ANDRÉIA CARVALHO
DATURA STRAMONIUM
Drusas de himalaias
no ápice hormonal
No útero, negras sementes
Ainda ilesas
Enlouquecida, mirando o tapume de cercas-vivas:
- Virás, um dia, meu príncipe mediterrâneo.
E me farás imortal.
LUNARES LEONINOS
Estarei sempre-viva.
Cultuo esta solidão que laçam,
Mais um palco para o sol.
Tenho leões
Mesmo adormecidos
Rugem-me evangelhos
Como músicas empoeiradas
Sarapintadas,
letras panteras deslizantes
no livro manuseado.
Os leopardos sonâmbulos.
Passo-signo.
Leituras que nos caçam
a dinastia extinta.
Incansável realeza
Indestrutível ronda
Estou sempre-viva
Mesmo adormecida.
Espreito o que me espreitam.
Nada me descreve. Antes, eu.
E tu, e os topázios.
Aquilo que tenho e que só,
tu alcanças.
Aquilo que tens e que só,
eu alcanço.
Rugidos e extratos-feras.
Enquanto adormecem
sob nossos calcanhares:
galanteio, vaia, devoção.
MUSA CEGA
Atravesso a imagem da pedra
Imbuída e lenta de obsidiana
Forças tectônicas me ascendem
E sou a devastação
para sepultar-me
no dom da palavra santa
Bebo tua voz
E sou o sal
Meu sangue metálico, a pedra
do oratório
Não há vida minha
Sem o verbo teu
terra
meu êxodo sideral
canta em mim como a carne crua de um meteroro
PARA FAZER PONTAS DE FLECHAS
Mineralizar a lágrima
Fazer-se rútilo
Vibrar além da tua sangria
Pelas ervas, pelas especiarias
Com a estatura do musgo,
dos fermentos,
do sedimento
Como se os deuses me dessem as mãos, interiormente.
A amálgama fria volatiliza-se
Não pela tua eloqüência vulcânica, tua chegada ou partida.
O ourives é a atmosfera magnetizada
Ao teu redor
Quando os deuses vibram dentro de tua garra.
HÁ UM HOMEM CORTADO EM DOIS PELA JANELA
Hosana para este
Que atravessa carnes e estátuas mornas
Para este
Dos campos iridescentes
De frutos e raízes em caduceu
Que atravessa nomes
E nos responde
Trêmulo átimo
Dos campos magnéticos
O belo insone dos campos magnéticos
Iridescente
Hosana
em suas pegadas de carvão salpicado
ADORMECER, O BELO
Deitar-se em lençóis brancos: as páginas. Dormir-se no texto transparente, com olhos vidrados.
Bordar-se com lírios negros, enroscar-se pelas tramas de um vocábulo profano.
Invocar-se com os nomes escritos: de santos, de gênios, de lagos. Os que nos tocam a solidão, e são o braço de água doce nos liquefazendo. Os que nos tocam a eloqüência e nos crivam com seus genes de tempestade em erosão purificadora.
Cuspir-se com a inquisição do abalo mitológico que nos fita o interior do espírito assombrado. No tema que nos retorna ao pó dos ossos, até que nada reste e tudo exalte a eletricidade das cordilheiras.
Redomar-se com os freáticos, de cintilâncias abruptas na cripta da vértebra, a manta com que te aqueces na hora das trevas. Onde esta poeira alva banha o crânio subterrâneo: teu batismo de sonho no campo das neves.
Crismar-se oculto no teu desfile de preces: tua letra apagada pelo hostil das chuvas em teu sangue desperto de espasmo vítreo, em teu mito atormentado pela pele eriçada dos corpos líquidos que te embalam.
Cair-se exausto no desterro das hipnoses que dizem: adormeça-me.
Desfragmentar-te. Abrir-se na espiral do teu tímpano. E ler.
