ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - edições anteriores - home]

 

 

ANDRÉ RICARDO AGUIAR

 

 

 

 

TEOLOGIA

Deus visto daqui de baixo

finge que não me vê.

 

Eu o finjo igualmente

com um ar sem rumo, ser

ou não ser.

 

Posto que não há mais

o que fazer:

 

para todo efeito

o pacto é morto,

 

eu ando por linhas, torto.

 

 

SENSITIVO

 

E tem isso: uma ideia,

uma bolha onde ter que pegar

e chamamos realidade

 

ou coisa que o valha, susto

do meio-dia, desnorte.

 

E tem você: camada de si

mesmo, a esmo, fingindo

viver o que já é a vida.

 

E algo mais – resíduo

abaixo de zero e as coisas

findas, mais frágeis

 

que a bolha. Ainda.

 

 

A UM CRÍTICO DE OCASIÃO

 

Você reconhece um poema

segundo critérios atômicos

você espera que um poema pie grasne urre

catálogo de zoológicos

e faça metáforas com agulhas

a costurar realidades

ou suma com o mágico

ou sustente um leitor com um pires de leite

-  raquítico gato.

 

A quem interessar possa

o poema dá o que lhe perdem.

 

Raspe a crosta do poema e veja,

pouco a pouco

o pouco a

o pouc

o pó.

 

 

 

DICIONÁRIO

 

Vou ao verbete: sua boca

indefinida planície de la mañana,

haste de rubros invernos

 

depois folheio e me vem

tua palavra bêbada de enciclopédias:

janeiros, vespas, uma língua

doce

 

depois voam os significados

e uma revoada de músculos

 

que relaxam.

 

 

COLHEITA

 

Palavra como um grão

- o debulhar, campina

ciente do geógrafo

 

em pleno estio, súbita

seara – maré movendo

o convés da lua.

 

Assim o poeta

- fauno entre riscos -

e estreito como um beco

 

volta ao início

das coisas

que se ferem

 

e pica a agulha

o seu palheiro:

 

toda palavra é cicatriz.

 

 

 

METÁFORA

 

Para que eu faça do teu corpo

uma ilíada, um retorno sem fim

 

uma flauta só som, aos ventos

um cálice para os lábios náufragos

 

 para que eu faça do teu corpo

uma fronteira, amêndoa do toque,

 

 a distância perfeita entre os dedos

e a carne, o mormaço cadente

 

para que eu faça do teu corpo

a pontaria plena - quase árvores

 

de um bosque - para mirar-me

no que fiz de mim

em teu corpo.

 

 

OS VINCOS

 

A morte me antecipa

para fora do quadro

- eu mesmo me ponho nos ombros

e visto o velório

com o corte exato do terno

e dos pulsos.

 

Disseram que uma roupa

contém o seu dono.

Eu nunca me vi com uma roupa

mais nua e estranha.

Do seu contorno invisível

só a sinto pelos vincos.

 

Assim são os ossos

que nos suportam.

 

 

*

 

André Ricardo Aguiar nasceu em Itabaiana, Paraíba, em 1969. Seus primeiros poemas foram publicados no suplemento cultural Correio das Artes. Também divulgou seu trabalho em revistas e jornais, entre eles, Rascunho, Poesia Sempre, Ficções (Portugal), Revista Ler, Crispim. Livros publicados de poesia: A flor em construção (1992), Alvenaria (1997). De crônica: Bagagem lírica (2003). Infantil: O rato que roeu o rei (2007) e Pequenas reinações (2008). Integra o Clube do Conto da Paraíba e coordena projetos literários através da Funjope (PB). Tem inédito o livro A idade das chuvas. Colabora no jornal Contraponto, de João Pessoa.

 

 

Leia outros poemas do autor.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2011 ]