DEVOÇÃO
Devoto,
eu vos elejo,
Ceres,
bendita entre as fêmeas,
razão da existência
de minha fome.
A senhora é pra comer
rezando,
banquete divino
que se renova
em moto-contínuo,
pés,
mãos,
olhos,
boca,
peito,
umbigo,
greta sagrada,
orifício,
ajoelho-me
e vos adoro.
ZERAR-SE
Pulvis et umbra sumus
Horácio
Partir
sem deixar
lembrança, mormaço
cheiro, grunhido
pó ou sombra, Horácio.
Partir
nenhum prévio aviso,
esfumaçar-se.
Partir
sem dizer adeus
nem ao diabo.
CANTO INFAME
Patife
é matéria
que quebra
quando cai.
Vaso ruim,
se espedaça,
cacos, farelos,
pó que o vento leva
pro inferno.
Estátua de sal,
um olho maior
espatifa-o
basta voltar-se
para trás.
REACIONÁRIA
O contato da colher
no prato vazio
como toque de recolher.
Código de sentido
comum a subviventes,
vísceras malsãs.
Subversiva,
a poesia da fome
não implora
direito de expressão.
Nada, liberdade:
afundam homens e animais
fraternos na miséria,
todos desiguais.
FLOR SELVAGEM
(a partir do conto São Marcos de J. G. Rosa)
mandinga bendiga
seiva seja saravá
não zombar da alheia fé
a filosofia de lá
palmas claras e mãos negras postas
aliviam a dor dali
desfazem o caminho sem
volta, esfera do desespero
moendo o redemoinho
tição de fogo benzendo a pólvora
reza braba dobrando
o tinhoso que nada terá
preto velho cinge o cenho
vudu não trespassa Rosa
vaidade vento que foi
no coração dele não há
vemos nos sons as verdades
de uma boca desdentada.
A MEU FILHO
Eu vejo um livro
que se move e pensa,
página única e múltipla
em forma de gente.
Eu vejo Ivo
com seus mundos
paralelos de palavras
e palavras,
tantos paralelepípedos
na jornada a perder de vista.
Eu vejo um filho
que sabe ler
e é lindo
dando-se à vida,
poesia de primeira água,
prosa vigorosa.
UMA ROSA, MAIS QUE UMA ROSA
Uma rosa
não era uma rosa.
Batom extraviado
de Gertrude Stein
nos desjardins dos lábios?
BAUDELAIRIANA
Ela não lê
o poeta francês
mas nele sei-a
completa
flor do bem
aberta
Matematicamente
Delta
NARCISO AO AVESSO
Sabia que não era feio
e o que insinuava
não era o espelho.
Mirava-se
no que era externo,
ilusão de horizonte,
extensão dos olhos,
imagem mais bela.
Primeira lição de admirar:
o melhor reflexo
está na janela.
AFASIA
Mendigo
,
calado
,
estendo
a
mão
:
uma
palavra
,
por
caridade
! |
*
Antônio Mariano nasceu em João Pessoa, em1964. Graduou-se em Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas pela UFPB. Publicou quatro livros até agora: O gozo insólito (poemas, 1991), Te odeio com doçura (poemas, 1995), Guarda-chuvas esquecidos (poemas, 2005) e Imensa asa sobre o dia (contos, 2005). Tem um livro de contos em preparo e três romances inacabados. Textos publicados em várias coletâneas e suplementos literários na Paraíba, no Brasil e no exterior, a exemplo de Arco-Íris de Oxumaré, Caderno da poesia brasileira atual, Revista Homúnculos, Número 3, Ano 2 Lima (Peru), Dezembro de 2004 (Org. Claudio Daniel). Em 2010 seu poema Before the dream foi estudado na obra Brazil, Lyric and the Americas (org. Charles Perrone, University Press of Florida). Atuou como editor da revista Correio das Artes (05/2009-06/2010), produto do governo do Estado da Paraíba. É um dos criadores do Clube do Conto da Paraíba. Coordena desde 2004 o projeto Tome Poesia, Tome Prosa.
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