HARAQUIRI
Meu riso-avatar
Descobri-o
Polindo punhais
No sereno
Beira de rio
Meu riso-lágrima
Lápide
No frio
Minha pérola hemácia
Gélida
trágica
Ondula dentro dela
uma face flácida
(tu, entre o éter e a risada)
Meu pranto-deus
duo gume
rastro de jade
Na tundra
Entre vértebras: sabre
Eu rio-gelo
E apunhalo
um mar imaginário
(tu, e as correntezas)
AO CORRER DA PENA
No meu sangue pardo
Índio, a tez.
No meu sangue pardo
Navio, português.
Mil poetas calam
Cancioneiros
Na nevasca deste veio
Calam os espelhos
Escribas, marinheiros.
no meu sangue calo
um fado
granizo
correio
DIGITALIS PURPUREA
Tu nem sondas
O esmigalhar fagulhas de mariposas
Em encorpados cabernets
Pois eu o fiz
E atravessei vinhedos
De olhos encharcados
Tu nem rondas
O cruzar hortos pagãos
Sem olhos para deus
Pois eu o fiz
Meus olhos vendados
Em corpos, púrpuras corpos
ah teus!
Tão púrpuras os corpos teus.
INDEX LIBRORUM PROHIBITORUM
Conhecer-te
Foi feito abrir um livro antigo
Sabe-se das literaturas seculares
Que nos serão reveladas
No dia de um trígono celeste pardo
E era noite,
Quando os olhos são tochas de candelárias
VETIVER DE CIRCE
O que costumava ser-me profecia virou silabário contrário. Quando me ditava a madrugada como seriam as glórias da manhã, os arcos sombrios de belladonas no corpo dos pântanos. Por onde caminhava, como terreno pleno, como oratório imaculado. Sem erros, porque o seguia às cegas, às escuras. Intuindo a luz incitada, que existia mascarada no sabre das perambulações mais obscuras.
Deu-se a inversão. E porque o aceitava como o moribundo que ressuscita no placebo, como a lunação gera a maré, deu-se a transfusão de dons. Alçaram-me os adjetivos, as proclamações, o patchouly desprendido quando o elemental atua, quando se transubstancia no crédito das frases possuídas de abismo e imensidão.
Deu-se a transfusão. Saíam-me apocalipses a descrever sua incansável pantomima. Quanto ao meu imaginário, nada mais conjugava. Tornei-me a previdente.
Não há regozijo. Não quis perceber o sentido, quando o gritei, no meio do escuro, no meio da cegueira, no centro perdido da febre abençoada que havia me doado às farsas. Agora singra torpe, às farpas, embotado de vapores adocicados. Não reconhece no próprio sangue a maceração das dramaturgias, o óleo agreste das lacunas perdidas, possessas de savanas e sublimações.
Eu o digo, às máscaras: talvez não consiga voltar. Talvez não consiga voltar, sem vetiver.
CORDILLERA
Minha natureza, bem constituída de aceitações, reverências e irracionalidades, revolve-se quando focaliza a linha arqueada sob o promontório da lua sinistra. Sou dos mais simples seres, a epiderme colorida como coral, o pigmento desgastado pelos moderados apetites, pelas equilibradas sedes, pela parcimônia da vaidade espiritual. A ótica de estatura prosaica, exigindo das fotorreceptoras cavidades o suficiente para que se conjecturem imagos arcaicos, benevolentes com o incenso dos locais sagrados e irascíveis com adulteração das secretas mitologias internas. Arquétipos fecundam minha diária aspiração, os persigo como a caça intitula o sangue primitivo do homem, classificando-o como mimético prometeu no cinema celestial, no irrisório drama existencial a que sucumbe fatalmente o pensamento de cada criatura, do manto niquelado ao mirante dos atanores estelares mais distantes.
Mas este cáucaso! Aceso pelas extremidades tateadoras de leviatãs e minuanos, impulsiona-me, do mapa da tranqüilidade para o planisfério das ligações bizarramente fadadas ao combate.
