CAMILA VARDARAC
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Podem aguentar o sol nas costas com um olho aberto e outro ferido, podem caminhar iluminando as vias sem cansaço e podem derreter tudo com o fogo das margens crepitantes
que moldam a ilusão de ótica no embate entre o real e o fantástico.
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I
Quanto menos se dorme
mais Lynchiana a realidade parece
não ver coelhos agindo de forma humana na sala
não significa a ausência deles
eles estão lá, mas quanto menos se dorme
mais normal o absurdo se torna
e mais petrolífera a noite se apresenta
como se anjos borrifassem gasolina nos olhos
para confundi-los e fazê-los crer
que o néon na calçada é luz divina
Quando não se dorme
somem as distâncias
apenas automatismo
dos passos dirigindo-se
até o dragão de quarenta lugares
que vai pro centro da espiral
porque não dormir é uma maneira
de ser abstrato e parecer contínuo
perpétuo movimento cerebral
mesmo quando não há sono
há sonho.
II
Buscar é a condição dos homens e alcançar é conquista divina. o alcance nem sempre é uma vantagem porque deus errou nas suas escolhas e respirar pequenas felicidades encontradas onde ninguém vê é a forma mais pura de fé. por aí estão disputando o corpo dele, repartindo seus pedaços todo dia pão às avessas, mas o alimento e o nome do criador provém dos medos humanos. deus no campo azul do poder, onde os homens o colocaram e onde ele brinca de Iscariotes − sarcasmos nos sacrifícios.
III
Somos maiores
somos maiores do que a individualidade latente
latejante veia dentro dos copos entre as mãos
beberemos das veias e artérias
cortando o crepúsculo do inferno
sangue jamais contaminado
por valores previamente estipulados
Desse mundo não queremos herança
nos contentamos com algumas palavras
que buscamos nas naturezas sábias
Rimbaud me ilumine
com sua lanterna mágica
Rimbaud me ilumine
mas não me cegue
sigo-te
com o manto da invisibilidade
Baudelaire
teu albatroz vive em mim
um dia vou matá-lo
com meu punhal da sorte
e ele voará
proutro coração
Um coração que nasce sozinho sem raízes
porque pulsa fora da terra, no campo fértil
dos pensamentos livres de espinhos e flores
Coração suspenso que tudo reflete
porque está acima de todas as hipóteses
é apoteose única e indecifrável
No labirinto de heras e nuvens brancas
brandos ventos onde os alados buscam sossego
com olhos puros de alguma coisa não nomeada.
IV
Negar a necessidade por possuí-la. Alguém concede o veneno a contragosto, com o pior semblante do mundo como se quisesse ficar com o veneno para si porque isso tem a ver com anticorpos. Levar o corpo ao limite da intoxicação aguardando a futura ineficiência de uma bomba nuclear e o lema é: morra enquanto espera a morte. Metálico corpo, próteses-cataclismas, biônicos meios de dizer adeus à glória de Maria que perdeu o véu da serenidade quando caiu na tentação putrefata dos homens que lhe diziam: venha. E ela foi, porque passar o dia na plataforma da impenetrabilidade era algo inconcebível para uma santa cheia de remorsos, durante muito tempo abdicou de tudo, agora era o capeta com olhos azuis.
Transviada Maria
na avenida das vertigens humanas
cantando descalça enquanto os carros passam
por cima dos seus pés
Anárquica Maria
confrontando os motoristas com gargalhadas
a última gargalhada
atropelada e pisoteada
Asfalto Maria urbana
observada pelo anjo necrófilo
com desejo nos lábios-morte e asas-titânio
batendo com a potência do ácido sintético
porque da mesma forma eletrizante o trem de Caronte apita
nos campos inabitáveis dos trilhos.
V
Capturar símbolos de força em momentos de fragilidade é inverter a ordem natural. Sobre uma ponte partida os músculos do cavalo contrariam a resistência, o que o sustentou por toda vida agora o mataria. A fraqueza exalada é sincera transcendência à golpe pontiagudo no pescoço do alce que sangra, luz única do filho que ficou pra trás quando a terra o segurou pelos calcanhares e, depois de saciada, cuspiu seus chifres no rio batismal para a renovação desse ciclo tão minimalista quanto o vôo dos abutres, que atuam na carnificina da falta porque toda carcaça é uma ausência e o que fica é a forma desfigurada « nem sístole nem diástole »
a elevação é o silencio da peregrinação dos tigres que buscam as memórias dos antepassados felinos nas savanas azuis, entre as árvores translúcidas de um firmamento instável soa a flauta de Serafim anunciando a geração perdida. Os passos rajados, que vieram de tão longe e chegaram neste lugar mais distante do que tudo, param diante do grande pai siberiano que diz: – lentos tigres, vocês estão mortos, agora o que lhes resta é a condição das nuvens e a vossa força será a tempestade. Noite nas gomorras celestiais, tigres de nuvem enclausurados para não atacarem as estrelas que tinham asas quando eram vaga-lumes. A eternidade não é o paraíso, é a repetição.
VI
Pimentões vermelhos esquecidos
chuva e cadeiras arrastadas
vinhos diluídos e cigarros acesos
a cada estouro do trovão
piscina símbolo de ocultos
água poluída transtornos
estranhamente calmos
quando um copo quebrado na carne
não tem conseqüências físicas ou psicológicas
então qual era a intensidade da dor
antes da dormência?
no pântano movediço o boi é a impotência
a vida lhe deu três opções de morte
e nenhuma delas depende
da sua vontade de estar vivo
o latido do cachorro é a covardia
porque o adversário é maior
mas a vantagem não existe
nada a perder é toda a certeza
da espingarda na mão do menino
misturada à ingenuidade de todas as crianças
instinto líquido peixe e isca
anzol em suas próprias gargantas
na ausência ritualística do silêncio
as árvores são cúmplices
mas o vento não perdoa
invade os olhos fazendo de tudo
vertigem e passos desequilibrados
nessa floresta de muitas vias
e grandes aves
Ave rapina
cheia de fome
hórus é convosco
bendita sois vós entre as tormentas
bendito é o eco do vosso grito,
soturno
Santa rapina
mãe cega
rogai pelos fragmentados
agora e na hora da reintegração.
VII
Quanto nada cabe numa xícara niilista? O bigode de Nietzsche era a negação da sua boca, aquela com a qual ele filosofava em frente ao espelho. Friedrich, enquanto te espero pro café inexistente, vejo o pássaro lutar contra o céu dos seus pensamentos de ave.
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Camila Vardarac, poeta carioca, é formada em Cinema e publicou poemas em sites e revistas eletrônicas como Cronópios e Zunái. Participou do festival literário Artimanhas Poéticas, realizado em 2009 no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro. |