TEOLOGIA
Deus visto daqui de baixo
finge que não me vê.
Eu o finjo igualmente
com um ar sem rumo, ser
ou não ser.
Posto que não há mais
o que fazer:
para todo efeito
o pacto é morto,
eu ando por linhas, torto.
SENSITIVO
E tem isso: uma ideia,
uma bolha onde ter que pegar
e chamamos realidade
ou coisa que o valha, susto
do meio-dia, desnorte.
E tem você: camada de si
mesmo, a esmo, fingindo
viver o que já é a vida.
E algo mais – resíduo
abaixo de zero e as coisas
findas, mais frágeis
que a bolha. Ainda.
A UM CRÍTICO DE OCASIÃO
Você reconhece um poema
segundo critérios atômicos
você espera que um poema pie grasne urre
catálogo de zoológicos
e faça metáforas com agulhas
a costurar realidades
ou suma com o mágico
ou sustente um leitor com um pires de leite
- raquítico gato.
A quem interessar possa
o poema dá o que lhe perdem.
Raspe a crosta do poema e veja,
pouco a pouco
o pouco a
o pouc
o pó.
DICIONÁRIO
Vou ao verbete: sua boca
indefinida planície de la mañana,
haste de rubros invernos
depois folheio e me vem
tua palavra bêbada de enciclopédias:
janeiros, vespas, uma língua
doce
depois voam os significados
e uma revoada de músculos
que relaxam.
COLHEITA
Palavra como um grão
- o debulhar, campina
ciente do geógrafo
em pleno estio, súbita
seara – maré movendo
o convés da lua.
Assim o poeta
- fauno entre riscos -
e estreito como um beco
volta ao início
das coisas
que se ferem
e pica a agulha
o seu palheiro:
toda palavra é cicatriz.
METÁFORA
Para que eu faça do teu corpo
uma ilíada, um retorno sem fim
uma flauta só som, aos ventos
um cálice para os lábios náufragos
para que eu faça do teu corpo
uma fronteira, amêndoa do toque,
a distância perfeita entre os dedos
e a carne, o mormaço cadente
para que eu faça do teu corpo
a pontaria plena - quase árvores
de um bosque - para mirar-me
no que fiz de mim
em teu corpo.
OS VINCOS
A morte me antecipa
para fora do quadro
- eu mesmo me ponho nos ombros
e visto o velório
com o corte exato do terno
e dos pulsos.
Disseram que uma roupa
contém o seu dono.
Eu nunca me vi com uma roupa
mais nua e estranha.
Do seu contorno invisível
só a sinto pelos vincos.
Assim são os ossos
que nos suportam. |