AMNIÓTICA EM MACRO
a palavra alheia não é ameaça interior
venham a mim as palavras alheias
tenho fortaleza interior
a idéia alheia não é ameaça interior
venham a mim as idéias alheias
tenho fé interior
cantam em mim as palavras alheias
brilham em mim as idéias alheias
tenho palco interior
meu interior me ultrapassa
estou interno,
estou reino,
estou asa,
estou
alheio, me nutre me estranha me ateia
e não me caça
o interior
o meu nome é alheio
i-n-t-e-r-i-o-r
alheio, me chama, me inflama, me abraça
nosso nome é o que grita na água
nosso nome: amor
SILENCIOGRAFIAS
Era preciso ler daqueles olhos para realmente ver o silêncio. Não o silêncio repleto, o silêncio antecessor, prenhe de expectativas, onde flutua no ar carregado o peso do não dizer para que não me firas, não dizer para que não me ames, não dizer para que não me abandones. O que se via pela mandala leito de pântano daqueles olhos era a quietude das epifanias, qualquer adjetivo bíblico caberia naquele par de pálpebras portais. O mesmo ludibriar cheio de vazios que nos torna repletos após a contemplação. Era um silêncio pós- adagas. Eu diria que só conheci a vitória depois que me feri naquela reticulada tessitura, onde enfim me inspirei de alfabetos calados.
Devo acrescentar que nunca, nem sequer por um ínfimo cruzar de ruas, havia visto realmente a matéria da íris estirada ou retraída pelo intercepto de minha voz filtrando a luz que ali caía. Eu a conheci tateando sombra, perigo e chamado. A matéria visual refletida na palavra líquida e escura e silenciosa do dizer para que me cegues a retórica, dizer para que me afastes de mim, para que me libertes os signos, as mídias, as psicografias, os ferrões.
Não seria epopéia nem liturgia, se tivesse lido de outra forma. Talvez não seja se jogar o futuro na rótula desta enunciação.
Mas não miro apenas gládios, incidentes, sapiências.
Miro o vazio táctil das in-saciedades.
O verbo-visto, verbo teu, que me calas mais que eu.
FLUÊNCIA
Tenho visões com miríades de seres que pulsam do imaginário. Vegetais, minerais e animais caminham pelo sangue. Entram pela retina e saem pelas mãos: letras e imagens. Depois que sangram não se sabe onde está o mineral, o vegetal e o animal. Carregam no ventre a sagrada comunhão das ossaturas fantásticas, com plasma de linfa e sílica e olhos andróginos. São plurais e moldam minha fisiologia diária. Um dia me furtam a placidez e minha face lembra o tropel de um unicórnio, no outro me encharcam as vísceras de água ardente e me brotam miniaturas de massas atmosféricas atrás dos pés. E assim adiante. Todas as metamorfoses me fazem correr, embora o movimento se revista da lentidão de uma galáxia fetal. Executo sangrias diárias para não incubá-los no miocárdio. Para que possam voar com suas plumas de alga sobre as cordilheiras de ervas prateadas e sob as barbatanas do lince. Depois que voam, voltam transfigurados de outras letras e de outras imaginações. E de novo não se sabe a natureza de suas intenções: pedregulho, papoula ou pio de coruja. Só sei que se inscrevem nas horas pardas que conjuro. Por isto os vocalizo com a motriz dos líquenes, rabiscando arabescos nos seus portais.
BLOOD MARY
meu pai meu reino
rubi veludo
das sete flechas
das sete chagas
encruzilhadas
a corda o gênio
a corda o gênio
enquanto corro
pequenas mortes
na noite lança
das miras giras
constelações
sangrando exus nas digitais
V.I.T.R.I.O.L.U.M.
Despiu-se das vestes negras, das cúpulas armadas, dos promontórios escurecidos por musgos e inquietações.
Poliu gárgulas prateadas e as selou abaixo da chuva para o sono do tempo.
Embainhou adaga e a lacrou com o veludo tão belo da poeira filtrada por vitrais.
Escreveu despedida para o anjo de pedra, o mais vivo da passeata lúgubre.
Mas da noite não precisava se abandonar, nem do misterioso enredo de acreditar em chaves descartadas.
E ainda buscava palavras sem entendimento. E ainda o esperava dizendo não me prive dos internos calabouços onde os cárceres finalmente se libertam.
