ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ANDRÉA CATRÓPA

 


I - GLOSSÁRIO

púrpura a cor da moda e da gangrena, licor de um seio que se recolhe rumo a constelações vermelho sangue do bife, cor do jorro ou de um golpe embaralhando a visão azul assim pareceria o céu, vitrine para o mar, se não houvesse cinza rosa papel de parede do purgatório, degrau do meio na escada da diluição verde não há registro preciso pra isso branco laranja, vermelho, magenta, azul, mostarda (posso aqui dar a receita de um arco-íris particular?)


II - CORRESPONDÊNCIAS APLICADAS

seria azul o amor sobrenatural que se arrasta por túneis e subterrâneos?

seria vermelho o sentimento que salta sobre valas e desrespeita o sono dos mortos?

ou branca a paixão soterrada por olhos-lápide?

 

ÉBANO

componho
como uma cega como
alguém que sobreviveu
ao bombardeio da casa - estranhas
as crianças em piques gangorras
amarelinhas terríveis
no seu autocontrole
os homens andando
em trajes completos
sob o sol

se rezas não fossem palavras, mas
cores, pintaria algumas para aqueles
que têm as pálpebras estampadas de chão

 

AZUL-MARINHO

o som das algas
ondulando a respiração
silenciosa dos peixes - ela deslizava
no sono mais velho que relógios rumo
às cordilheiras marinhas para encontrar
tímpanos ecos de cantigas pálpebras fotografias de entranhas

 

VERMELHO

vitrificados como meus olhos brilhantes, apesar de mortos. pura refrescância: a água sólida sussurra: está encerrada a fluidez da vida. guelras exaustas, nadadeiras exangues travaram no mar o penúltimo combate. depois no convés, luta envergonhada. e o desespero em forma de falta de ar, e raios de sol e secura. no purgatório da rede, a minha obstinação flutuante ainda ligada aguardava o alívio neste leito de gelo.


AMARELO-OURO

medo de acordar atado à toca
dos leões e de depois de horas perceber
ter percorrido quilômetros em círculos

sobre a laje as mãos
vazias de talismãs descascam as sílabas
de um mantra
in-
ti-
mo-
ra-
to


CARMIM

era para ver um relâmpago
que abri a página era
para fazer fogo que
escrevi amor


* * *


marujo velho que se deixa levar por amor
à embarcação rodopiante em naufrágio
em cada porto uno liebe t´attendra?)
a sereia, muda testemunha, lança
sobre a última ponta do casco
a sucumbir uma rosa
verde e triste


* * *


pontos azuis em meio a tons vários de laranja foram preenchendo a tela, ainda que a máquina não estivesse ligada. meus dedos foram ficando trêmulos (todos os vícios são inférteis?) e eles martelavam, sim, ao modo como fazemos no teclado. era preciso logo encontrar a tela branca, deixar semi-fechados os olhos e manter um pouco longe - só ao alcance das mãos - os pensamentos.
ainda informes as linhas, mas as palavras já velhas buscavam seu lugar na fila. acomodá-las de novo é provocar tormentas ou isso exige o cuidado de um oriental a disciplinar flores? calo as perguntas por olhos que não suportam mais o exílio, pela razão que quer sair do deserto. sensores treinados para captar o desconhecido paralisam minha mão. entre toda a noção de incompletude, estão órfãs as palavras que deixei entre parênteses.


* * *


o nosso gosto sem
o torpor dos álcoois
ou a maciez da
meia-luz

quero corpos nus
à luz do dia
sobre a grama
verde
não há rendas de
sombras quero ver
o que resta dos
dias vividos
às claras, a seco.


* * *


penumbra o sol
quebra vidraças
sem pedir
licença

pequenos cacos de luz
cegam (o cego
pode ver tudo
branco -

- essa visão
imaculada do paraíso
parece ser a que mais dói)

 

*

Andréa Catrópa nasceu em São Paulo, em 1974, e vive por aqui desde então. Foi uma das editoras da revista Metamorfose e faz parte do conselho editorial do jornal Casulo. Em 2004 recebeu o prêmio Rumos, do Itaú Cultural, na categoria Literatura- Audioficções, com o trabalho PF. Atualmente cursa o mestrado em Teoria Literária (FFLCH-USP) e prepara, junto com Sérgio Nesteriuk, um cd com dez peças sonoras baseadas em textos de sua autoria. Os poemas enviados pertencem ao livro inédito Linha d'àgua.

*

 

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