, implacável.
Permanente, o barulho
é velado, enevoado,
quase despercebido,
embutido em madeira,
amadurecido,
oiço-o em alta tensão,
não já cabeça d’água,
mas biqueira em queda,
abafado extenso timbre
que só a imaginação,
distraída de si,
pode, alada, conceber.
SOBRESCRITO
Fecharam-me no sobrescrito,
e apagaram-me, rectangular, a luz.
Como posso eu, sem visão, pensar,
ouvindo os dedos bruscos do carteiro
em tiquetaque furioso. Se ao menos
ajustassem o selo, quem sabe se ao
centro, depois à esquerda e à direita,
em cima e um pouco abaixo,
na vertical e a seguir na horizontal,
mas um ser ínfimo não se ajusta
ao envelope que se abre de desejo
na inerência do que, invisível, o toca.
Ouvir é um parto silencioso.
EXÉRCITO DE TÍMPANOS
O ouvido é um exército
de tímpanos,
um sem-fundo
de abismos
labirinto d’águias,
cristal de centelhas
e ténues amarras.
TRONOS SONOROS
O que ouço não é meu,
o que é meu não é daqui,
o que sinto faz-me ser,
ergue-me d’um chão morto.
O que escuto ignoro,
o que almejo não alcanço,
sou apenas este centro
de tronos sonoros,
nexo entre a matéria
e a figura, carência
de em ti vir a ser
possibilidade absoluta.
MAR VERMELHO
No pavilhão da orelha
descanso o vento,
ao mar vermelho
pinto-o de branco
enquanto pressinto
quase um rebento,
uma flor, um unguento,
suportando, amáveis,
o peso do que sou.
Menos derramada
a letra, estende-se
harmoniosa, secreta
invernosamente
fraterna. Espectral,
desenha a escada
suavemente proporcional
aos limites do nocivo.
*
Ana Marques Gastão (n. 1962), poeta, jornalista cultural, crítica literária, adjunta de direcção da revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian. Advogada, licenciada em Direito pela Universidade Católica Portuguesa. Escreveu Tempo de Morrer, Tempo para Viver (1998), Terra sem Mãe (2000), Três Vezes Deus, em co-autoria com António Rego Chaves e Armando Silva Carvalho (2001), Nocturnos (2002) e Nós/Nudos, 25 poemas sobre imagens de Paula Rego – versão bilingue português/castelhano, traduzida por Floriano Martins (Prémio Pen Clube Português de Poesia 2004, ex-aequo). Nós/Nudos foi publicado em França com o título Noeuds (2007) com tradução de Catherine Dumas. Editou no Brasil a antologia A Definição da Noite (2003). Lápis mínimo é o seu último livro (2008). Integra várias antologias de poesia contemporânea, participou em diversos festivais internacionais e tem sido membro de júris de prémios no domínio do romance, da poesia e do ensaio como os da Associação Portuguesa de Escritores. Alguns dos seus poemas estão traduzidos para castelhano, catalão, francês, inglês, alemão e romeno. |