Não precisava que lhe ocultassem a escuridão.
A luz excessiva já suturava a pele e pesava em demasia.
Tolerava algumas privações, alguns precipitados julgamentos. Eram portas adormecidas. Assim via tudo isto. E persistia.
Entrar e sair, não fazia diferença. Tinha de percorrer.
Sempre o encontrava e era por ele encontrada.
PASSO NOTURNO PARA O SOL
Em dias de seguir saturno, o corpo sagitário levita
e nada. E é a flecha abismada no fogo dos deuses
da água. Estrada que o relâmpago tatua na calçada.
KABUKI
Evitava o caminho florido. Contentava-se em observar de longe, o longe que era o seu lugar preferido durante os dias luminosos. Assim treinava a retidão do olhar, exercitando a projeção das vértebras sem sair do lugar. Esperava no alto das coisas, como se Fuji, como se criatura de escarpa, como se aprendiz de oráculo. Até que pontes transparentes brotassem lentamente do centro demarcado por sua presença até as estranhas árvores gueixas que hipnotizavam o céu. Via sob as tábuas plasmadas a aurora de terras longínquas e de gravuras muito antigas, papéis finos conservados por adormecidos terremotos enraizados nos ossos das cerejeiras.
Poderia romper aquela distância inventada e ler linha a linha, sendo tão ocidental, tão forjado de acidentes tropicais? Parecia-lhe que se levasse o corpo até a flor escrita, sem a iniciática construção imaginária das pontes, algo maior que a distância seria rompido. Poderia voltar ao estado samurai, no momento em que as delicadas hastes despencassem sobre sua cabeça.
E assim mesmo aconteceu. Hoje os olhos estão oblíquos. Perto demais. Efêmeros.
Procurando um palco giratório que lhe encene a alma em constante estado de queda.
Hoje, doa-se. E é também uma cadeia montanhosa congelada na silhueta fosforescente do oriente.
RODA DA FORTUNA E PLUTÃO
Extraio de ti tudo que posso. Tudo que me permite, seria melhor dizer.
E porque me permite, penso que tudo que de ti extraio também é extraído daqui, de dentro de mim.
Portanto me torna claro, iluminado. Estas luzes não me cegam, mas aproximam-se muitíssimo do estado obscuro no qual tudo descansa para fortalecer-se. O estado em que me sinto bem, na potência adormecida do que não é nascido, mas viceja de possibilidades. O estado mágico.
E de hoje para os amanhãs, são os momentos que sempre esperamos. Porque o dia amanheceu tão forte e nos sentimos lúcidos. A embriaguez foi ao seu extremo, arrebatou-se. Resta-nos a suavidade lunar, amenizando o rosto fosforescente do sol.
O corpo do símbolo. A fartura psíquica. A riqueza além das moedas.
Que saibamos usufruir.
CORAÇÃO NA NOITE ESTRELADA
E ouço o amor em passos de ouro líquido, nas tempestades fantasmagóricas da claridade.
Quando escapam centauros dos pés do mundo.
E dizem: galopes desequilibrados. Afastem-se para não morrer entre os ossos escuros do sol.
Eu digo: órbita. Deixo-me ir. A luminosidade no retorno a terra. E anoiteço. Margarida magnética, pisoteada no campo de girassóis.
CORAÇÃO GRAND HOTEL
A fúria é febre
Ainda não lemos todos os livros
A brasa é neve
Ainda não fizemos todos os mitos
A morte não serve
Ainda não rimos todos os circos
É nosso o horizonte constantemente apunhalado de paisagens, mínimas, cínicas, esplendorosas, furiosas, maiores. De todos os tipos.
Somos vastos. Há muitos livros. Há muitos mitos. Há muitos circos.
Se toda carne nos veste, se toda pele nos segue, não nos acusem a infidelidade.
Somos trágicos diante da pobreza dos vivos.
O corpo se lança no jogo de luzes dos ritos.
Dêem-nos palavra fecundidade.
E não seremos breves. Sinos, lírios, tintos. Albergues.
SHARON
doando pedaços para a combustão de uma flor vítrea
onde o sol projeta a existência dos diamantes sobre a pele,
no penhasco dos relâmpagos atômicos
quero dizer manhã de um coração
quero dizer que tudo que diz
é esta rosa do deserto
petalada de raios
na janela
COM TEUS PÉS COM TUAS ASAS COM TUA ILUSÃO
podemos sair pelo dia pela noite pelo pranto do entardecer entre gôndolas de amarelos vegetais bancos descascados letreiros de néons jardim de magnólias apenas para falar sobre a alma de deus?
me permite esta rua imaginária solar erguido há séculos conversa sobre o natural balançando os fios da eletricidade?
posso começar uma semente alada de dente-de-leão na insalubridade dos noticiários mais amargos pequena partícula descendo do sol caindo dentro de um lamaçal dourado que chove estrelas solitário que não se encena imaterial que não se sorri e nem se beija encanto tão confundido que me faz te chamar pelas molduras bibliotecas calçadas poeiras esquecidas entranhas calcificadas no oceano vidraças quebradas vinhedos tontos de luar?
VOU
Deixar o sorriso de cacto deitar na amêndoa das horas
Enquanto os cisnes refletem elefantes
Chamar o nome inesperado
Extrair da lama um sagrado coração
Enquanto as chagas refletem rubis
Dizer para ele
O quanto me diz:
Amêndoa
Cisne
Coração
Enquanto as estrelas refletem
O nome das chamas
O cacto em pose de flor
AZUL DE CINZAS
incita a profundidade e não se desloca da superfície
lago índigo silencioso
mar carbônico
suposto
mesmo raso navegante
fui até o fundo efervescente
só
coagular o convite não sustentado
voar cinza meridiano
para que não mais
me deixem as asas flutuando
em submarinos de brinquedo
estou abaixo de léguas
com a bagagem encharcada de caravelas
velando pelo tesouro
de uma luminosidade afogada
os pulmões estão partindo
carbonizaram minhas passagens
mapas quebrados pelo ar
ao menos, liberto
o marinheiro em mim
AMADEO
reina a mão em minha pele
amadeo
e leve
com ígnea prece
a lamúria da injúria-veste
em breu
ao cremado manto
enfloresce lírio negro
amadeo
a palma do sudário santo
em domínio ateu
doutrinado
orvalho já devolve
à mortalha cortejada
o toque amado
de um deus
MEDULA DE PROMETEU
há esta arena de sobreviventes na selva
esta caminhada alternada de pedágios, estas senhas de acesso
estes ilegíveis manuais de conduta
mostram-te o teu rigor
e te tornas macio com os sermões e as durezas
vazando a seiva represada pelos ossos
mostram-te a tua excessiva doçura
e te lanças na imersão de uma erva amarga
no chá que ofertas
mostram-te a tua secura
e te partes em busca do frescor das gotas
hidratando a saliva dos pedintes
mostram-te a tua paixão intolerável
e te secas em combustão espontânea
e te amargas em reclusão de rochas
e te cobres os dedos de lâminas afiadas
e te feres, te choras, te defendes
e te calas
e se te falas, te procuras a inversão da alma
crivando-te o verbo com ilhas inabitadas, com moradias atracadas no capricho das dunas, com daninhas na relva onde te adormeces
há espinhos também aqui, grita-te de malhas férreas
há um sol pulverizando os poros, e expõe-te de intocáveis cauterizações
e te trancas nas ruas
e te perdes nos porões
e te desprezas nas festas
e te elevas o espírito ao mosteiro de nuvens
e te singras para milhas de distâncias
e te dialogas nas desculpas de bálsamo
e ainda não te param de impelir evoluções
e não te reparas o sono
e te sofres na letra e te amparas no eco e mesmo impotente
não te abandonas
o anseio de te mostrares a víscera obsessivamente refeita
e te cansas e te foges e te impedes, e te tornas intraduzível de códigos
e, águia de tuas alturas, te indagas,
não há no mundo uma só faísca que me tenhas fígado para te acender?
DREAMCATCHER
* Palavras para singrar o vento amoroso
soubera que o amor viria com crinas embaraçadas
malabares do zodíaco que é
incendiando os cascos em campo arado por centauros
o amor viera de cigana festa das colheitas
no lança-chamas do sol
trançado entre o joio e o trigo de um filtro dos sonhos
e tigrado fora
com cabelos de sangue escarlate
atravessados por fios de ouro
o amor queimara
na travessia da palha às cinzas
norteando o ar com a lágrima de um olíbano de babel
e inflamável ainda arde
no crepitar fetiche da ferrugem de um mar vermelho
ondulando rosas afogueadas na ventania do oriente
o amor troveja nós na corrida das galáxias
O BARDO DO CORVO
quis cataclisma
cantando no topo do corpo
de um cântaro caiado
mas, catavento
canoro cativo entre âncora e coluna
dos pórticos
corpúsculo crismado
cisma
o comboio de cardume encarcerado
e congela
cardeal calado
no cantil
das bocas cravejadas de cal
em coma
estatelado e cru
clave sem dó
a clavícula, antes sol
com um címbalo pelos ossos
oca se assalta
nos assovios
dos cardos santos
do outro lado do córrego castanho
no córtex, infecta alcatéias
lobo de si
comunga o canto casto do cardinal
e uiva aos cisnes,
acobreado de abelhas
canção de coração corsário rei
nunca mais
cotovia
...
- esqueceste o zumbido de tuas estrelas?
- quase, astrolábio calou-me.
- mas e agora?
- agora é hora da constelação de colméias no céu da boca.
ÍRIS ÁCIDA
uma única vez
acordaram-me de um sono de feras
via através
de um rasgo
no olho orquidário do planeta
vi-me fora das grades
internas
diria metamorfose
mas não puderam conter-me fora
abrasivo, lunático de lucidez
quebrava o sedimento do caminho
deitaram-me entre alfazemas
devonianas
desfizeram correntes imaginárias
mas não puderam sustentar-se
com a serenidade de escarpa
nem com as monções, nem com as siestas
acossado de mim
digeri a planície do poente
e grãos de lótus devolveram-me ao centro
não puderam manter-me externo
pois era dentro
onde estava
o que sondei além
o que lançou-me de vós
agora, orbito semi-desperto
com o olfato domado por
cílios que chovem hibiscos
CASA DE ORAÇÃO
nosso cálice
nossa hóstia
nosso altar
não cabe na gota
vermelha
furtada
da última ceia
de salivas derramadas
no vazio
cravejado
dos passos
que não ousamos
pronunciar
andrógino rebelde de nossas portas perdidas,
afasta de nós esta lástima
de entornar o graal
de jejuar o pão
de ser o rio sedento de esquecimento
na fome secreta
das chaves
e deixa-nos no templo
na transfusão de nós
solve et coagula
TAXIDERMIA
com olhos de ocelot
pinça o gato escarlate
pela digital
sonha
plenilúnio
a espinha do felino
no éter da palma
exposta
no ossário enluarado
três miados rajam
a sala cirúrgica de memórias
MANDRAGORA OFFICINARUM
Canídeo preto
Na pupila
Um embaralhar de naipes
Uma conquista
A noite miando nas salas
Despe-se uma estrela casta
Beija derme
Desterra alma
Os territórios gritam
Enforcados nas pálpebras
(mãos carmins ex-traindo ungüentos sob a lua cheia)
PAPAVER SOMNIFERUM
Aprendeu com Hipnos
O dom arado das mortalhas
Assim as cobria, todas elas, suas musas árias.
Disparava um vocábulo qualquer
O ritmo calculado
terra e um silêncio fatídico nos recitais
Depois, no sonho, as ressuscitava.
E era único.
*
Andréia Carvalho nasceu em Curitiba, em 1973. Técnica em Farmácia e estudante de Produção Multimídia. Edita o blog O hábito escarlate, http://habitoescarlate.blogspot.com/ |